Páginas

sexta-feira, 18 de março de 2016

O Sacrifício

Perdido naquele inóspito lugar, ele se debatia procurando livrar a cabeça que ficara presa entre os galhos de um arbusto um tanto ressecado pela aridez da região. Nervoso ante o fracasso das tentativas e temendo pela possível asfixia, berrou por alguns minutos, na vã esperança que o seu pastor o encontrasse, cordeiro desgarrado e rebelde, fugitivo na intenção de conhecer o mundo que ele desconfiava não estar restrito ao rebanho do qual pertencia. Empenhara fuga sorrateira, escalando aquele monte ausente de qualquer pasto ou água com a qual pudesse acalmar a sede provocada pela ansiedade da aventura. Quanto mais se afastava do nível do mar mais as sensações de privação de fluidos e alimentos provocavam o seu corpo, até que, diante de um solitário arbusto esquecido no meio da imensidão de pedras e terra ressequida, os cuidados foram deixados de lado e, por consequência ali ele se encontrou aprisionado a própria sorte.
Fazia horas que o incidente ocorrera e o cansaço já começa a abatê-lo. As pernas doíam, assim como o pescoço apertado entre os galhos do arbusto. Sentiu arrependimento pela ousadia da fuga. Melhor faria se fosse obediente como os outros cordeiros e se mantivesse cortês, servil à família de pastores zeladora do rebanho. Porém, temia o sacrifício e a morte que tantas vezes presenciara. Nem só de lã e leite eles cordeiros tinham serventia. Eventualmente, um ou outro era abatido em rituais estranhos ou mesmo para a carne fornecer alimento aos pastores e aquilo o revoltava.  Tanto bem eles cordeiros faziam à família, dando o sustento necessário para a sua sobrevivência e, como prêmio alguns recebiam a degola na ponta da faca. Sua vontade em desbravar o mundo aliada ao temor da morte, para ele injusta, reforçaram a decisão da fuga.
Estava quase desistindo, aceitando passivamente o seu fim quando percebeu duas figuras humanas aproximando-se.  Imaginou que talvez fosse o pastor com um dos seus filhos que seguira o seu rastro marcado no chão infértil daquele monte e seu coração encheu-se de esperança pela salvação. Pensou em berrar para que a dupla o localizasse, mas, á medida em que os dois humanos se aproximavam, não distingiu em nenhum deles alguém conhecido, e preferiu, assim, exercer a prudência. Tratava-se de um homem já entrado na velhice, acompanhado de um jovem imberbe. O rapaz trazia entre os ombros um pesado feixe de lenha que o encurvava a cada passo. Um pouco a frente, apoiado em um cajado, vinha o ancião, levando um cutelo na mão esquerda.
Pararam cerca de 100 metros do arbusto que mantinha o cordeiro aprisionado. Descarregaram seus pertences e iniciaram desanimada confabulação. Seguindo as ordens do mais velho, o jovem começou a recolher pedras de tamanhos medianos e dispô-las de modo a formar uma mesa retangular. De onde se encontrava, o cordeiro atinou que a construção lembrava os altares onde seus companheiros de rebanho eram eventualmente sacrificados naqueles inexplicáveis rituais de fogo que ele tanto temia e, assustado, procurou ocultar-se ainda mais no arbusto que, antes carcereiro, agora lhe servia como protetor.
Foi quando o tom da conversa entre os homens pareceu sofrer certa transmutação. O cordeiro divisou no semblante outrora sereno do ancião sinais de desespero enquanto o rapaz metamorfoseava em sua face a obediência decepcionada. Não compreendeu o cordeiro a atitude do menino quando se deixou de modo resignado que o velho o amarrasse. Os dois caminharam para o altar improvisado e o jovem pousou sua cabeça sobre imitação de távola. Agora, o cordeiro observava que os dois choravam. Parecia também que os céus cairiam em pranto visto o tom pesado das nuvens cinza-chumbo que o vento carregava para o monte. O velho rezava. O jovem também parecia em oração. O cordeiro, prisioneiro em seu esconderijo, esperava curioso, o desenrolar dos acontecimentos.
Viu o cordeiro o braço direito do velho tomar o cutelo e posiciona-lo à altura do pescoço do rapaz. Misto de dúvida e horror passeou por sua mente. Acaso os homens sacrificavam-se entre si? Resoluto, o ancião levantou o cutelo e mirou a cervical do jovem, pronto para o golpe final. O terror tomou-lhe de assalto e o animal deixou escapar um berro que se espalhou pelo lugar através do vento que preludiava uma tempestade.
O velho então estancou a pancada derradeira e descobriu o cordeiro preso a armadilha natural do arbusto. Uma alegria incontida tomou o seu ser, deixando o animal ainda mais desnorteado com os acontecimentos que presenciava. Enquanto chorava, levantando em conjunto as mãos para os céus em agradecimento, dirigiu-se para o altar de sacrifícios no intuito de libertar o rapazinho trêmulo diante da morte que em segundos se fizera vida em razão de um golpe abortado. Os dois se abraçaram e encararam o animal. O cordeiro sentiu-se aliviado. Por algum motivo, ele havia feito o ancião mudar de ideia e não sacrificar o jovenzinho e, em contrapartida, seria ele libertado como prêmio.

Os dois homens cuidadosamente separam os galhos, livrando o animal da incomoda prisão mas, ao invés da liberdade, o cordeiro foi surpreendido pelas cordas amarrando suas patas. Compreendia agora o que iria se suceder enquanto era levado para o altar. Berrava em desespero diante do pavor pela morte que se aproximava. Bando de malditos, raça vil a humana, bradava mentalmente. Amaldiçoou aqueles homens e seu olhar, longe do perdão, denotava o mais extremo ódio quando o cutelo atingiu seu pescoço. Sentiu o sangue molhar o pelo alvo a ainda teve tempo de perceber e o cheiro nauseabundo das suas carnes começando a serem consumidas pelo fogo antes de perder por completo a razão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

As opiniões para os textos do Blog Bar do Escritor serão todas publicadas, sem censura ou repressão, contudo, lembramos que pertence ao seu autor as responsabilidades por suas opiniões e, também, que aqui agimos como numa mesa de bar, ou seja, quando se fala o que quer pode se escutar o que nem merece.