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quinta-feira, 8 de novembro de 2007

O chiclete, a formiga e o motoqueiro




Um chiclete largado na calçada, coberto de formigas.
A segunda coisa em que pensei, enquanto ia para o carro, foi: “Como será que a formiga lida com o chiclete, quando chega ao formigueiro? Será que essa maçaroca não gruda no ferrãozinho dela? E aí vem outra ajudar – e também fica presa? E puxa uma daqui, outra dali, tentando se soltar, e vem mais outra formiga para ajudar, e em pouco tempo uma teia pegajosa de fios cor-de-rosa prende dezenas de valentes soldados do formigueiro?”

Mas, se isso não acontecer, se conseguirem estocar a guloseima na despensa do formigueiro... como será depois, no inverno, quando forem comer o chiclete armazenado? Ficarão grudadas 'por dentro'?

Pois é; tive tempo para pensar em diversas possibilidades, porque sempre estaciono meio longe, a uns dois quarteirões de distância de onde pretendo ir. Em parte porque faço questão de estacionar na sombra, e por isso rodo até encontrar uma árvore bem copada. Mas também porque é um modo prático de driblar o sedentarismo a que o microcomputador nos obriga. E ainda porque não gosto de 'contratar os serviços' dos flanelinhas e gosto menos ainda de deixar meu brinquedo em estacionamento.

No meio do caminho, com meus pensamentos formigais, empaquei. Pensei: será que não estão grudadas no chiclete? A curiosidade me fez voltar até onde estava a bolota cor-de-rosa. Arranquei um galhinho de um arbusto e aproximei-o devagar do ajuntamento de formigas. Todas fugiram, assustadas, ainda antes que as folhas as tocassem. Todas menos uma. Essa tinha, sim, ficado presa. E eis que uma das formigas fugitivas volta até a prisioneira.

Não fez nada, limitou-se a ficar girando em torno da pequena vítima, enquanto levava as ‘mãozinhas’ à cabeça, repetidamente. A imagem do desespero.

Poucas horas depois, assisti a um acidente na rua Augusta.

O ônibus que ia à minha frente parou para dar passagem a um Vectra, que saía de ré do estacionamento de uma loja. Um motoqueiro, que ia à esquerda do ônibus, ultrapassou-o e foi colhido pelo motorista do Vectra, que não poderia tê-lo visto antes. E que saiu do carro atarantado, levando as mãos à cabeça, exatamente como a formiga fizera. E como fiz eu, que vinha atrás do ônibus.

Enquanto o segurança da loja se comunicava por rádio com os serviços de resgate, o atropelante girava em torno do atropelado, sabendo que não devia movê-lo. Desesperado como uma formiga.

Que pobreza de repertório no nosso gestual. Quer esqueçamos os documentos em casa, quer matemos alguém por um desvio do destino; quer sejamos humanos, quer sejamos formigas, tudo que nos ocorre fazer diante de uma tragédia é levar as mãos à cabeça. Não deveria haver uma gradação? Gestos que mostrassem os vários níveis do desespero?

... Que falta de imaginação por parte da natureza!

4 comentários:

  1. Ora, Liz, e o levar a mãos até a boca?

    Se bem que a boca fica na cabeça, mas não é um movimento considerado "levar as mão à cabeça"...

    Enfim, bem legal o texto!

    Abraços!

    Tiago

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  2. Liz, definitivamente você é genial!

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  3. ótimo!

    mas acho que a natureza foi genial, afinal, o mesmo gesto serve para as pessoas e para as formigas.
    hehehe.

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