sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Capítulo XXVIII - "A Carta nas Quatro Estações"

Neste desgelo, da última nevada, com vontade de ir à civilização, depois de estar três dias, fechado em casa, havia uma necessidade de comprar géneros alimentícios. O carro para não fugir à regra estava com a bateria em baixo. Tive que pedir auxílio a um amigo da vila, que curiosamente me disse: - “ Não sei onde vou estar, sou como o vento!”. Fiquei a pensar na sua frase, e realmente, às vezes andamos ao sabor do vento, coisas da serra, que nos leva pelos sentimentos ancestrais, de um isolamento histórico, só quebrado pelo empenho do pároco da vila, homem de convicções, que deu cinquenta anos da sua vida a este povo serrano.
Este mês de fevereiro, será como um teste à minha capacidade de sobrevivência. Os recursos são muito poucos, quase impossíveis de sustentar a minha vida mundana. Encravado na minha própria sustentabilidade, vejo que o dinheiro é um demónio que nos enxerga, e nos torna dependentes. É de fato uma droga dura, sem tratamento imediato. Depois das despesas fixas pagas, pouco resta para o dia-a-dia, mas vou tentar combater mais esta barreira que aflige minha alma. Sempre esperarei por dias melhores, onde posso sossegar esta minha aflição materialista.
Certamente os povos na época recolectora, sobreviviam, e eram, penso eu, felizes. Esta invenção das civilizações; o salário, ou dinheiro, que no início da sua implantação nas sociedades, não passava duma mera troca por bens, e era um bem adquirido nos recursos naturais, o famoso “sal”. Agora, passados milhares de anos, são os mercados económicos, e grandes banqueiros, que ditam a nossa sorte. Estou consciente que não posso fugir a esta “sina”, mas também, farei sempre o essencial, largar-me do supérfluo, e viver em paz comigo.
Este fevereiro de nevadas constantes, fazem com que me mantenha, mais por casa, que até é bom. Trabalho mais nos meus escritos, mesmo que seja para a gaveta, porque as edições estão muito difíceis.  

Quando regressei da sede do concelho, o sol raiava por entre as nuvens brancas e batia nas montanhas, ainda cobertas por mantos de neve. A fusão destes elementos da natureza, à medida que subia para o meu lugar serrano, fizeram, dizer em voz alta, mesmo que ninguém me ouvisse, só eu, Deus e a natureza; “Como é belo este alto Minho serrano!”

Quito Arantes

BUSCAS

Nas buscas quase infinitas
Do meu ser por liberdade...
Nunca vi moças bonitas
Suspirando de saudade;

Do amor sempre quis beber...
Terminei com lábios secos
Sempre tentando entender
O que fazia nos becos;


quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Maria Baderna


Aproveito que está chegando o Dia Internacional das mulheres, para homenageá-las através desse conto, que fala de uma pessoa real, a bailarina Maria Baderna.




Como bom atleta de final de semana, encontrava-me em minha corrida vespertina, realizada somente aos sábados (isso em caso de tempo bom). Para variar o caminho, saí de casa e não fui em direção ao parque. Meu destino naquele dia foi o campus da universidade.
Desacostumado com o esforço físico e castigado mais ainda pelo vigoroso Sol daquela tarde, já punha a língua de fora após dois quilômetros de percurso que me pareceram meia maratona.
Meu fôlego aumentou um pouco após a inesperada garoa que começou a cair. Contudo, a simpática chuvinha transformou-se em pouco tempo numa ameaçadora tempestade (efeitos do el niño...). Parei de correr e voltei-me num círculo a procura de um abrigo. A algumas dezenas de metros reconheci o imponente prédio da biblioteca universitária. Dirigi-me para lá correndo, gastando as últimas energias que possuía.
Cheguei à entrada do prédio arfando como uma pessoa afogada, mas procurei disfarçar haja vista a presença de simpáticas alunas no local. Fiquei na companhia delas que, como eu, esperavam a chuva diminuir um pouco para saírem do lugar.
Meus planos vieram por água abaixo (literalmente) quando uma rajada de vento praticamente me expulsou para dentro da biblioteca. Cheguei a óbvia conclusão de que, de bermuda e camiseta, debaixo daquela chuva e açoitado pelo vento, o máximo que conseguiria, se ficasse ali exposto, seria uma pneumonia.
Entrei no prédio e fiquei andando durante algum tempo pelos seus corredores, a fim de secar-me mais rápido. Entrei numa lanchonete e pedi um café. Pouco depois, já seco e aquecido, resolvi passear um pouco por entre os livros; sempre gostei de ler e queria descobrir as novidades.
Passeando por entre as estantes, deparei-me com um antigo livro de biografias, mas com uma particularidade: apenas mulheres estavam ali relacionadas, e todas tinham vivido no Brasil. Tirei-o da estante e me sentei em uma daquelas cabines que os universitários usam para o estudo.
Percorrendo o índice, encontrei as mais famosas personalidades brasileiras do sexo feminino: princesa Isabel, Bárbara Heliodora, Cecília Meireles e Maria Bonita, dentre tantas outras. E naquela extensa lista, reparei também em um nome que nunca ouvira falar: Maria Baderna.


