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sábado, 6 de setembro de 2014

a ave que cagava diamantes fedegosos, a tipoia e a azáfama




há alguns anos, durante um bate-papo antes do início das aulas com o professor Marcelo Leite na Universidade Severino Sombra, presenciamos uma cena lamentavelmente cada vez mais comum: um funcionário da universidade, seguramente dos mais graduados (e abastados), havia estacionado seu enorme e reluzente carro do ano numa tal posição que "matava" três outras vagas, um claro recado aos demais funcionários reles do campus: "cambada de insignificantes, vão estacionar seus carros populares financiados em quatrocentas prestações em outro lugar. eu sou rico, lindo, inteligente e muito importante, eu sou a pessoa mais importante da universidade, quiçá do mundo todo. logo, ocupo todo o espaço que eu quiser, faço o que quiser, inclusive cagar em suas piolhentas cabeças sem valor." aquele remoto - e esquecível - episódio foi a pedra angular da Teoria da Expansão Espacial do Ego dos Seres Pseudo VIPs na Sociedade de Consumo Contemporânea. Grosso modo, a teoria parte do pressuposto de que quanto mais arrogante, cheia-de-si e besta a pessoa for, mais espaçosa ela é.

ontem, tive nova comprovação da teoria. estávamos eu e minha amiga Suzana Muniz fumando em frente ao Hospital Samaritano em Botafogo, quando um gigantesco Jeep Cherokee assomou à toda e parou com direito à guinada de pneus à porta do nosocômio, precisamente no meio da passagem onde cabem dois veículos grandes, atravancando a porra toda. As quatro portas se abrem simultaneamente e desembarcam quatro orangotangos esbaforidos, tendo o menos corpulento pouco mais de dois metros. Um deles oferece a mão à uma mulher que reconheci no ato pois já a havia visto na TV. a pobrezinha aparentemente tinha torcido o tornozelo e estava acompanhada de outra mulher muito parecida com ela, ou seja, tão esquálida, feia e desprovida de atrativos quanto. a tal acompanhante já entrou reclamando pois cinco segundos haviam se passado e ninguém trouxera uma cadeira-de-rodas à muito-sobremodo-demasiado-pessoa-célebre-rica-famosa-mais-importante-de-todas. o porteiro corre desabalado (azafamado é o termo mais apropriado, certo, Suzana?) para atender à ordem da integrante do séquito.

até aí, tudo mais ou menos dentro do script. contudo, eis que surge um "Corsinha". o motorista aciona a buzina e gesticula, pedindo a liberação do acesso à entrada do hospital. simples: bastava um dos brutamontes entrar no monstro e locomovê-lo poucos metros à frente; ao invés disso, ele limitou-se a olhar de esguelha e com cara de poucos amigos o pobre veículo de pobre, como se dissesse: "você faz ideia da importância da minha patroa? foda-se! trate de esperar!" vendo que a buzina não surtira efeito, desembarca do carro uma senhora muito idosa, deslocando-se custosamente com seu andador. o detalhe que me fez pensar: a idosa sorria. refleti: será que essa moça rica e famosa, cheia de pompa, circunstância e empáfia, viverá tanto quanto essa senhora do carro popular que sorri diante de uma adversidade boba? se viver, com toda a descomunal importância que dá a si mesma, com todo o seu dinheiro e mordomias, impotente ante a ação implacável do tempo, será feliz?

ao final de tudo, fiquei matutando sobre como assim caminha a humanidade e onde descambaremos. uma interjeição seguida de uma expressão não me saía da cabeça, mas sem exclamação, posto que branda. sem nenhuma potência ou importância, qual um programa da rede globo: ai. que loucura.

2 comentários:

  1. Assaz pertinente vosso texto, meu caro. Em meu serviço vivencio atitudes semelhantes, onde alguns filhos-de-porcas-paridas também solapam as vagas alheias com o imbróglio de colocar suas carruagens de maneira pouco convencional... Quanto à humanidade, é realmente preocupante... Sempre me pergunto isso, quando entro em um estacionamento lotado: "onde vamos parar?"

    ficanapaz, Seu Cruz!

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  2. há muito percorria as veredas internáuticas em busca de palavras que ajudassem a construir o meu eu; exulto em encontrá-las aqui, tão disponíveis e límpidas quanto a preciosa aguardente; desta forma, ufano-me com o autor e a este ofereço um brinde!

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