terça-feira, 29 de abril de 2008

A Dor


No fim do escuro
Vi uma luz
Um fio a se lançar
Dentro do meu eu
Perdido no espaço
Avança na sua cavalaria
Um exército de dores
Que combatidos na guerra
A luz não se via
No fim do escuro
Tinha um fio de luz
Nada havia em minha volta
Só mortos de olhos fechados
Essa luz está adiante
Não consigo abrir o caminho
A paz é um sonho distante
E a dor está presente
Para fechar os olhos e ser morta.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

De uma ciência desesperada para crianças e a querida hipocrisia




Gás lacrimogêneo e eternidade infestam minha casa. Mais um danadinho realiza experiências mágicas e inconseqüentes, que podem destruir, salvar ou simplesmente nos levar para a U.T.I. no fundo de uma fábula de quintal.
Viro-me sonho um pouco mais. Apoio a ciência e a reviravolta barulhenta e eufórica dos cientistas malucos. Principalmente a dos pequenos abandonados pelas mães que decidiram voar na droga.
Cheiro de cadáveres de amores que perdi e de lunáticos que estudo, com amor e suavidade furiosa.
Já é tempo, venham beber crianças e feneçam com o elixir! Prometo-lhes um momento lúdico com overdoses de fantasias e mamães carinhosas e risonhas, chuvas ácidas de doces e festival de desenhos animados, mas principalmente, com a maturidade esfolada, vou à espiral com vocês.
Deitarei no vale iluminado meu espírito infantil.
Sem anestesias baratas e exigências de médicos senhores das verdades, colocaremos nossos dedos na tomada e no nariz com a trilha sonora dos gritos das pessoas que se consideram nossas donas.
Engoliremos objetos curiosos com o corpo imantado de barro, enquanto pensamos em como construir a melhor arapuca decorada de arco íris, o mais ágil estilingue, ou o melhor cachorro para fazê-lo de bobo.
Quebrar vidraças de velhas loucas com pedras mágicas e jogar videogames, os jogos mais medonhos e violentos enquanto nossos pais fodem feito animais! E depois atrapalhar o prazer deles rompendo em lágrimas com um saco de pesadelos na cabeça. Os pesadelos ainda respiram através de nossos poros, suspiram gelado e rasgado em agonia garantida.
Não nos faltarão suco com coquetel de esperança! Sucos doces, silvestres que fazem massagem no frágil estômago e confusões de nuvens roxas na cabeça.
Sim. Partiremos crianças. Escutem atentamente, mas antes vamos incendiar o mundo com nosso espírito livre.
Flamejante e curioso, que sempre se pergunta se dentro do ovo vai sair pintinho ou comida, frita, zoiuda e divertida.
Escandalizar mostrando o que é não ser corrompido pelo dinheiro, pelo sexo, pelo medo, pela estética, pela mentira.
Vamos colorir a dor e o desespero e depois ir embora, porque sei que pelo menos para mim não há nada neste Universo.
Nossos queridos hipócritas terão de aprender, nem que seja com nosso sangue que há certos brilhos no olhar que a alma pariu, que eles não poderão nos roubar.
Nosso vôo eterno é garantia de um invólucro.
Tim-Tim, crianças e mais e mais uma bomba caseira explodindo nos cérebros ocos e na minha própria hipocrisia!
Graffiti: Banksy ;"Balloon girl"

sábado, 26 de abril de 2008

É sempre assim

Quando todos os sonhos de um cara se tornam realidade e a vida dele se torna quase perfeita, mas de repente um desses sonhos se quebra. A vida desse cara passa a ser sem graça. O único desejo que ele tem agora é ir a sua casa, enfiar-se embaixo dos lençóis e chorar, chorar com medo da própria vida.

Saudade é uma palavra forte. Forte o bastante para doer quando vem e queimar até ir embora. Sem entender nada ele se desespera, porém não a ponto de fazer uma besteira. Os amigos fazem de tudo para animá-lo, mantê-lo são. Ele não desiste dos seus sonhos, no entanto está cada vez mais longe de recuperá-los.

Não importa o que ele pense, as pessoas ao seu redor o convencem de desistir, elas querem o seu bem. E ele desiste. Com o tempo percebe que fez o certo. "Curta a vida, pois a vida é curta” - diz ele Não se torna um cara melhor, como queria, mas passa os dias e as noites sonhando. Escondido.



nota do autor:
cansei de tudo!

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Meio para peleja

Acena com a mão
Para seu destino,
Segura no corrimão
Para impedir o abismo

Quem tem sorte no assento
Apagam as luzes oculares.
Quem fica em pé atento
Vê passar os lugares

Somos parte da matéria,
Do cotidiano que sacoleja,
Provocado pela inércia,
Que movimenta a peleja.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Encontro

Todos os meus vultos são horas.

Toda a minha imprecisão, agora.

Meus atrasos no tempo,

Manhãs sem auroras

Boreais borrões no Ártico,

Que degela minhas cores quentes.

Minha música ausente e, meu amor

Próprio caos e memória.



Todo meu rastro desfigurado;

A palavra tecendo a larva

Que rasteja por suas asas,

Seus vôos de bordados e letras.

Falta a tinta da caneta;

A ilusão rarefeita me faz encarar,

Não há luz ou treva,

Apenas o olhar.

Sangue e lágrimas se fundem.

Tudo continua vivo.

domingo, 20 de abril de 2008

Convidado: Domi Chirongo (Moçambique)

ARTE SEM CENSURA

Em cada gesto
e sonoridade
os fazedores da cultura
expressam
a felicidade
e infelicidade
de uma sociedade
que pode ser
sua ou minha
por isso, meu mano
esqueça tudo isto
e saiba que quem
realmente faz arte
nunca terá censura


--------------
O escritor e poeta Domi Chirongo é um terráqueo que nasceu pela primeira vez em 1975. Teve uma infância coberta de viagens com a família pelas diferentes províncias de Moçambique.
Ele é licenciado em Psicologia e Pedagogia e Pós-Graduado em Saúde Pública. Tem colaboração dispersa em vários órgãos de informação nacional e estrangeira, para além de ter publicado o romance “XIDAMBANE – Um pequeno Africano Vítima das Cheias”.
É membro do SNJ (Sindicato Nacional dos Jornalistas) e MISA-Moçambique (Instituto de Comunicação Social da África Austral).
Actualmente é também presidente da União Nacional dos Escritores (UNE), uma associação da qual é fundador.
Com efeito, Domi Chirongo é um dos mais destacados escritores após os acordos gerais de paz em Moçambique. A sua presença tem sido constante na apresentação de obras literárias, recessões críticas entre outros eventos literários de intervenção social.
Contacto:
domichirongo@yahoo.co.uk
www.domichirongo.blogspot.com

sábado, 19 de abril de 2008

Nada sob controle.




