Interessei-me de imediato por aquela história, afinal, já conhecia um pouco da biografia das outras mulheres.
“Com um nome desse, devia ser um poço de confusão, ou mesmo uma criminosa”, pensei.
Abri o livro na página indicada e, ao contrário das outras personalidades, não havia uma foto ou mesmo desenho para ilustrar a biografia. Era, sem dúvida, uma mulher do povo. Uma pena, pois queria ver o rosto daquela “baderneira” que merecera até mesmo um verbete de dicionário.
Pois bem, inicialmente descobri que Maria nascera na Europa em 1825, provavelmente na França ou Itália. Envolveu-se em movimentos políticos já na juventude e, em 1850, resolveu mudar-se para o Brasil. Após passar alguns meses em um navio, aportou no Rio de Janeiro, onde fixou residência.
“Até aqui, nada demais”, estranhei na hora.
E continuei: Maria se tornou dançarina, e deve ter alcançado algum destaque, pois segundo alguns, provocava desavenças e brigas entre os homens. Daí ter recebido o apelido de Maria Baderna.
Outros pesquisadores, no entanto, garantem que o apelido veio de outra forma: Maria também era abolicionista, e chegou a organizar quilombos no interior da província do Rio de Janeiro; ela participava dos movimentos sociais e encontros populares, que evidentemente reuniam uma multidão de pessoas ansiosas por reformas sociais e a própria liberdade. Com os nervos “à flor da pele”, era natural que eventualmente alguns desses eventos terminasse de forma mais agitada. As velhas raposas não perderam tempo em batizar a dançarina com esse apelido, numa clara maneira de tentar depreciá-la.
Interrompi a leitura e passei a refletir. Sem dúvida, a segunda versão me parecia mais convincente, afinal, a injúria é uma das formas mais eficientes para tentar anular a influência de uma pessoa que vai contra a ordem estabelecida e os interesses alheios. Para a chamada elite, pessoas com consciência política e baderneiros são simplesmente sinônimos.
Por fim, descobri que Maria morreu ainda jovem, em 1870. Tinha 45 anos e estava no interior da então província, talvez em um dos quilombos que ajudou a criar.
Fiquei alguns instantes imerso naquela pequena história, que mal ocupava uma página do livro e contrastava diretamente com a extensa biografia das princesas, nobres e grandes artistas ali descritas. Aquela simples página no meio de tantas para mim representava muito bem o que o povo significa na vida da nação como um todo: uma pequena folha de papel que muitas vezes passa despercebida.
Olhei em volta e percebi uma jovem paraplégica que procurava algum livro na estante; mais ao canto da sala, um senhor negro catalogava revistas para a seção de periódicos. Imaginei como Maria Baderna se contentaria ao perceber que, embora os negros, deficientes físicos (e outras minorias) ainda sofressem com o preconceito, eles já estavam livres, ao menos, dos grilhões de ferro, físicos e palpáveis. Restavam agora lhes libertar dos grilhões subjetivos, dos preconceitos e das condições menos favoráveis de vida. Mas isso, já era tarefa nossa.
Levantei-me após algum tempo e deixei a obra fechada sobre a mesa. Quando já saía do recinto, retornei repentinamente, voltei a abrir o livro naquela biografia, e o deixei aberto sobre uma mesa central: queria que outras pessoas descobrissem a história daquela interessante e injustiçada mulher.
E ao sair da biblioteca (a chuva já cessara), caminhando pelo campus em direção a minha casa, perguntei para mim mesmo qual seria o apelido mais adequado para aquela dançarina européia que, na casa dos 20 anos, se viu em um país tropical lutando pelo fim da escravidão:

Maria: Baderna ou VISIONÁRIA?





Obs: este conto foi publicado na antologia "Um nome de mulher", em 2002, sendo o 14º lugar do Prêmio Mário Cabral, organizado por Malva Barros, do extinto site www.armazem.literario.nom.br.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Entrevista com Mahiriri Ossuka, primeiro participante internacional em uma antologia do Bar do Escritor

Desistir é para quem não sabe para que serve uma luta” Mahiriri Ossuka

Entrevista com Mahiriri Ossuka, primeiro participante internacional
 em uma antologia do Bar do Escritor

Seu nome artístico possui um significado todo especial, que une tradição e bravura; encontrou na escrita a chave mestra para desvendar os mistérios da existência. Sua poesia, inquire, perscruta, disseca a realidade e o que nos faz humanos. Vem d´Àfrica o primeiro participante internacional de uma antologia do Bar do Escritor. Apresentamos aqui algumas facetas do poeta moçambicano Mahiriri Ossuka.

Por Sara Reis e Cristiano Deveras

Bar do Escritor – Como começou na escrita?
Mahiriri Ossuka - Engraçado que como comecei tem pouca ligação com a minha caça aos factos agora. Comecei escutando músicas com mensagens de amor. E com elas comecei a compor os meus primeiros poemas que também eram de amor. Nessa altura, por volta de 1998, também gostava de imaginar cenários de amor e diálogos comigo mesmo. Depois passei a gostar dos textos de alguns escritores que por coincidência encontrava nos livros velhos que comprava de alguns escritores portugueses como o Luis de Camões, o qual segui por algum tempo os seus estilos literários. Encontrei na mesma estrada escritores moçambicanos que escreviam de outra forma que acabou roubando a minha atenção, como o Grandal Nkpe, Jose Craveirinha, isso nos anos subsequentes até por volta de 2003.
Ainda nos meados de 2001 juntei-me a um grupo de amigos que mutuamente fomos nos descobrindo até em 2003 quando criamos um grupo de escritores. Naquela altura já me tinha encontrado distante do amor, específico por alguém. Dispersei a minha escrita pelos olhares que lancei e dores ou alegais que vivi. Comecei a cavar mais profundo a poesia. Já criticava e se necessário elogiava "o sistema".

BdE – E seu processo de escrita?
M.O. - O processo de construção da escrita, acelerou através de amigos, manos da OLEPA (Organização Literária de Escritores e Princípios Artísticos) onde o olhar pela injustiça compôs cada palavra dos meus poemas. A OLEPA foi a minha primeira casa de orientação e combate literário em Nampula (minha província de origem), e em Cabo Delgado (outra província do norte de Moçambique) formei a ComArte (Combatemos com Arte) desde 2006 para juntos promovermos actividades culturais de exaltação da literatura e outras expressões artísticas.

BdE – Como você define sua poesia?
M.O – Minha poesia é um instrumento de caça, aos factos.

