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quarta-feira, 16 de maio de 2007

Morto por engano


-Esse resultado é impossível, totalmente improvável!- disse-me, enquanto eu o olhava atônito. Em seguida localizou os números de telefones constantes na folha e eu ouvi o som de teclas sendo pressionadas.
-Alô, é do laboratório? Aqui é o doutor Carlos, do Serviço Municipal de Saúde.
Por favor, queria checar o resultado de hemograma de um paciente meu.
E após a conversa meramente técnica, voltou-se para mim e exclamou.
-Está tudo bem rapaz, esfrie a cabeça!- E me abriu um largo sorriso. Sinceramente? Eu não poderia imaginar que atrás daquela frieza houvesse alguém humano e, aquela impressão de descaso me abandonou completamente.

E eu saí do pequeno consultório e era muito bom me sentir assim. Era fantástica a sensação que o sufocante calor do sol de 41 graus exercia em meu corpo e, ao atravessar a rua, solto no meio do nada e ainda um tanto desconsertado escutei o assustador som de uma brusca freada e ouvi a voz de mulher, uma senhora de meia idade, que ao volante do veículo gesticulava nervosamente. E mais assustada do que raivosa ela me xingava , me chamava de louco e que eu não dava o menor valor pra vida. Ah! Como estava enganada! pensei. Ela tivera a sua chance e errara. E eu me lembro que essa história de horror havia começado três dias antes, exatamente num 23 de dezembro, por volta das 16 horas.