(Fotografia de Amanda Com –photo)


Nada sob controle.




Bateram à porta como anjos.
Do buraco da fechadura ela olhou timidamente e deu um giro na chave. Mal abriu a porta e eles anunciaram:
__Trazemos à Palavra. Somos mensageiros da Paz.
Antes de permitir que eles entrassem um já a olhou com sede. Nem bem respirou e já estava sendo estuprada por alguns mais atirados. Teve medo de gritar - algumas vezes o silêncio percorre a mente das pessoas como algo útil e elas se trancam. Vão para outro lugar.
Calada sentiu vários membros dos ‘anjos’ a penetrá-la. Ao final eles recolheram suas coisas e se mandaram.
Luana, branca como a lua levantou-se e foi para o banho, dolorida, envergonhada e com um sentimento de culpa sem explicação. Como aquilo poderia ter acontecido com ela que era tão precavida – interrogava-se constantemente.
Depois do banho saiu perfumada. Algum tempo e retornou com uma sacola escura. Trancada em casa por vários dias seguidos, sem dar sinal de vida, chamou a atenção de um vizinho que tocou a campainha vezes e vezes.
Sem obter qualquer sinal de resposta arrombou a porta.
Tudo estava limpo e organizado. Um suave cheiro de incenso de baunilha perfumava a sala.
Olhou tudo minuciosamente e dirigiu-se para o quarto. Porta trancada. Arrombou.
Um corpo caído e gritos.
Toda a vizinhança no quarto de Luana.
No telejornal da noite: __Assassina violenta mata vizinho. Certeiro tiro na cabeça.
Luana foi julgada e condenada.
Não aceitou padres ou pastores nas visitas. Tinha medo da Boa Nova.
Em uma manhã de abril encontram seu corpo frio e quase sem vida a um canto da cela. Faleceu antes de receber socorro.
Causa da morte, desconhecida.
Anos depois Thiago - o sobrinho - encontra o diário da tia:
“Hoje fui atacada por anjos. Amanhã poderei ser atacada por demônios. O homem tornou-se um animal capaz de tomar diversas formas. Tenho vergonha e medo. Estou cansada. Comprarei uma arma; preciso de proteção. Nunca fiz mal a ninguém e sempre trilhei caminhos corretos, só que nenhum filho da puta irá tocar-me novamente com violência”.
A irmã desesperada correu aos meios de comunicação. Queria que o nome de Luana fosse limpo. Não conseguiu grandes coisas. Luana já havia sido ibope como assassina.
E assim, algumas Luanas seguem pela vida e ‘anjos’ andam a solta pregando mentiras e destruindo vidas.

Brasil? Não...
O mundo virou uma imensa bola de neve e a cada centímetro que derrete, sua imundície é espalhada e ninguém nota. Pensando bem, cada um é responsável pelo que tem.
Clap, clap, clap para os idiotas, estes estão a levar o mundo para o abismo e depois poderão dizer que a culpa é do Aquecimento Global.
Resta saber é se não terão peso na consciência.
É preciso ver os pontos que são usados para alvo de críticas e avaliar se o que é criticado é mais importante do que aquilo o que está atrás bem oculto para passar despercebido as entrelinhas dos olhos e do cérebro.
Luana vitimada foi condenada... Os anjos prosseguem a espalhar a cultura do medo e da violência. Nem tudo é só o que parece.
O que está a acontecer é que infelizmente enxergamos apenas o que nos é dado de bandeja, ou seja, imposto.
O que penso depois de ficar imaginando a condição e o desespero da personagem fictícia Luana?
Não se constrói uma nova educAção com cartilhas antigas.
Despertar e contribuir para a formação de novas formas de ver é o único caminho.
Oriente-se! A diferença deve começar em você!


Eliane Alcântara.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

tornei-me deus

dos deuses
eu queria ver
o sangue, o grito,
o choro

e, acima de tudo,
a raiva no peito
pelo desaforo
de sobreviver.

queria vê-los
num ônibus lotado,
entre suor, o tempo,
e a impaciência
do atraso.

dos deuses
eu queria ver
a bebedeira insaciada.

garrafas
secas na mesa,
o vinho vinhando
a madrugada,

pra quando amanhecer,
não ter dinheiro
para pagá-las.

queria vê-los
febriando dengo
ou na cama
se retorcendo
com cirrose hepática,

ou numa dor de cabeça
tomando um remédio
na espera de fazer efeito
ou
simplesmente
não aumentá-la.

queria vê-los
saudadiando a amada,
maldizendo
a distância,
comprando passagem
pra pegar a estrada.

dos deuses
eu queria ver
a idade avançada,
o andar fraco
e vacilante,
como suporte da bengala

e por fim a morte
essa deusa indeusejada.

e, como deus,
queria vê-los, somente,
sem fazer mais nada.

André Espínola

terça-feira, 15 de abril de 2008

A COVA DO GENOCIDA.

Os berros chegavam até nós ensurdecedores.

Alguns Exus recuaram, desembainhando suas espadas.

-Nem todos os guerreiros nas Trevas têm conformação fluídica compatível com este báratro.

O terreno era de fato assustador. Nenhuma gleba trevosa, mesmo as mais recuadas do Abismo, nas quais eu já entrara, me parecia tão pesadamente ideoplasmada, como aquela.

Espremida num desfiladeiro colossal, a senda recebia a tênue luz de Vésper, que caía, pálida, lânguida, dando um aspecto deprimente ao nevoeiro.

Lembrei-me das faces ocultas de Marte, o Planeta Vermelho, com sua topografia peculiaríssima e suas vastas regiões umbrosas

Numa furna nigérrima, cujos bordos respingavam lama e vermes astrais, purgava o Espírito, em terríveis tormentos, revolvendo-se tal qual um feto na sua pasta coloidal.