BdE – Como está hoje a literatura em Moçambique?
M.O. – A literatura em Moçambique ainda não está como deveria ser mas está a crescer. No entanto ainda há conflitos internos de oportunidades claras para publicações e disponibilidade de recursos literários para acesso disponível a audiência. O problema de acesso é um factor contribuinte para a redução de interesse de leitura nas comunidades, principalmente rurais. Mesmo nos centros urbanos, as famosas cidades, o interesse pela leitura não é invejável. As razões ainda estão por ser devidamente descobertas, mas curiosamente há quem atribua o problema ao acelerado e descontrolado ritmo da globalização em que as pessoas interessam-se mais por outras coisas que livros, muito menos literários. Mas os níveis de analfabetismo e qualidade do sistema de educação pública são os factores determinantes desta batalha

Deveras – Neste ponto, assemelha-se a uma grande parte do Brasil; sei disso pois sou do Centro-Oeste.
Sara – Exatamente o que ia afirmar. E diria que em todas as partes do Brasil.

BdE – Quais seus autores prediletos ou referências?
M.O. - Referências minhas da literatura são várias. Mas de reconhecer a organização estrutural do Luiz de Camões, A liberdade criativa da Paulina Chiziane (a grande contadora de estórias com corpo e cara das nossas culturas Moçambicanas), Mia Couto (o grande poeta e romancista, que não se trava com o fim das palavras, inventando para isso as suas), Grandal Nkepe (dos poucos escritores de Cabo Delgado), Rui Catoma (poeta impulsionador da OLEPA), Machado da Graça (a pesar da multiplicidade das suas capacidades, reservou uma peculiaridade de escrever grande para as crianças com sede de ouvir contos em livros adaptados a si), Calane da Silva (com o seu especial envolvimento para a disseminação e educação linguístico literária, a sua dinamização de grupos de escritores, e a sapiência de recitação de um poema que transborda com a sua experiência), Azagaia (pela poesia de combate frontal expressa na sua Música de Intervenção Social). Todos eles e elas, com as quais cruzo em cada página desconhecida ou famosa dos livros que andam por aí ou por acidentes cruzo na esquina sendo rasgadas as páginas para embrulhar amendoim na rua.

BdE – Bom, como estamos no “Bar do Escritor, temos que perguntar: drink predileto?
M.O. - Nos drinks atingi a reforma (aposentadoria). Hahahaha...! Mas se for para fazer a noite cantar ou chorar dependendo da ocasião, uma boa poesia com música acústica seria um grande drink e petisco misturado. Se vier no copo, que seja algo com doçura natural (risos).

BdE – Tu tens uma temática preferida em teus poemas?
M.O. - Bom não tenho uma temática específica. Mas muitas das vezes me descubro escrevendo em protesto das várias injustiças contra quem não pode lutar por si.

BdE – Segues um modelo estético ou tua poesia é livre de regras acadêmicas?
M.O. - Quase sempre, opto pelo gozo da minha liberdade. Tenho esse defeito de pensar que as palavras não podem estar presas sobre regras. Mas nalgumas vezes tenho também me juntado nalguns modelos estéticos.

BdE – Classificarias tua poesia como “contemporânea”?
M.O. - Bom, contemporânea talvez arrisque-me classificar assim. Mas tenho alguns receios acadêmicos sobre isso.

BdE – Tens influência, ao escrever, de algum de teus poetas favoritos?
M.O. - Tenho muito pouca influência actualmente. Mas carrego a liberdade expressa de cada um deles na origem do meu pensamento.

BdE – Na tua opinião, qual o melhor poeta de todos os tempos, se é que se pode escolher apenas um?
M.O. - Não consigo escolher um poeta, como o melhor que não sejam as pessoas do meu circulo de amizades, colegas de trabalho e companheiros de guerra contra o sistema. O cidadão comum é meu melhor poeta, pertencente a este povo com o qual aprendo, luto e cresço.

Sara – Boa!

BdE – Que alcance tem teu conhecimento a respeito de poetas brasileiros em geral?
M.O. - Tenho apreciado bastante a poesia brasileira também. Um dos grandes nomes que fixei e segui é o Vinícius de Morais. Principalmente na sua peculiaridade de construir uma personalidade política de elite e que é também da massa. Já também viajei momentos com os escritos da Clarice Lispector pela sua forma múltipla de escrever transparecendo uma realidade e uma imaginação que sem parar querem se encontrar.

BdE – Mahiriri Ossuka é teu nome ou pseudônimo?
M.O. – É meu pseudônimo. O meu nome é Leopoldino Jerónimo.

Sara – Adorei teu pseudônimo.
M.O. – Que bom! Mahiriri Ossuka quer dizer, “Banho tradicional antes da caça protege.”

Sara – Banho tradicional antes da caça para proteger?
M. O. – Sim. Antigamente, se não até agora nas zonas onde ainda sobrou pelo menos um caçador, antes da ida a caça havia um ritual baseado num banho de água tratada com algumas plantas tradicionais e invocação dos espíritos dos antepassados, que protegia o caçador para não ser atacado por animais ferozes ou para não regressar sem comida para sua família.

Sara – Amei! O meu é Magmah, inspirado no “magma” do vulcão. Ok, voltemos...
Deveras – Este que é um dos grandes baratos na conversação com outros escritores. Isso que nos move neste campo: a cooperação entre autores. Tive conhecimento de Mahiriri por conta da Bienal do Livro de Volta Redonda; ele foi um dos convidados. O legal é que para lá fui convidado pela Regina Vilarinhos, que está nesta edição da antologia também. Mas voltemos ao prumo da prosa.

BdE – As novas regras ortográficas que agora valem para nós, brasileiros, são as mesmas para vocês?
M.O. - Moçambique ainda não ratificou o acordo. Então ainda usamos a antiga ortografia.