Havia saído do laboratório e acabara de chegar em casa. Por por mera curiosidade abri o envelope e verifiquei os resultados e, na contagem dos glóbulos brancos fiquei surpreso, já que valor encontrado superava em muitas vezes o valor de referência. E isso, no momento me assustou e a perplexidade tinha um motivo; a leucemia. Eu sempre me interessara por assuntos ligados a medicina, portando havia lidos alguns livros, principalmente os tratavam de cancer, leucemia e alguns outros. E aquilo me preocupou, já que o leucêmico apresenta uma contagem absurdamente alta de glóbulos brancos, fora o fato que os sintomas que vinha desenvolvendo eram bem parecidos aos decorrentes daquela doença. E isso me apavorava, já que a probabilidade de se encontrar medula que seja compatível com a sua, se dá numa proporção menor de uma por mil, ainda mais que o banco de doadores de medula era praticamente inexistente e isso, infelizmente, gerava mortes prematuras. Portanto, se eu fosse portador da doença, significava que minhas chances eram praticamente inexistentes. Nervoso , tentei ligar pro médico do posto de saúde que me havia solicitado o exame. Disquei algumas vezes e na insistência acabei conseguindo. Ao atender, ouvi o alarido, um misto de vozes e lamúrias daquelas pessoas fodidas que como eu nada tinham a fazer, a não ser estar ali mendigando um mínimo de cuidados com o seu ser. A atendente, friamente, disse-me que não podia transferir a ligação para o doutor e que ele estava muito ocupado com outros pacientes mas, acho que fui tão convincente ao choramingar ao telefone que ela não viu outra alternativa a não ser passar a ligação. Ainda a escutei relatando ao doutor quem eu era e o estado em que me encontrava.
-Sim, o que foi? A sua perguntada me pareceu desinteressada.
- Alô, doutor! estou apavorado pois o resultado do meu hemograma apresentou uma contagen absurda nos glóbulos brancos
E após, discorri sobre o valor constatado e ele então argumentou algo que me fez ficar mais angustiado. Me perguntou se eu tinha por hábito manter relações relações sexuais sem o uso da camisinha. Evidente que a insinuação sugeriu a Aids e, eu não usava preservativos pois aquilo me brochava. Mas, a sua dúvida surtiu em mim uma mudança devastadora e, em fração de minutos, deixei de me sentir um leucêmico e me transformei no mais mortal dos aidéticos.
Na época eu estava morando com uma dona. Rita era o nome dela e eu a conhecera na noite, numa espelunca, uma boate no Centro de São Paulo, onde ela era a crooner de um pavoroso conjunto que só tocava boleros. Um pouco mais de conversa e ele se descartou rapidamente de mim e sem que tivesse tempo para comentar os demais valores já que ele alegava que seu turno estava praticamente no fim.
- Sim doutor, está certo! O senhor só volta a consultar no dia 26 à tarde. Está certo. Estarei aí então.- E dito isto desligamos.
Após aqueles momentos angustiantes, tudo pareceu perder o sentido e eu me encontrava perplexo. Fui na cozinha, abri o armário e peguei a garrafa de vodca e enchi o copo.
-Caralho! Será que vou morrer? – eu balbuciava.
E cada vez mais puto da vida, com a minha vida, diga-se de passagem, eu ficava me questionando, andando de um lado pra outro.
-Vagabunda! Só pode ter sido essa vagabunda que me passou a doença! Foi ela sim!
E isso me tornava cabreiro, fodido, um desgraçado querendo se agarrar a qualquer coisa mas que sabia que não havia nada a se apegar. E assim foi durante o resto da tarde, emborcando bebida e estourando meus miolos com dúvidas. Ah, se ela estivesse aqui, nem que fosse pra rir da minha desgraça mas, ela não estava e nem pra isso me servia. E eu estava ansiosos, aguardando a sua volta já que ela fora visitar a sua mae que estava internada no asilo municipal e onde foi levar uns pacotes de bolachas, salgadinhos e uma meia dúzia de maças vermelhas que tanto a velha gostava.
-Cadela! Como pode fazer isso comigo? –
Já era o final tarde quando ouvi o barulho de passos no corredor e o som da chave sendo penetrada no buraco da fechadura. Nós morávamos no 1o andar de uma pensão próxima do Teatro Municipal. Era um prédio antigo, três andares e mal conservado mas o que nosso dinheiro podia pagar.E do quarto, cheirado a mofo, paredes imundas e repleto de roupas entulhadas tínhamos o acesso a outros dois pequenos cômodos; cozinha e banheiro. Tão logo a porta se abriu eu voei pra cima dela.
-Vadia! Você me passou a doença! Você me matou!! Eu gritava, tentando agarrar o seu pescoço. E ouvia o ranger de portas se abrindo no corredor e eram alguns moradores assustados com aquela gritaria toda.
-O que vocês estão xeretando, cambada de idiotas! eu e o álcool berrávamos para eles.
E a Rita, completamente assustada, não sabendo do que se tratava tentava se defender como podia e foi aí que eu senti suas unhas me penetrando o braço e a dor foi intensa.
-Do que você está falando? Está maluco homem? – E me empurrou com força e eu caí sentado no sofá, todo esburacado por brasas de cigarro. Eu já não tinha forças nem dicernimento pra pensar ou tentar qualquer coisa, já que me encontrava razoavelmente embriagado. E só apontava para a folha de papel que calmamente zombava de mim, bem ali na mesinha de centro.
-Você me matou! Você me matou! Por que fez isso comigo?
E então ela pegou o resultado e foi me perguntando o que significava aquilo. E eu, atordoado, um tanto sem coordenação, insistia que ela havia me transmitido a Aids. E a Rita, lia e relia os números da folha e não entendia absolutamente nada mas, a pressão que eu exercia era tanta que ela se desesperou.
-Então nós vamos morrer mozinho? me perguntava, com os olhos já borrados por um filete negro, molhado, que descia pela face, ultrapassava o nariz e morria no canto dos seus lábios. Provavelmente o rimel, pensei.
-Vamos sim, sua vadia! é isso que dá ficar trepando com todo mundo! E limpa essa porra de olho! - eu praguejava
Naquele fim de tarde e início de noite não tivemos vontade de fazer absolutamente nada. Não comemos, não rimos,não conversamos e, só bebemos. Bebemos tudo o que havia e pudesse ser bebido. Por volta da meia noite, tropeçando um por cima do outro, resolvemos dormir.
-Ah mozinho! Será que não existe a possibilidade de haver algum engano? Era ela tentando nos animar.
Eu nada respondi e olhei naquele rosto bonito, nas suas feições cansadas e senti o desejo de possuí-la. Então minha boca cravou na sua e eu senti o seu gosto misturado ao do álcool, enquanto suas mãos ágeis tentavam me desabotoar as calças. Me afoguei no seu abraço, no seu corpo e no resto do seu perfume e, então a penetrei. Penetrei fundo, forte, numa dança desesperada de dois demônios lamentando o perdão que nunca viria e, esse desejo infâme, insano, aliado a amargura nos fez gozar ao mesmo tempo. Tudo terminado, silenciosamente cada um virou pro seu canto e nada mais falamos. Um pouco mais, vencida pelos efeitos do álcool e do cansaço, ela adormeceu.
Eu, evidente, não conseguia dormir e entao pensei na vida. Relembrei das coisas que tive, das que deixei de ter, dos meus erros, dos meus acertos. Lembrei da única filha. Tata, uma linda princesa de 4 anos que deixara junto com a mãe, numa cidadezinha de interior. Me recordei da última vez que estivemos juntos e que nesse dia ela estava feliz, dentro daqueles olhinhos negros, tão vivos, que brilhavam como raios e que não me abandonavam por um minuto. E revivendo, eu podia sentir o amor daquela pequena princesa se esvaindo dentro de mim. E, revivia esse momento como se fosse um magnífico quadro , pincelado por mãos de um Picasso, e o que me fazia acreditar que ainda havia algo de sublime ante tanta desilusão. E ela sorria e no seu jeitinho de menina prodígio, me implorava.
-Ah papai, me leva na praia? A Tata quer ir na praia, papai!
E eu ali, agora, lamentava pelo futuro que não poderia lhe dar, do amor que não poderia compartilhar e, o mais triste, talvez, nem a praia eu tivesse tempo ou condições de leva-la. Acompanhado desses sentimentos tristes e ruins acabei adormecendo. Aqueles dias, em que pese o Natal, não nos trouxeram alegria alguma e, eu já desistira de culpar a Rita e, toda vez que nos olhavamos, só havia tristeza, e era que se nos dissessemos " Pô! você até que era um sujeito legal" e, talvez fosse eu que já estivesse doente e, nesse caso, teria sido eu a contaminá-la. Bom, isso não fazia a menor diferença agora e, só estávamos ali, juntos, compartilhando essa expectativa, calados e unidos. No início da tarde do dia 26 lá estava eu no posto de saúde e aguardei pacienciosamente a minha vez dentre aquela multidão de miseráveis.
E então me chamaram e entrei na saleta do doutor. Ele leu o exame e expressou a sua opinião e, logo depois, ligou para o laboratório e, chegaram a conclusão que o resultado do meu exame era normal e o erro se dera pelo fato do rapaz, responsável pela transcrição, haver invertido umas das linhas o que comprometera totalmente o resultado.
E foi assim que saí de lá. Então eu ouvi a freada e a mulher me xingava enquanto eu lhe dava as costas e seguia em frente e dobrava algumas ruas até chegar a ponto de ônibus e tudo me pareceu estar bem. E eu olhava as pessoas e as achava interessantes. E eu olhava cada rosto, feliz, infeliz, e imaginava quantos problemas haveriam de ter em cada alma daquelas. E o ônibus chegou e no esforço eu consegui entrar e, lá dentro, amassado como folha de papel prestes a ir pro cesto de lixo eu me lembrei da minha princesa e sorri comigo mesmo. As pessoas me olhavam curiosas e o riso, inicialmente tímido foi se tornando sonoro e indiscreto.
-Papai, vamos à praia?
-Vamos sim Tata! E vamos comprar uma bola colorida e um balde com pazinha e muitas estrelinhas para você brincar na areia.
E eu deixava a imaginação fluir e, mesmo ali, espremido, socado, era como se eu pudesse sentir a brisa do oceano me acariciar o rosto. Era como estivesse exalando os aromas do mar e vivenciando o mesmo habitat de todas aquelas exóticas e fantásticas criaturas.
E a sensação era ótima e me senti vivo,outra vez.