-Ele não nos vê - declarou-me um dos Demônios da Legião de Asterc, e que vinha ao meu lado, igualmente montado em cavalo negro.

Debruçamo-nos sobre a cova infecta. De fato, o Espírito estava alheio a qualquer presença ali, mesmo dos Exus mais bem treinados ao trabalho nas pesadas regiões purgatoriais. Seu corpo perispiritual, reduzido a um embrião nas malhas de uma poderosa crisálida, retrogradava espantosamente para as dimensões amorfas de um ovóide.

-Ele caminha à Segunda Morte - murmurou o Demônio, quase numa reverência sepulcral. Desde Átila, Calígula ou Bonaparte, nenhum mortal desceu tanto ao charco, quanto este que animou o inflamado Chanceler.

Lembrei-me dos campos de extermínio, das experiências com vírus e bactérias inoculados nos prisioneiros, das câmaras de gás, dos jogos macabros de seleção dos judeus nos dias de execução em massa.

Ele ainda asseverou:

-Os arianos deveriam ter confraternizado com os hebreus, como irmãos detentores da Chama, imigrantes comuns, vítimas do mesmo expurgo. O fratricídio é crime infinitamente mais execrável. Não fossem as primeiras incursões deste Espírito entre os hiperbóreos, talvez a animosidade das etnias não tivesse chegado ao Holocausto. Eis sua paga!

Nada podia ser feito. A Legião aprestou-se, tomando sua montaria. Eu, como aprendiz naquele Inferno dantesco, afastei-me também do fosso, um tanto enojado. Ali, entre berros lancinantes, Adolf continuava despojando-se, tal qual animal em longa agonia, e assim ficaria por milênios, mergulhado na sua própria demência.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Eu mínimo

Caros, há um tempo fiz um "estudo" de como é ser minimista na poesia. Surgiu como uma análise, ora crítica, da onda de nanos que tomaram conta do Bar em algum tempo. Selecionei desta experimentação oito peças que mostram bem o que penso, às vezes explícita, às vezes implicitamente, nem sempre análise, nem sempre crítica. Eis:

I

Encontrar
no mínimo
arte

II

Caso

Caos
Caso
Saco
Soca

Tear
Reta
Terá
Arte?

III

Conter no título parte da loucura

Dispensar no texto todos os sentidos

IV

Minimista

Escuso
O uso
Do todo

Abuso
O uso
Do nada

V

Texto sem título
Feito mínimo
Podado em pontos
Em vírgulas

Não começa
Não pára
Não pausa

VI

:

...
,
?
;
!
.

VII

Momento
Sem palavras
Ofegos constantes
Pausas eternas

Gestos intensos
Idéias vastas

VIII

A arte do mínimo

Um pitaco, ensaio
Duas rimas, poesia
Três linhas, conto
Quatro passos, crônica

Eis tudo.

sábado, 12 de abril de 2008

Perdas e Dados

Das certezas
Meio incertas
Acerca das perdas,

Perdemos coisas
Perdemos amigos
Perdemos dinheiro
Perdemos tempo
Perdemos amantes
...
Desde que nascemos
A vida é perder...

Mas chega a vez
Dos dados memoriais
Da velhice,

Quem é você
Quero ver minha mãe
Não quero dormir

Na singularidade
Do ser,

Tudo se soma.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Convidado: Valdeck Almeida de Jesus

A fome que me comia

A fome me visitava
Todos os dias...
Eu me recusava a abrir a porta
Com medo que ela se instalasse
Pra sempre em minha casa...
Não adiantava;
Ela insistia e vencia,
Sempre!
Entrava e ficava, e permanecia...
E me comeu.

--------------
Valdeck Almeida de Jesus nasceu em Jequié/Ba, em 15 de março de 1966, fez o primário e curso médio em Jequié. Ingressou na Faculdade de Letras da UESB e concluiu um semestre. Ingressou na Faculdade São Salvador e concluiu três semestres de Turismo. Cursou inglês e espanhol no FISK, por três anos e meio. Está cursando Jornalismo na Faculdade Social da Bahia. Lançou os seguintes livros: "Heartache Poems. A Brazilian Gay Man Coming Out from the Closet", Editora iUniverse, New York, USA, 2004; "Feitiço Contra o Feiticeiro", Editora Scortecci, São Paulo, 2005; 20% da renda doada às Obras Sociais de Irmã Dulce; "Memorial do Inferno. A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden", Editora Scortecci, São Paulo, 2005; 1ª edição – 100% da renda doada às Obras Sociais de Irmã Dulce; "Jamais Esquecerei do Brother Jean Wyllys", Casa do Novo Autor Editora, São Paulo, 2006; "1ª Antologia Poética Valdeck Almeida de Jesus", publicada pela Casa do Novo Autor Editora, São Paulo, 2006; "Memorial do Inferno. A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden", Giz Editorial, São Paulo, 2007 – 2ª edição; 20% da renda doada às Obras Sociais de Irmã Dulce; Participa de mais de vinte antologias de poesias.

Site pessoal: www.galinhapulando.com

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Apenas Um Sinal ou Crônica Rodrigueana Acerca da Traição