BdE – Mahiriri Ossuka por ele mesmo.
M.O. - Eu sou radical muitas das vezes. Foi a instrução que ganhei no percurso dos dias que já vi o sol nascer, passar e deitar. Aprendi que a única forma de acabar com um problema é eliminando a causa desse mesmo problema. Não me deixo ficar pelos meios, no conforto de que "ninguém é perfeito" porque essa frase foi inventada exactamente para confortar as pessoas de não fazer o melhor de si. Um segredo: amo meu filho, Kevin e a minha caça é mesmo por ele. E por fim, oxa-la que o amanhã nos cure as chagas que o sistema não para de nos causar.

BdE – Agradecemos a cortesia e simpatia. Tens algum link que gostarias que a gente acrescentasse? Alguma foto? Algo mais que tu gostarias de dizer e nós não perguntamos?
M.O. - www.facebook.com/communitycbuilding este é o link de alguns trabalhos que realizo com as crianças e pessoal do meu bairro e aldeias que visito. Bom, actualmente coordeno a implementação de actividades da Oficina de Arte, para orientação literária, introdução a pintura artística e introdução a olaria para crianças do ensino primário numa Escola Primária (EPC de Natite) todos sábados das 10-12h. Este é um projecto gerido em Moçambique pelo Grupo Voluntariado Civil italiano (GVC).
          Iniciei, um programa radiofônico designado "Tjampranttani", termo em Emakhua que significa "Era uma vez", a frase que se usa para iniciar contar estórias a volta da fogueira, onde trabalhamos com "Activistas do saber Antigo", as Avó Helena e Auagi (Residentes do Bairro de Ingonane, em Pemba). Naquele programa Tjampranttani, junto das activistas do saber antigo trazemos poetisas, poetas e artistas do futuro que apresentam as suas poesias e contos também. E por de trás a música acústica com a Banda local "Myuna”.

Sara – Gostaria de escutar isso... Tem como ouvi-lo na internet, o programa? Em que link?
M.O. - Em paralelo, tenho realizado, sempre com amigos e combatentes da mesma trincheira "Noite de poesia e contos" nas aldeias e bairros, onde batucadas locais juntam-se a volta da lareira também. Posso preparar algumas faixas para semana e lançar na página. Neste momento não lancei online os programas radiofônicos. Irei fazê-lo em breve.
Também colaboro para uma rádio comunitária "Rádio Sem Fronteiras" produzindo e apresentando o programa "Histórias de Amor" desde 2006 e recentemente criamos a página www.facebook.com/historias.de.amor.RSF. Todas as 5as Feiras das 19-21h30. Neste espaço recebemos mensagens e chamadas telefônicas de gente apresentando problemas de seus relacionamentos, curiosidades ou mesmo experiências de sucesso. E outras pessoas nos escrevem ou ligam a dar a sua opinião sobre uma determina questão que um "coração ouvinte colocou". Praticamente, um programa de inter ajuda. Também posso preparar faixas para postar online. Por enquanto só lá postamos as mensagens que recebemos.

Sara – Uau!
Deveras – Que barato! A cada momento fica mais interessante. 

M.O. – Isso é que é exagerado. Não? (risos). Sobre a foto, irei enviar outra. Infelizmente cortei o cabelo. Mas penso que não fará diferença do conteúdo. Não?
Deveras – Muda-se a embalagem, mantem-se o conteúdo.

BdE – E sobre a participação na Antologia do Bar do Escritor, quais as expectativas?

Mahiri OssukaA participação desta 5a Antologia, primeiro me entrance e me enche de muito orgulho de poder estar junto duma turma que cozinha, serve come e bebe em conjunto o mundo da literatura. Gostaria de poder levar para minha turma Moçambicana este espírito de dinamização de outras formas de fazer viver a literatura. Ao BdE, não pare, e que venham mais antologias envolvendo mais autores dispersos. Convido os amigos que conheçam também meu blog: "Revolução Literária: ossuka.blogspot.com"

