Páginas

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Um quarto em chamas




Um poema arranha o vidro da janela com as unhas, anunciando sua presença numa angustiante e lenta ranhura, como às vezes faz a chuva num começo de tempestade

Depois bate rispidamente na vidraça, golpeando, esmurrando

Impondo-me a fazê-lo existir

É sempre assim, inesperado e insistente e não tenho certeza se já me acostumei a isso

Forçando sua entrada se arremessa contra a superfície transparente e cortante, sem medo de que seu corpo seja lacerado se, com o impacto, tudo se estilhaçar

Ele deseja existir e me escolheu para arranca-lo de sua carne ao devora-lo vivo

Enxergo seus lábios, furtivamente sussurram algo

Tem dentes sujos e olheiras escuras, seus olhos são minúsculos

Então levanto da cama e apanho alguns livros, arranco suas folhas e preparo no meio do quarto uma fogueira para receber meu novo amigo incendiário

As chamas crescem, o vidro se estraçalha, o ar se torna pesado e irrespirável e a presença monumental do poema toma conta de todo o ambiente

Sinto seu impacto no peito, a boca instantaneamente seca e os olhos coçam

Fagulhas rebrilham pelo ar tremeluzindo à minha volta, estou em chamas e minhas mãos são torrões de carvão, negros e fumegantes

Há tanto calor dentro do quarto que insetos e moscas caem mortos, ardendo ao meu redor, as lâmpadas explodem e a madeira das estantes range endemoniada

Em delírio, como amantes suicidas, num último reencontro mortal, nos abraçamos

Calidamente nos beijamos, eu e meu poema, como fracassados misericordiosos que somos, não nos escondendo em frestas sociais e purgando do singelo desconhecimento de nossa conjunta obra

Mas isso pouco importa, pois o fogo ainda continua queimando no meio do quarto e dentro da minha cabeça as labaredas lambem meus lóbulos frontais

O poema então senta em uma cadeira e dá o primeiro gole numa garrafa que subitamente surge em suas mãos

O tempo é curto
Não há nada o que dizer

Pego uma caneta, pouso no papel, deixo o sangue escorrer, o calor toma conta dos meus ossos e então começo a escrever enquanto as chamas se alastram e tudo ao nosso redor começa a incendiar



.

Um comentário:

As opiniões para os textos do Blog Bar do Escritor serão todas publicadas, sem censura ou repressão, contudo, lembramos que pertence ao seu autor as responsabilidades por suas opiniões e, também, que aqui agimos como numa mesa de bar, ou seja, quando se fala o que quer pode se escutar o que nem merece.