Vanílson era conhecido como o “Fauno das Laranjeiras”. Moradores do bairro o apontavam nas ruas relatando histórias de suas conquistas amorosas, evangélicas assustavam-se após sua passagem como que se diante do demônio estivessem, mulheres decentes baixavam os olhos quando com ele cruzavam e as mais ousadas, entre um cochicho e outro, riam por terem dormido com ele ou desejosas por um dia dormir.
Alguns homens admiravam o seu talento em colecionar amantes, namoradas e casos fortuitos. Outros, embriagados pelo desdém, eram carcomidos pelo verme da inveja. Habitava ainda o bairro uma terceira categoria: a dos temerosos, sujeitos vivendo em constante receio de terem suas mulheres fisgadas pela lábia do Fauno das Laranjeiras. Contudo, Vanílson, entre um gole e outro de cerveja, tranqüilizava os amigos de boteco que porventura possuíssem uma companheira dividindo a cama.
— Mulher de amigo meu nem homem é. É sapata! Daquelas de usar cueca e cuspir no chão!
E diante da gargalhada geral, portando sorriso de vendedor de carros usados acrescentava:
— Sapata só para o amigo aqui que vos fala. Longe de mim querer ofender a patroa de qualquer um...
E assim seguida a vida nas Laranjeiras, com o Fauno protagonizando suas aventuras sexuais pelas esquinas, até que um dia, Rubinho, seu amigo do peito, quase um irmão, no passado colega de escola e do time dente-de-leite do Fluminense, veio com a notícia na mesa do bar:
— Vou me casar, Van. Menina virtuosa, pura, daqui do bairro mesmo. Paixão da minha vida. Amo mais a ela do que a mim mesmo. Quero que você seja meu padrinho. Madrinha pode ser quem você escolher.
— Parabéns, irmãozinho... muito me honra. Eu conheço?
— Espero que não...
E relatou ao amigo seus temores.
— A gente é brother, quase sangue um do outro, companheiros de ataque no glorioso Tricolor... Gosto de ti pra caramba, todo mundo neste boteco sabe, como sabe também da sua fama no bairro, por isto quero te pedir um favor.
— Tu não pede... Tu manda!
— Vou te apresentar a Joelma. Se você já tiver transado com ela, me faz um sinal. Aí eu saberei que ela não presta, que esta história de virgindade é balela e acabo com o noivado. Tudo na maior encolha, sem escândalo. E tu fica limpo comigo pois, se tiver dormido com ela, com certeza foi antes de eu conhecê-la. Vou sofrer, mas ficar livre da humilhação aqui em Laranjeiras: de ser corno do melhor amigo.
Vanílson relutou, disse que não podia fazer uma coisa destas, que se tivesse por acaso saído com Joelma, eram águas passadas, não convinha remexer mas, no fundo, envenenava-lhe a curiosidade em saber se já havia provado dos chamegos da noiva do Rubinho, a tal virtuosa. Desta forma fingiu indignação durante mais alguns minutos para no fim ceder. Combinaram o tal sinal. O Fauno colocaria a mão direita sob a axila esquerda, enquanto a mão esquerda coçaria de leve o queixo.
— Um sinal, apenas um sinal – papagaiava Rubinho, dedo em riste na direção do amigo enquanto ligava do seu celular para a noiva, pedindo que ela fosse ao boteco conhecer o seu padrinho de casamento. Meia hora depois, o pecado estava em frente aos olhos de Vanílson. Com certeza ele estava diante de uma mulher honesta, casta feito uma Carmelita Descalça, mas diabolicamente tentadora. Por momentos Vanílson pensou em fazer o sinal combinado, só para ter o prazer em fingir haver possuído aquela mulher em seus braços, mas conteve-se diante do amigo que a tudo assistia impassível.
Passado um tempo, Joelma despediu-se, alegando encabulamento por estar num boteco. Rubinho a levou para casa. Em seguida retornou ao bar, ajoelhou-se diante do amigo e, numa atitude digna de um personagem rodrigueano, em pratos gritou:
— Graças a Deus, minha noiva é uma santa!
Vanílson abraçou o amigo, mas sua mente vagava distante. Pensava em como faria para ter Joelma ao menos em uma oportunidade. De nada valeriam a soma de todas as suas conquistas se ele não amasse, por uma única vez que fosse, aquela que ele já batizara no íntimo de “A Mulher”.
E assim, o Fauno iniciou sua a perseguição a Joelma por toda Laranjeiras. O desejo fugia do seu controle, transpirava por todos os seus poros. Todavia, o sentimento de remorso o acabrunhava. Ela era noiva do seu melhor amigo, quase irmão, seu parceiro no ataque do Fluminense. Ele, um cafajeste. Fauno era pouco para rotulá-lo. O “Cafajeste das Laranjeiras”, esta seria a alcunha perfeita para um verme como ele.
E o desejo venceu, mas Vanílson não pecaria sozinho. Joelma também capitulara. O encontro ocorreu na quitinete do Fauno que, em virtude do entra e sai de mulheres, era conhecida nas redondezas como “O Abatedouro”.
No aconchego dos corpos debaixo dos lençóis, entre a fumaça dos cigarros, eles conversaram.
— Por quê? Porque traímos Rubinho? – lamentava o Fauno.
— Você porque é um canalha, que não respeita aquele com quem fez tabelinha no ataque do Fluminense. No meu caso, por curiosidade.
— Como assim?
— Eu precisava saber se era verdade tudo o que falavam sobre o desempenho do “Fauno das Laranjeiras”, um mito entre as mulheres do bairro.
— E então? Qual o veredicto? – perguntou o canalha.
— Melhor do que eu imaginava...
Explodiram em riso solto durante horas. Entre uma pausa e outra, fizeram amor, como só os amantes sabem fazer. Toda semana, se encontravam no Abatedouro. Riam, amavam-se e se maldiziam pela punhalada moral nas costas do noivo e amigo. Até que um dia, os gemidos de prazer foram interrompidos pela porta arrombada e Rubinho invadindo a quitinete.
Diante da impossibilidade de negar a traição, Vanílson, sentado na cama e tendo ao lado uma Joelma nua e paralisada pelo pânico, colocou a mão esquerda em sua axila e, sem deixar de encarar Rubinho, coçou o queixo.
— Antes ou depois do encontro no bar? – perguntou Rubinho.
— Depois... não menti para você.
O casamento aconteceu na Igreja de Nossa Senhora da Glória, no Largo do Machado, com os três dividindo o altar. Vanílson, na condição de padrinho do noivo, mal se lembrava do rosto da madrinha, sequer do nome. Rubinho e Joelma formam morar na Tijuca, longe do Bairro. Vanílson volta e meia encontrava Rubinho no mesmo bar, e o compadre testemunhava o Fauno relatar suas conquistas nas Laranjeiras. Eventualmente, Joelma o visitava no Abatedouro, e os dois se esgotavam em desejos nas tardes quentes do Rio de Janeiro. Rubinho havia optado em manter as duas coisas que mais preservava. A mulher que amava e a amizade forjada no gramado do Fluminense Futebol Clube.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Um telefonema na madru




Madrugada e toca o telefone. Checo o horário no canto inferior direito da tela. 2:35. Diante do micro, sorrio filosoficamente com meus zíperes, antecipando a razão do chamado.