O Passo Seguinte - Parte Final

Depois que os outros partiram, Nicolas já pulou para uma cadeira da mesa de Sônia, pegando a sua cerveja, que a garçonete já havia trago algum tempo, e o seu copo. Encheu o copo dele e perguntou se ela queria, sendo que provavelmente a cerveja já estava quente.
- Não, não quero não. Eu já to meio bêbada, vou ficar de boa agora.
- Entendi, faz bem. Mas que bom que você ficou, de fato deu pra notar que você estava reagindo de uma maneira de diferente dos outros. Pois bem Sônia...
- Nossa, você lembra do meu nome? – disse Sônia interrompendo-o.
- Claro que lembro. Você foi a moça que me emprestou o isqueiro e que por sinal, pedi só para poder puxar conversa com vocês.
- Olha! Então quer dizer que a Júlia estava certa – disse isso finalmente sorrindo. De todos os fatos narrados aqui, entre todos, Júlia era a que sempre permanecia mais séria – e eu recriminando ela por pegar no seu pé.
- Mas com certeza, de todos vocês ela foi a que mais implicou comigo. E que língua afiada que ela tem hein. Caramba, aquela garota parece viver na ofensiva.
- É, ela é bem arisca mesmo. Mas ela é uma pessoa maravilhosa, você tem que ver quando ela está mais bêbada, ela vira um amor só. Não fala coisa com coisa e vive caindo – terminou dizendo isso soltando uma risada curta porém muito espontânea e gostosa, Nicolas também não se conteve e respondeu com o mesmo gesto.
- Mas como eu ia dizendo Sônia, por que é que você não me diz o que se passa aí nessa sua cabeça? O fato de você ter ficado aqui comigo me deixou bastante intrigado. Vai, me fala. Me diz também o que você achou de todo o meu discurso eloquente? – olhava pra ela com olhos de fascinação. Era uma garota muito bonita, com um corpo bastante sensual, apesar da saia que ela usava não deixar ele visualizar bem como era suas pernas. Mas com uma cruzada de pernas que ela deu, pode perceber que tinha cochas grossas que pareciam ser bastante firmes. Quando sorria formavam em suas bochechas duas pequenas covinhas, o sorriso era pequeno, porém muito brilhante. Cabelos negros, olhos negros, muito vivos e compenetrados. Toda aquela mulher era adornada por movimentos leves e sutis, mas não delicados, eram firmes, só aconteciam em momentos muito precisos.
- Nossa! – exclamou ao reparar tudo isso.
- Que?
- Nada não. E aí, você não vai responder as coisas que te perguntei?
- Então ou. Sinceramente eu acho que faz sentido muita coisa que você falou, só não concordo muito da maneira como você falou. Mas tipo assim, isso tem me deixado incomodada já faz algum tempo sabe? Por que tipo assim, são meus amigos sabe e eu gosto de estar com eles e eu acho que muita coisa que eles fazem é boa, mas tem outras que é foda, entende? E tipo assim, quem sou eu pra julgar também? Mas é isso, sei lá, eu acho que to meio perdida no meio de tudo isso, às vezes eu olho e não sei pra onde ir, o que fazer. Mas eu quero mudar as coisas sabe, eu sei que precisa mudar, é por isso que eu tento, que eu me organizo coletivamente, mas sei lá, as vezes parece tão distante. Ai... – parou e soltou um suspiro – e tipo assim, parece tão distante por causa das próprias pessoas, as mesmas que querem mudar as coisas, eu também devo fazer muita coisa errada, sei lá – mais um suspiro.
Após ouvir tudo isso, a fisionomia do rosto de Nicolas começou a mudar mais uma vez, estava ficando parecido com a mesma de quando ele estava discursando energicamente em pé para ela e seus amigos, isso de uma certa maneira assustava Sônia e lhe causava um pequeno aperto no peito, talvez por medo.
- E se tudo isso fosse uma grande bobagem Sônia? Tudo o que eu disse até agora, tudo que você acabou de dizer – ele já estava mais uma vez dominado por aquela fisionomia extremamente eufórica – Talvez minha querida a maior armadilha que a humanidade criou a si mesma foi ter entre aspas, “evoluído” – disse isso simbolizando com os dedos o sinal de aspas – Porque acabamos desenvolvendo a capacidade de pensar sobre o próprio pensamento e consequentemente isso acaba nos colocando em um estado de agonia eterna. Por que no fundo Sônia, pouco importa, a natureza e o universo estão cagando e andando para todas as nossas questões filosóficas. Num futuro distante por mais que alcancemos o comunismo, o perfeccionismo, um dia o sol vai explodir e aí tchauzinho pra humanidade.
- Mas quem sabe a gente não se desenvolva tanto que consiga migrar para outra constelação.
- Há! Que perspicaz você Sônia. Eu ainda não perguntei, mas afinal que curso você faz?
- Eu faço filosofia e você o que faz da vida?
- Filosofia, sim filosofia. Não ensinam essas coisas no curso não é Sônia?
- Na verdade ensinar eu não sei, mas tem matérias sim que falam sobre, na verdade a maioria, só que de um modo diferente. Mas e aí o que você faz da vida?
- Eu vivo de bicos. É essa a lógica atual do mundo meu bem, empregos temporários, mas ficar de olho e se ligar no time deles, que quando acaba um você consegue outro.
- E onde você aprendeu todas essas coisas?
- Eu também já fiz faculdade um dia. Cursei direito provavelmente na mesma universidade que vocês, na pública.
- E você nunca pensou em seguir na área? O que aconteceu? Você criticou a gente, mas parece ter vindo da classe média também.
- Acho que não tão média assim, não tinha carro como vocês, dificilmente grana pra ir no bar com os amigos, se bem que eu não tinha muitos amigos... Mas caramba Sônia! A gente está se desviando do foco, a minha vida não importa, o que importa são as questões sobre as quais a gente estava dizendo.
- Humn sei, dá pra ver que você é meio fechado né.
- Menina, menina. Enfim, pra finalizar: mesmo sabendo que tudo isso um dia vai explodir e que não temos a certeza se vamos conseguir migrar pra uma outra galáxia ou não, a questão é que enquanto isso temos que tentar viver o melhor possível, não é? E com certeza o capitalismo não é a melhor pra isso? Mas o que fazer então? Me diz Sônia o que fazer?
- Sei lá. To começando a achar que você fala de mais e reproduz tudo o que critica.
- Provavelmente, mas acho que somente em partes, mas quem não? Somente aqueles que não criticam né. Mas é isso! Pra que criticar Sônia? O negócio acho que é dar o passo seguinte, fugir dos planos perfeitos, parar de querer ter a resposta, mas agir, agir no sentido de viver melhor, de que todos vivam melhor. Eu acho que nós dois demos o passo seguinte Sônia, eu não seguindo minha carreira, você só pelo fato de ter ficado aqui, boicotando essa porra toda. Até aonde a gente pode chegar? Agir livremente sem moralismos, até onde você consegue ir Sônia?
- Nossa, tem hora que você fala muito confuso. Não sei se eu to entendo. Mas sei lá, eu acho que é isso sabe, ter paciência e ir tentando do jeito que der, parar de perder tempo falando mal dos outros, enfim fazer o que acha certo fazer.
- Você se sente atraída por mim Sônia? Antes que você ache que tentei dar um golpe de mestre machista, não estou me referindo a uma questão sexual, mas sim enquanto personalidade. Você se sente atraída pela minha personalidade Sônia? Eu sinceramente achei a sua espetacular, acho que conseguimos desenvolver uma intimidade um com o outro, não profunda porque isso leva tempo, mas um laço íntimo interessante. Acho que a questão sexual deve ser meramente consequência disso tudo entre as pessoas.
O rosto da garota ruborizou. Olhando pra ele apesar de ter mais idade, dava pra notar que ainda era um homem bonito, mas não era essa a questão. Uma grande quantidade de sentimentos confusos girava em sua cabeça, enquanto eles falavam tudo isso, continuavam bebendo e bebendo rápido e a medida em que as cervejas iam acabando os garçons iam trazendo outras.
- Mas então você quer que eu transe com você? – disse Sônia inesperadamente.
- Não, claro que não, aliás, acho que depende – era ele agora que estava embaraçado e isso causava certa satisfação nela, por finalmente tê-lo deixado assim.
- Ah, deixa isso pra lá – respondeu ela.
Os dois ficaram calados durante algum tempo, ambos olhando para o chão.
- Talvez eu esteja muito mais perdido do que você Sônia. Olha pra mim Sônia, com certeza não tem ninguém aqui nesse bar parecido comigo. As vezes  dar o passo seguinte acaba nos deixando bastante isolados. Toma muito cuidado com tudo isso.
- Ué, então você está descartando tudo o que acabou de dizer – respondeu ela num tom de indignação.
- Não, claro que não, é só que às vezes todas essas decisões malucas pesam, mas o que é que não pesa nessa vida né?
- Pois é.
- Quer saber, tá afim de dar mais um passo? – disse Nicolas recuperando suas energias – que tal parar de escutar essas porcarias de música e ouvir algo decente, aliás algo decente ainda mais em vinil.
- Nossa! Aí sim hein, onde?
- Lá em casa. Eu tenho uma coleção interessante de vinis lá. A maioria de música clássica e jazz, qual você prefere?