8 comentários:

  1. Dizer o quê véio desgraçado? Está magnífico! Não conseguia parar de ler, a despeito do tamanho. Senti uma grande influência do velho Buk.

    Congratulações!

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  2. Não é todo mundo que têm uma segunda chance, realmente. Uma parada dessas aí é daquelas que transforma a vida de um afulano (pode tanto se tornar religioso quanto o mais desregrado curtidor dos dias...)

    Conto muito maneiro, cara. A gente vai lendo, lendo e nem repara no tamanho.

    Ficanapaz, Véio!

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  3. um conto jóia no melhor estilo do velho.

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  4. Bom conto. Apesar de considerar válido, particularmente não gosto de ... e viveram felizes para sempre.

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  5. Pois é, Roberto.

    Ele podia ter morrido de HIV, depressão ou mesmo se suicidado.

    Talvez a ex mulher impetrasse (com sucesso) uma ação judicial contra o Laboratório, a Rita estivesse mais preocupada que modelito usar na visita ao cemitério no dia de finados e a Tata, diariamente enchendo o saquinho da sua mamãe com o previsível:
    -Mãe! Cadê o papai que nunca mais apareceu?? Ele tinha me prometido que me levaria na praia.

    **Mas convenhamos.
    Ficaria longo demais e ninguém teria saco de ler ( Esqueceu que aqui só gostam de poemas e continhos curtinhos, curtinhos?)
    Achei melhor poupar a todos.

    hehehehe

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  6. bão, disse Osvaldo. digo ótimo...

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  7. Todo mundo vai morrer um dia, o problema é saber a data, isso ninguém quer. Eu achei o conto jóia, só achei falho o final pois, não seria mais humano, mais normal, ele avisar a companheira que não iam morrer, em vez de sair passear com a filha? Bom, eu senti uma emoção entre eles, então o normal seria ela estar junto ou ele avisa-la imediatamente.
    Mas no mais achei perfeito, meio final de conto de fadas, mas a literatura não é isso? De vida real chega a nossa.Parabéns.

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  8. Contos são contos. Ao contrário do senso-comum, a Me e o Roberto queriam que o fim fosse meio trágico. hehehehe.
    Mas vai um comentário sentimental sobre ele.
    Isso não foi conto de fadas. Tsso aconteceu comigo e foi na cidade de Londrina em 98. Eu estava em férias por lá e aproveitei o convênio da Unimed e fiz o maldito exame que me solicitaram aqui em SP. O doutor com quem falei ao telefone era o médico da minha mãe que, evidentemente apressado (estava saindo em viagem naquele fim de tarde) não teve a sensibilidade suficiente pra me acalmar.Eu havia postado a versão real no meu blog mas, achei íntimo demais e sem a cara do China. De tudo isso, fictício só mesmo a Ritae eu estava casado na época(ela é a ex que me refiro no conto)

    Foram os 3 piores dias da minha vida e nesses dias me transformei num oceano de transpiração.Sistema nervoso, evidente.
    Portanto conto de fadas e fim de novelas felizes, existem também.

    hehehehehe!

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