Naturalmente, quem liga a essa hora não espera ser atendido por alguém que esteja alerta e que já estivesse acordado antes do toque. Espera um alô alarmado, antecipante de desgraças inomináveis, todos os receios por seres queridos vindo à tona.

Antes de apertar o botãozinho verde no fone, resvalo os olhos pelo identificador de chamadas. Como eu previa. De uma outra vez, foi 22. Hoje, O DDD do celular de quem liga é 21. Isso não quer dizer nada, claro. O chamado poderia vir de São Paulo e ter a mesma motivação. O fato de que este veio do Rio apenas reforça meu palpite. Que se confirma assim que atendo, com a entonação mais deliberadamente doce, tranqüila e sorridente que consigo conferir à voz. A resposta ao meu alegre “alô...” vem num grito:

– Mããe!!
– Oi, filhinha... – respondo ainda mais docemente, tranqüilamente, sorridentemente, alongando as tônicas. Uma mulher alegre e surpresa.
– Mãe, eu fui estuprada!
– É mesmo, filhinha? (tom de curiosidade interessada e bevenolente)
– Mãe, eu fui assaltada! – a menina explica com indignação, ainda aos gritos. Decerto pensou “essa tonta não sabe o que significa estuprada”.
– Que coisa, né, filhinha...
– Mãe, me ajuda! (aos soluços)
– Tá bom, fia. Eu vou te ajudar. Mas antes me diz uma coisa...
– ...
– Como é que você chegou no Rio tão rápido?

Ouço murmúrios e cochichos. Uma voz de homem vem ao telefone:

– Dá pra ver aí de onde tá ligando, é?
– Dá.... (respondo como quem previne, não como quem concorda)
– Mas é residência, aí?
– É... (mesmo tom)
– Então como que dá pra ver?
– Dá. (Desta vez, em tom de quem diz “ué, você não sabe?”. Eu poderia acrescentar “em que mundo você vive?” ou algum epíteto: “Dá, seu panaca”. Mas pra quê?)
– Ah, tudo bem. Vou ligar pra outro número. Toda noite eu pego alguém, mesmo...

Pega, é? Fico pensando... quem é que ainda cai nessa?

Isso foi há um mês.

Ontem, de novo. Só que a ligação foi à tarde, a cobrar e a voz aterrorizada desta vez era a de um rapaz.

– Mãe, me pegaram!
– Já era tempo, né, filho...! Pegaram todos os seus amigos, eu tava começando a ficar preocupada com você! (voz risonha)
Gargalhada bem humorada do outro lado.
– Valeu...
E clic. Certamente também partiu pra outra... e também, certamente, cáspite, toda tarde pega alguém...

Avisar à polícia? Rá! Já tentei. E isso ainda no século passado, quando ninguém ouvira falar nesse tipo de golpe. Não se interessaram por saber o número do ligador, embora a conversa tenha sido bem mais convincente – não que tenha me convencido –, embora não fosse um celular e embora fosse de São Paulo mesmo.

domingo, 6 de abril de 2008

Um Copo Que Cai


Arduamente, o dia inteiro, labutara sob aquele implacável sol escaldante. Ao cair da noite, voz roufenha, quase afônico, finalmente, uma alma generosa demonstrou compaixão. A reluzente moeda girou no espaço, tilintou na calçada pedregosa, rodou, rodou, acomodando-se, por fim, próximo ao pé direito de Salomão. "Cara. Pé direito. Bons sinais.", pensou.
- Deus lhe pague. - agradeceu ao transeunte caridoso que já ia longe, imerso em seus próprios problemas.
Salomão correu para o Bar do Juvenal, cabeça-de-porco célebre entre a mendicância. Foi direto ao balcão, seus olhos luziam aquele brilho cinza-opaco.
- Aí, Juvenal! Manda uma dose da especial, aquela de rolha.
- É um real.
- Taí. - falou, depositando a moeda sobre a mesa, o cinza-opaco dos olhos acentuando-se ainda mais.
O dono da birosca recolheu a moeda, retirou com cuidado a bonita garrafa de cima da prateleira, pôs o pequeno copo sobre o balcão, serviu a dose do altamente alcoólico líquido amarelo. Salomão salivava, saboreando o momento. Corpo, alma e espírito imersos na agradável liturgia, o ritual tantas vezes repetido, os movimentos de Juvenal, São Juvenal. Rezou em silêncio: "Pai da Desgraça, Santíssimo Deus Que Habita a Garrafa de Cachaça, dai-me a fuga, ministrai-me o santo elixir do esquecimento, enchei-me do suave e benfazejo torpor. Fazei-me nada, porque nada sou."
Circunspecto, levou as mãos ao copo. Antes de alcançá-lo, eis que surge um braço longo e nefasto, um cotovelo profano. Atinge o copo, que cai, cai, cai, espatifando-se no chão do boteco. Salomão fita com raiva o dono do braço, um sujeito bem vestido que bebericava uma garrafa de água mineral com gás, certamente um transeunte que ali detivera-se para aplacar a sede.
- Olhe o que você fez!
- Desculpe. Foi sem querer. Eu pago. A bebida e o copo. Quanto é?
- Não quero seu dinheiro! Não quero que pague outra! Nada trará de volta o que se perdeu! A terra absorveu o líquido assim como absorve a carne, o sangue e a malignidade humana. O homem é um ser rude e mau, merece a dor e o sofrimento por toda a eternidade finita e efêmera de sua desprezível existência!
O homem bem vestido virou as costas para Salomão, dirigindo-se ao dono do bar:
- Caramba! Como tem maluco nesse mundo. Quanto é a cachaça, o copo e a água mineral?
Salomão sentiu a ira aumentar, fluidificar-se e percorrer seu corpo, borbulhante, cáustica, ácida, venenosa. Sacou o pequeno e afiado canivete e não titubeou: agarrou os cabelos do homem bem vestido com uma das mãos, puxando violentamente sua cabeça para trás. Com a outra, cortou-lhe o pescoço de um lado a outro. Um semi-círculo preciso, uma degola cirúrgica, como quando sacrificava frangos no abatedouro. O homem bem vestido levou as mãos ao pescoço, o sangue esguichando aos borbotões, empapando seus belos trajes, tingindo de rubro sua fina e branca camisa de seda. Caiu pesadamente, ainda constringindo o pescoço, numa última e desesperada tentativa de interromper o fluxo, de agarrar-se à vida. Os olhos arregalados, a escancarada boca silenciosa perguntavam a mesma pergunta: por quê?
Salomão ficou ali, parado, observando os derradeiros estertores do desconhecido prestes a conhecer o desconhecido. "Sujeito de sorte". O proprietário do bar há muito havia debandado, em busca de um telefone para chamar a polícia, que logo apareceu. Salomão não reagiu à prisão. Foi algemado e conduzido à Delegacia, onde foi interrogado. Expressão serena, imperturbável, olhos fixos nos do Delegado, disse, em tom baixo:
- A justiça prevaleceu. Olho por olho, dente por dente, fluido por fluido. O infiel estouvado profanou o sagrado ritual com sua atitude aparvalhada, ofendeu o Supremo Ser Alcoólico Aquoso Cáustico, regou a terra com a santa beberagem oriunda dos alambiques divinais. O sacrilégio só poderia ser reparado, a ira do Deus Etílico só poderia ser aplacada com o sacrifício do ímpio. Sinto-me honrado porque Ele me escolheu. Tornei-me o braço da justiça divina, o anjo da morte, o precursor do Messias Ébrio. Desenrolei o tapete vermelho, o tapete de sangue, onde Aquele-Que-Tudo-Sabe-E-Tudo-Bebe caminhará trazendo consigo as boas-novas de dor, morte, sofrimento, vômito e paz. Estou feliz. Cumpri minha missão.
O Delegado fitou o escrivão que fitou o Delegado. A sentença veio fluida, imediata, uníssona:
- Preciso tomar uma.