Sônia titubeou ao ouvir aquela proposta. O aperto de medo em seu coração estava maior naquele momento, mas como uma fagulha tomou uma decisão dentro de si sem pensar muito nas consequências, parecendo que sua boca agiu mais rapidamente do que seus próprios pensamentos.
- Eu prefiro jazz, mas se a gente for tem que ser agora então.
Nicolas já se levantou pegando a comanda para poder pagar a conta, ela só apanhou a sua bolsa e foi atrás dele e foram até o balcão e acertaram o que tinha que acertar.
- Você tá de carro?
Nicolas apenas sorriu dizendo com a cabeça que não.
- Então a gente vai no meu. Vem tá aqui bem pertinho.
E realmente estava. Não demoraram nem dois minutos para chegarem e entrarem no carro.
- Já vou colocar uma pra gente ir aquecendo então – colocou então o álbum My Favorite Things de John Coltrane.
- Uau! Esse álbum é maravilhoso, um dos meus favoritos dele – ambos riram com esse comentário por causa do próprio nome do álbum – é um som muito educado e extremamente relaxante.
- Nossa com certeza, eu adoro ele também. Ou você tem que me guiar até onde é sua casa, é aqui perto?
- É sim, é ali no Santa Maria, você pode fazer o contorno, pegar a Belarmino para poder cair na João Naves, dae depois do posto você desce e algumas pra baixo você vira, a hora que for pra virar eu te aviso, dae anda só mais um pouco e a gente chega.
E assim aconteceu, não demoraram nem dez minutos para chegarem à casa dele. Era uma casa de portão bege, porém em várias partes a tinta já estava descascada. O muro era de tinta branca, mas também havia várias manchas escuras no mesmo. Entraram e após o portão havia uma pequena garagem e no fundo dela uma porta pintada também de tinta bege e também descascada que dava acesso à sala. Pelos ornamentos da porta e quando entrou na sala, Sônia pode notar que devia ser uma casa um pouco antiga, provavelmente construída na década de 80, ao menos os ornamentos indicavam isso e parecia que fora reformada poucas vezes. Era pequena, a cozinha era separada da sala apenas por um balcão.
- Posso ir ao banheiro?
- Claro. Fica dentro do quarto, é só virar aqui a direita que você vai ver a porta do quarto e lá dentro se você olhar a esquerda você vai ver a porta que dá acesso ao banheiro.
Sônia se dirigiu ao banheiro e antes de entrar nele não pode deixar de reparar no quarto. Continha apenas uma cama de casal, com lençóis bastante amarrotados e dois travesseiros bem gordos, todos na cor verde escuro, um guarda-roupas pequeno e uma escrivaninha do lado da cama. Entrando no banheiro viu que era todo azulejado na cor azul, aquilo causava até um impacto na visão. Viu também que apesar de pequeno estava bastante limpo e pensou “bom, ao menos com a higiene, ele não é um porco”. Fez a sua toalhete e saiu deparando-se com Nicolas, parado em pé, olhando fixamente pra ela. Aquele olhar era penetrante, fazia com que ela se fixasse nele, parecia que seus olhos vasculhavam o íntimo dela. Isso fez com que Sônia lembrasse toda a situação diferente em que estava. Provavelmente nunca vivera algo parecido e isso causava cócegas internas nela ao mesmo tempo aquele aperto no peito ainda permanecia.
Nicolas então lhe puxou pela cintura, sua mão era grande e grossa. Isso fez com que ela soltasse um grito fino e praticamente inaudível e antes que terminasse o mesmo ele a beijou. Ambas davam beijos de extrema gana e desejo, mordiam com força a boca do parceiro de uma maneira que podia sangrar, mas não chegava a acontecer. Entrelaçavam suas línguas com voracidade e intercalavam esses momentos de força com momentos em que apenas ficavam parados abraçados, se olhando e ofegantes. A troca de olhares entre eles parecia que servia de combustível para que voltassem a se devorar e logo para além dos beijos, começaram a beijar também os pescoços um dos outros dando mordidas e às vezes uns chupões bem forte.
Foi questão de tempo para que Nicolas descesse do pescoço de Sônia para os seus seios e quando começou a beijar e a morder eles na região do decote dela puxou com força para baixo a blusa revelando assim os dois seios de Sônia. Eram grandes e firmes, os mamilos pequenos e roxeados, logo Nicolas passou a beijá-los também, chupava-os com uma força que ia crescendo progressivamente e intercalava com carinhos com sua língua. Nisso Sônia começou a soltar pequenos gemidos, passou a mão nos cabelos dele puxando com força para trás, de uma maneira que ele olhou para cima fitando novamente o olhar dela.
Ela então se afastou e começou a tirar toda roupa, ele fez o mesmo, eram lindos os dois nus ali se olhando, mas isso já não importava mais. Voltaram aos beijos vorazes e Nicolas a jogou sobre cama, começando a lhe fazer sexo oral não com a mesma pungência, mas bem de vagar. Os gemidos dela iam crescendo, mas de repente ele parou.
- Não! Por que você fez isso? Continua – perguntou ela, mesclando indignação e graça.
- Vou colocar uma música pra gente. Desculpa, espera só um pouco – respondeu limpando um pouco a boca. Então levantou da cama, de pé, olhou mais uma vez pra Sônia, ela respondia seu olhar e mordiscava os lábios. Antes de sair do quarto, Nicolas apagou a luz, o que deixava a garota mais ansiosa ainda.
Na escuridão e passando suas mãos pelos lençóis que estavam um pouco gelados, Sônia escutou os primeiros ruídos de um aparelho de vinil sendo ligado e de quando a agulha está para cair sobre o disco. Quando o disco começou a tocar, percebeu que era um disco da Janis Joplin e a primeira música era Piece of My Heart. A música tocava e Nicolas não retornava ao quarto, percebendo isso ela já estava ficando impaciente.
- Ei! Você morreu aí? Foi abduzido? – Perguntou Sônia.
Acabando de dizer isso, a segunda música do disco começou, era Summertime, ouvindo os ruídos dos passos, notou que Nicolas voltava ao quarto e parou na beira da cama. Ela se arrastou até lá, ele a puxou e ficaram os dois juntos de pé, beijavam-se e faziam carícias no mesmo compasso da música.
- Pensei que você só tivesse discos de jazz e música clássica.
- A maioria é, mas nada como um bom rock n roll/blues para esses momentos.
Ela somente sorriu satisfeita diante disso que ele respondeu. Percebendo que a música estava chegando ao final, Nicolas a conduziu para cama e colocando seu corpo entre as pernas dela, penetrou num gesto que no inicio foi um toque delicado e que depois se concluiu num movimento rápido e forte. Sônia respondeu apenas com um suspiro curto, como se tivesse tomando um susto.
A terceira música começava, era Cry Baby. Os movimentos do sexo continuavam acompanhando o compasso da música, quando chegava o refrão, ficavam mais fortes, não só os próprios movimentos como os gritos e gemidos dos dois e a medida que o tom da música ficava mais calmo, eles também se controlavam um pouco. Sônia cedia seu pescoço para que Nicolas o mordesse, ele fazia isso, transitava também sua língua entre os seios dela, sua boca e seus ombros. Mudaram de posição quando mais um refrão se anunciava, ela agora estava por cima e os movimentos estavam mais rápidos e fortes, ele apertava a cintura dela com toda força que tinha.
Era linda a visão daquela mulher em cima dele, parecia uma deusa ancestral que conduzia aquele mero mortal com extrema perfeição. Isso significava para ele, estar unido não somente com Sônia, mas com um todo, parecia viver um momento de transe e talvez de fato estivesse. Seus gemidos juntos com os dela formavam uma harmonia perfeita. Nicolas sentou-se, agora acariciava lhe o rosto, passava as mãos em seus cabelos e ela devolvia os carinhos. A próxima música virou no tocador, era Get It While You Can. Nessa posição de fato, pareciam unidos, agora ela gritava mais do que ele, talvez porque o sentisse por completo. Transavam tão forte nessa hora que as estruturas da cama tremiam bastante, a fisionomia do rosto dela parecia refletir dor e satisfação. Gritava com os olhos fechados com o rosto inclinado para o teto e de vez em quando, voltava-o na direção de Nicolas, com um olhar que parecia devorá-lo. Não se sabe se o que chegou primeiro foi a próxima música ou orgasmo deles, ambos muito belos. Seus corpos se contorceram, como se tivessem sendo eletrificados, cravaram as unhas nas costas de ambos e mesclaram suas vozes num último gemido roco que esvaiu suas energias.
Deitaram ao lado um do outro, ambos olhando para o teto e de mãos dadas, a última música daquele lado do vinil era Maybe. Os dois quando escutaram a música, abriram sorrisos largos, como duas flores brancas desabrochando num escuro jardim e no mesmo instante suas pétalas voam na direção uma da outra. Não tardou para que adormecessem antes mesmo que a música acabasse. Por estarem dormindo não perceberam que a agulha não voltou automaticamente e por isso continuou chiando, arranhando o final do vinil.


