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sábado, 23 de junho de 2007

Santos e radicais, prantos e latidos

“Humanamente, só nos santos dá pra ver os deuses: só nos radicais, dá pra ver a idéia”
Quase às duas da manhã, leio tal frase. É o tipo de coisa que, se não somos muito distraídos ou idiotas para a deixar passar despercebida, relemos e depois fazemos uma pausa para pensar. Foi isso que fiz, com o livro entreaberto, página marcada por um dedo.
O silêncio é relativo, mesmo a essa hora, apenas o possível nas madrugadas das grandes cidades – carros ao fundo, leve mantra mecânico produzido por pistões e explosões. Noite amena; nem calor, nem frio, nem sono. Livro na mão esquerda, página 23 marcada pelo dedo indicador, a frase de Leminski na cabeça. Então, o imponderável se apresenta: o choro feminino. Dor anônima que rasga a noite, interrompe o pensamento e desperta os cachorros, que, solidários, latem e uivam – 1,2,5,8 – incontáveis vozes de cães diferentes. Choro sentido e profundo, cria o silêncio entre um espasmo e outro.
Vou à janela, poucas luzes acesas, poucos carros passando. O que fez essa mulher romper a distância entre ela, os cachorros e os ouvidos vizinhos? O que a fez sair de sua anônima existência? Regia, em sua agonia, o canto canino que anunciava a todos que algo se rompeu. A ordem das coisas se alterou. E seja ela quem for, com seu grito irracional, naquele momento, dominou a noite. Contra àquilo, nem livros, nem idéias, nem santos, nem radicais, poderiam se bater. Ela, sua dor e a aflição dos cães eram, ao menos por aqueles segundos, a própria noite.


Thomás R.P.O.

4 comentários:

  1. Lindo texto que eu conhecia já e que retrata a alma feminina. Um choro capturado pelo coração atento do escritor. Arrepia quando leio. Seja bem vindo. Beijos

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  2. Também já tinha tido a felicidade de ler estes texto e reitero, muito, muito bom. Daqueles que entram na psiquê.

    ficanapaz

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  3. Bom esse esse texto. Conteúdo bem proveitoso. É meu primeiro cvontato contigo, assim te falo:Parabéns e sucesso!

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