Carlos Cruz - 28/03/2008

sábado, 5 de abril de 2008

Pão com tertúlias

No intervalo entre uma crônica e um conto de Machado de Assis, durante a oficina literária, levantei-me e servi ao grupo umas fatias de pão caseiro trazidas de casa.
Dizem que tenho que sair da minha zona de conforto, sempre escrevendo crônicas bem humoradas. Foi exatamente o que resolvi fazer. Não levei nenhuma crônica para o encontro. Saí do escritório e fui à cozinha. Deixei meu público restrito e atirei-me às massas. Massa de pão mais especificamente. Levei dois recipientes com 16 contadas fatias de pão. Destampei ambos e estendi para o grupo da esquerda e logo em seguida ofereci para o grupo da direita.
Na verdade devo informar aos leitores que era à minha direita ou à minha esquerda, ninguém ali estava preocupado com posições políticas. Machado ensinou-nos que às vezes devemos lembrar ao leitor que ele não faz parte da história, para ele não se condoer de dores por algum personagem e também que não adianta salivar, pois não vai provar nenhuma fatia do cheiroso pão que está sendo compartilhado por vorazes bocas famintas de onze horas da manhã.
Aos olhares femininos, preocupados com a redonda forma, do pão, é lógico, externei, brincalhão, que aquele alimento era light. Em vez das previstas três xícaras de óleo na receita, eu havia colocado apenas meia xícara.
Mais importante que a receita é o momento certo e modo certo de servir. O momento é bem próximo da hora do almoço e a quantidade deve ser tal que todos possam provar, mas apenas alguns possam repetir. O que deixará em todos a sensação de desejo não totalmente satisfeito. A sensação do prazer, próximo do orgasmo, porém sem o gozo.
O mestre, na posição de líder deu-se ao direito de comer uma segunda fatia para retornar energizado a leitura de outra crônica. Saboreamos Machado enquanto o odor do pão fresco ainda persistia no ambiente e nas mentes.
Ao final da aula, desta vez, não ouvi nenhuma crítica em relação aos meus textos. Nem positiva nem negativa. Várias colegas, gentilmente pediram a receita. Percebi como elogio ao meu trabalho.
Reparei que o professor correu para pegar a derradeira fatia. Ele não elogiou, mas o gesto demonstrou que gostou que eu saísse da minha zona de conforto.

Os ingredientes:

2 tabletes de fermento biológico (30g) – utilizei 3 envelopes de 11g com validade vencida e mesmo assim deu certo
1 colher (sopa) de açúcar
1½ xícara de água morna
1 embalagem de creme de cebola
3 xícaras de farinha de trigo

O modo de fazer:

Unte uma forma de pão. – É bom que a forma seja das grandes (28x11cm) porque a massa cresce um bocado e depois transborda no fogão provocando uma lambança federal além da fedentina de pão queimado. Na dúvida, use duas formas. Um pão você oferece na aula e a outro você come antes da aula
Em uma tigela grande, misture o fermento com o açúcar. Depois acrescente a água, o óleo e o creme de cebolas. Misture.
Adicione a farinha e misture até formar uma massa mole.
Preaqueça o forno em temperatura média – 180ºC
Ponha a massa na forma e deixe crescer por 30 min ou até dobrar de volume.
Leve ao forno por 25 minutos ou até dourar.


Tertúlias são o complemento ideal ao pão.

Quando for levar o pão para a aula não esqueça de deixar o recipiente semi-aberto para impregnar a sala com aroma de desejo.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Beleza não vai à mesa

“O que diferencia uma pessoa da outra é o seu imaginário,
a interpretação que dá aos fatos da vida.”
Tizuka Yamazaki, cineasta