Sônia despertou, estava bastante suada pelo calor que fazia ali. Continuou deitada e observou todo aquele quarto, bastante simples. Olhou para o lado e viu Nicolas nu, deitado de bruços, roncando levemente, quase inaudível. Observava agora a si mesma, olhou entre suas pernas e um pouco do sêmen dele escorria dali. Como fizera aquilo? Como transou sem camisinha com um homem desconhecido? Mas não se tratava somente disso, ela tomava remédio e muitas outras pessoas cometem esse tipo de atitude. A questão era que homem estava ali. Depois de tudo aquilo que ela assistiu no bar, mesmo assim Sônia estava ali. Levantou-se, vestiu sua calcinha e caminhou até a sala. Percebeu a agulha arranhando no tocador de vinil e desligou o aparelho. Pegou o celular na sua bolsa e viu que tinha várias chamadas não atendidas de Júlia e também da sua mãe.
O que ia dizer pra elas? Poderia inventar uma mentira. Pra sua mãe, dizer que dormiu na casa de Júlia e pra esta, dizer que foi pra casa logo depois que eles foram embora e que pegou no sono e não viu as ligações. Mas sua mente estava nebulosa. Ter dormido com aquele homem transgredia uma certa moral que Sônia tinha até então, mas ela mesmo já vinha colocando essa moral em cheque há algum tempo. De repente, sua mente passou a operar friamente. Naquele caso era fácil, ninguém sabia que estava ali e quem era aquele homem? Se quisesse no mesmo instante sufoca-lo com um travesseiro, provavelmente demorariam bastante a descobrir o corpo, pois parecia que ele não tinha ninguém. Será que não tinha mesmo? De acordo com a intuição dela, não.
Mas então, do estado de frieza sua cabeça subitamente voltou-se para uma angústia dilacerante. O passo seguinte estava dado, mesmo que secreto estava dado. E se esse homem começasse a querer se encontrar com ela frequentemente? Pior ainda: e se ela é que quisesse isso? E se ele a rejeitasse? E caso não. E se os dois quisessem estar um com o outro, como seria lá fora? Aí todo o segredo cairia por água abaixo. Mas pra quem tinha chegado até ali, por que não continuar? Qual era a diferença? A opinião alheia? “Que se foda a opinião dos outros”, pensou ela.
Foi até a cozinha, abriu a geladeira e visualizou uma garrafa de vinho tinto. Tirou a rolha que estava fácil de ser removida, procurou um copo por ali e encheu. Virou de uma vez e tornou a encher. Sentiu frio, lembrou nesse momento que estava só de calcinha e observou que a janela da sala estava aberta. “Quando que ele abriu essa janela? Quando veio colocar a música? Ou ela sempre esteve aberta?”.
Com o copo na mão voltou para o quarto. Olhou para a cama, Nicolas estava praticamente na mesma posição. Sônia então se aproximou mais da cama, bebeu um pouco mais do vinho e mais uma vez perdida em seus pensamentos lembrou-se que uma pequena atitude, mesmo que não seja errada, pode significar muita coisa, ela já havia passado por isso antes. Geralmente a decisão sobre tal atitude aparece subitamente e você tem que decidir ali na hora, se falar não, provavelmente será uma oportunidade que nunca mais voltará, e sua vida continuará calmamente. Mas caso diga sim, essa mesma vida pode ter todas suas estruturas mandadas pelos ares e as vidas das pessoas em sua volta também. Quando esse momento de decisão apareceu pra ela, titubou bastante, mas acabou no fim dizendo não.
Voltando a si, recuou e encostou seu corpo na parede e terminou de beber o vinho. Nesse instante conseguiu lançar um olhar tanto para a cama como para a porta do quarto praticamente ao mesmo tempo. Suspirou e fechou os olhos, dando um passo adiante...