Estranhas estavam as coisas, como há muito, muito tempo, não se via na Fazenda do Grotão. A chegada do novo dono com a família deixava em todos um misto de curiosidade e receio. Saber quem e como eram, descobrir que planos tinham em mente, as mudanças que poderiam afetar a vida em geral, fazia com que todos ficassem “de orelha em pé”.
Minto. Para três amigos, isso era irrelevante. O que contava para o trio era quem realmente mandava por aquelas bandas. Jean era o mais alto, encorpado e de peito estufado, andava para cá e lá com suas esporas lustrosas, o topete ruivo, orgulhoso do seu porte e classe, era admirado pelas jovens do lugar e também quem cuidava dos horários, preciso como um Bulova. Também era cantor de última hora. Nicholas vivia em uma pompa só, desfilando sua elegância natural de dândi por onde quer que andasse, sabedor do efeito que sua figura causava; chegava a se abrir todo em cortesia e poses, aumentando assim o impacto visual. Por fim restava o fiel da balança: o simpático Arthur, com seus trejeitos particulares, o andar desengonçado, meio rebolante, meio desequilibrado e a voz esganiçada. Andava junto aos dois primeiros, ora dando apoio a um, ora ao outro. Juntos, conheciam todos os lugares da fazenda detalhadamente, não havia lugar naquele terreiro em que eles não tivessem andado ou se estranhado, sabiam de tudo o que acontecia por aquelas bandas. O que ainda não sabiam é que a sua disputa particular em breve seria feita também pelos ocupantes da casa grande.
O sr. R, novo proprietário do local, sentado na sala, imaginava como seria a recepção que daria para o senador V, no dia seguinte. Tudo teria que estar dentro de todos os conformes. Pensou e repensou todos os passos, o que lhe mostraria de suas posses, o quarto de hóspedes que lhe ofereceria – talvez até cedesse o seu próprio, visto ser o melhor da casa – suas bebidas premiadas, os assuntos que mais interessariam seu alojado... Mas ainda faltava algo. Ele teria que mandar servir uma refeição à altura da ocasião e para isso, um prato refinado seria o chamariz ideal.
Enquanto isso, a senhora R entretinha-se apoiada na janela, dividindo seu tempo entre os poemas de um livro e a observação de Nicholas, em seu passeio matinal. O andar elegante e de muita classe dele, realçava a beleza do lugar; ela poderia ficar horas assim, admirando-o. A beleza tinha isso com ela, fazia com que seus pensamentos voassem longe e alçava vôos nas asas da imaginação. “O andado dele é pura poesia” pensou – Voltou-se para o livro e achou uma parte terrivelmente adequada para o momento - "Il pleure dans mon coeur / Comme il pleut sur la ville / Quelle est cette langueur / qui pénètre rnon coeur?" [1]A pequena Matilda, a criança do casal R, brincava na outra ponta do terreiro, atirando pedras no pequeno lago e observando o movimento circular da água, reflexo da ação do objeto jogado. Criança retraída, até os três anos de idade ainda não tinha proferido palavra, mas corria de um lado para o outro. Um belo dia, disse algumas poucas e desconexas palavras e de lá para cá, quase nada dizia, mas quando o fazia, era com uma lucidez lacônica que desconcertava a todos.Agora, aos 12 anos, comparava matematicamente a velocidade do deslocamento das ondas em comparação com o formato oval do lugar, sua profundidade e a comparação com um modelo natural: estava criando maremotos para as minúsculas criaturas que habitavam aquelas águas. Alguém um dia ainda a diagnosticará como sendo uma portadora da Síndrome de Asperger[2]. Mas no momento, os pais ainda acham que ela é só “meio lesa”. Entretanto isso basta para que lhe cedam aos menores caprichos. Bom, na maior parte do tempo.
Nesse meio prazo, os três amigos foram reunidos próximos da entrada da cozinha, pela histérica Giselda, uma tresloucada que afirmava poder ver o futuro, e ficava “soltando a franga”, dizendo-se portadora de um segredo terrível:
- Hoje o futuro de um de vocês será definido pela amizade, pelo amor e pela enganação. Tomem cuidado! – e saiu gritando seus temores sobre o céu e a possibilidade dele vir abaixo. Isso a desacreditou imediatamente junto ao trio.
Entrementes, o Sr. R. encontrou a resposta para o seu questionamento culinário: Um assado. Um assado exótico será perfeito para impressionar o senador! Chamou o cozinheiro e ordenou que juntasse os animais do lugar, para que escolhesse dentre eles o que melhor se adequava para a situação. Em pouco tempo estavam todos devidamente reunidos e cercados na entrada da cozinha.
Jean e Nicholas, impassíveis, observavam calmamente as ações do senhor R., enquanto que Arthur punha-se a pensar: “Eles têm alguma serventia para a fazenda, mas e eu? Com o que eu contribuo?
Neste momento, os olhos do fazendeiro brilharam ao passar todos em revista e deu-se a escolha fatal:
- Aquele ali, o espalhafatoso! – apontava um dos três.
Nicholas sentiu o chão fugir debaixo de seus pés: estando tão chamativo, não havia como se misturar entre os outros. Já sentia o fim chegando quando a salvação veio na forma de um protesto feminino:
- Mas é nunca que o senhor vai assar o meu pavão! – a senhora R., trazendo a pequena Matilda a tiracolo, vinha em socorro ao seu animal preferido.
- Mas querida, um assado de pavão será o prato principal da refeição que darei ao senador. Isso fará com que o jantar seja inesquecível!
- Pavões são somente para o deleite dos olhos, não da barriga; um belo colírio para a alma, um momento poético envolto em penas. Usá-lo como petisco, nunca, jamais!
- Mas a moda nos restaurantes de Paris é comer pavão, hoje em dia.
- Você está querendo dizer faisão! E não temos nenhum no nosso terreiro. Por que não manda assar aquele frangão que está do lado?
Agora foi a hora de Jean se ver em maus lençóis. Sentiu suas esporas começarem a baterem uma na outra, enquanto o coração lhe subia ao bico.
- O quê, meu galo índio? – o senhor R. protestou – E quem será o reprodutor das minhas galinhas? – Nesse momento Giselda deitou um olhar cúmplice para o galo.
- Além do mais, ele é meu despertador todas as manhãs, tem muito mais serventia que esse transviado emplumado que você defende! O casal começou então, um embate sobre qual dos dois amigos iria acabar na panela. Inconscientemente, coube à pequena Matilda incluir mais alguém na querela.
Ajoelhou-se no meio das aves e tomou o ingênuo Arthur em seus bracinhos. Foi a senha para que os pais mudasse o foco de suas atenções:
- O pato! Que tal se assássemos o pato?
- Excelente idéia. Poupamos nossos prediletos e ainda temos um prato principal para oferecer ao nosso ilustre hóspede.
Mas ao dirigir-se para arrancar a ave das mãos da filha, o pai desencadeou uma reação inesperada da parte da pequena: sabedora das reais intenções para com o pato, agarrou-se ao corpo do animal:
- É meu amigo. Não podem fazer isso com ele!
- Veja bem, filhinha. Papai vai ter que prepará-lo para nosso visitante.
- Não se mata um amigo.
- Ouça, eu te dou um pônei, que é que toda menina quer.
- Como me olharei no espelho, se souber que assei o coração de um amigo? Que compactuei para que sua vida tivesse fim, que seus sonhos desmanchassem no ar como fumaça? Que tipo de criatura poderia dizer que sou?
O senhor R. começou a perder a paciência. Coube à esposa, indicar uma saída:
- Querida, o galo canta as horas e é o marido das galinhas. O pavão embeleza o jardim e é um deleite para meus olhos e dos outros que o vêem. Mas o que esse pobre pato faz, além de grasnar para lá e para cá?
- Os amigos precisam necessariamente fazer algo por nós? Não podemos ser amigos só pela amizade?
- Se ele fizer algo que eu concorde que seja absolutamente útil, deixo-o vier – atalhou secamente o pai. A menina acomodou o pato no chão, pegando sua cabeça carinhosamente entre as mãos.
- Canta. Se você cantar, papai lhe poupará a vida e poderemos sermos amigos para sempre.
Arthur, como todo pato, nada sabia de cantar. Olhou desesperado para os amigos, quase que se despedindo deles, quando uma piscadela de Jean trouxe-lhe um suspiro de alívio.
Os pais, vendo no gesto da menina um raio de esperança pueril, estavam já para desistir daquela disputa, temendo que a ação trouxesse danos psicológicos irreparáveis na criança, quando viram o desajeitado animal se perfilar diante dela, como se aprontando para algo. Timidamente, abriu o bico. E cantou. Cantou de uma maneira estrondorosa, plena e vibrante, soltando as notas no ar, tendo como pano de fundo o amplo leque de penas do pavão, o que lhe conferia o status de cenário.
Matilda pôs-se a pular de emoção. O pai, não acreditando no que via, balançou a cabeça, sendo abraçado pela esposa, que sorria agradecida pela empolgação da filha.
Nem bem o canto acabou, enquanto os humanos comentavam empolgados o que acabaram de assistir, o galo saiu detrás das penas do pavão:
- Bela dublagem, Arthur.
- Salvaram-me as penas, camaradas. Não fosse pela menina e por vocês, a esta hora já estaria sendo recheado.
- Ah, um perfeito trabalho de grupo – Giselda, agarrada à asa do galo, se debulhava em lágrimas – ah, e que música linda, Jean! .
- Faz parte do meu show – o peito estufado do galo quase arrebentava.
- Peraí. Quis saber o pavão - Enquanto o patrão se afastava, alguém escutou que fim teria o tal “prato principal” dele?
- Ouvimos ele dizer qualquer coisa sobre lombo, torresmo ou coisa parecida.
- Ih... – virou-se para a franga “mediúnica” – Giselda, vai rápido lá no chiqueiro e avisa o Michelangelo para ele começar a espumar pela boca, senão “vai pagar o pato”...