Incertezas

O destino,
menino levado e esperto,
é incerto...
Traz na surpresa
a incerteza
e na via contrária
a alegria libertária
de quem sabe o que quer:
ser feliz se puder,
mas livre do arrependimento
porque vive plenamente o momento.

O destino,
menino levado e esperto,
é certo quando o objeto à frente
é o que se quer,
é o que se sente!

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Seco


Engoliu em seco.
Aquelas palavras significavam mais do que pareciam. Ou deveriam.
Deixou o garfo sobre a mesa e perguntou o que ela queria dizer com aquilo.
Foi ignorado.
Pede outra garrafa.
Ele chamou o garçom. Pediu outro vinho. Outro pedido.
Seco.
Ele repetiu.
Não sobre o vinho. Sobre ela.
Nenhuma resposta.
Mas queria saber. Aquilo não podia ser uma simples frase.
Permaneceu olhando pra ela.
- Você tem que experimentar o filé.
Mastigava o ar. Olhos fixos.
Ela, cabeça baixa, desenhando no prato com o garfo.
- O ponto é perfeito.
Pensou, então, que o chef deveria gerenciar sua vida. Tinha dificuldades em estabelecer pontos perfeitos. Mas não disse nada.
- Desmancha.
Talvez fosse essa a intenção dela com a frase inicial.
Ele insistiu no significado.
- Os acompanhamentos também são excelentes.
Ignorado. Sem cerimônia. Outra vez.
Pensou que talvez o que ela havia dito não significasse nada demais.
O que não pensou foi que sua inquietação talvez fosse a resposta.
E, concentrando o olhar no que estava a frente, decidiu analisar, com cuidado, os acompanhamentos que pediria para o seu filé.



segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

PAPO DOMINICAL EM PLENA SEGUNDA

DOMINGO NO QUARTO

Gil fez seu Domingo no Parque.
Na roda, José, Juliana, João.
Sorvete, espinho, uma canção,
No ritmo, compasso do coração.

Eu, meu Domingo no Quarto.
Cortina fechada para o mundo,
Poema-euforia, quase infarto.
Retrospectiva em um segundo.

A hora apressa, o dia passa,
Na janela, um triste retrato:
A vida, a raça, tudo às traças.
Uma rotina que já estou farto.

O presente assa,
Queima a carcaça.
Hoje, assim-assado,
Já virou passado.

Fogo, cinzas, estilhaço,
Queimando como mormaço.
O peito ardendo, inchaço.
Faca, o que é que eu faço.

Não dou um passo.
De novo, caio no laço.
A minha vez, repasso.
Deixo marca,
Marca-passo.
Mais um domingo
Sem cara de Sunday,
Mais um dia findo
Sem gosto de Sundae.


Obs:

• DOMINGO NA QUARTO, poema extraído do livro “Só Concursados – diVersos poemas, crônicas e contos premiados” – 2010.