[1] Chora em meu coração / Como chove sobre a cidade / Que langor é esse / que penetra meu coração?. Paul Verlaine
[2] A síndrome de Asperger é uma síndrome que está relacionada com o autismo, diferenciando-se por não comportar "atraso ou retardo global no desenvolvimento cognitivo ou de linguagem". Suspeita-se que Albert Einstein, Isaac Newton, Mozart, Sócrates, Darwin, Michelangelo, Stanley Kubrick, Wittgenstein, além de Syd Barret (vocalista, guitarrista e compositor do Pink Floyd), tenham sido portadores da síndrome.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

na seca do sertão
entre cocais
mutuns retundam

em palma vazia
cantam olhos
que não tenho

e eu só queria asas.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Papo de Buteco

Tudo se resume ao amor. Antes eu achava que era a libido, mas vejo que sem amor a própria libido se enfraquece. O amor é o único objetivo do homem, ainda que ele não saiba. É verdade que até as ações mais simples são geridas pela libido, como vestir-se ou trabalhar, pois ambas nos inserem na sociedade e nos capacitam às relações sociais que almejamos. Fazemos o que fazemos para sermos aceitos e, com isso, quem sabe, encontrar um parceiro para satisfazer a libido. Esta é a força motriz da pessoa, mas satisfeito esse desejo, resta finalmente o que todos buscamos e, também, o que nos une: o amor.
Só fui compreender sobre o amor ao me vir afundado nas armadilhas da fama e da fortuna, através de um bêbado contumaz chamado Carlos e apelidado Bicauisque, por ser velho, desbocado e amargamente sincero, igual ao famoso escritor. Era também engraçado, embora as senhoras de plantão e os tiozinhos religiosos o vissem com aversão por conta dos palavrões.
- um foda-se bem colocado é mais lírico que mil poesias de escrevinhadores sem talento. – Redargüia Bicauisque.
Travamos conhecimento e até simpatia mútua num dia em que eu resmungava no balcão do Bar do Escritor, em Brasília, sobre a incerteza do sucesso. Eu completara a turnê com um show no Nilson Nelson, fugira das dezenas de groupies famintas pela minha atenção e me perdia satisfatoriamente nas cervejas e cachaças do boteco. Estava cansado, queria esquecer, sumir, não agüentava mais pegar mulheres que só me desejavam por conta da fama e do dinheiro.
- teu problema é que não sabe foder. – Interveio Bicauisque.
- como é?
- tu não sabe foder.
Lembro que olhei o nariz avantajado e vermelho do homem, repleto de poros abertos pelo álcool, a maioria comportando enormes cravos, e pensei no que aquele estereótipo de homem poderia saber sobre mulheres.
- tu sabe cantar, xará, mas não sabe foder. parece uma garotinha lésbica que reclama a falta de um pau.
- como é?
- o pau não é o equipamento principal numa foda, cara. o que faz a trepada ser memorável é o tesão, a preparação, o desejo, a entrega, a proximidade, a doação, a sinceridade, a calma. a piroca só deve agir quando a amante atingir o êxtase das outras sensações. – Ele sorriu. – ou então é melhor se masturbar, pois só na punheta a pica é o ator principal.
- papo furado. quem entende disso?
- tua mãe.
Enfezei. Até ali estava curtindo o papo do bêbado, mas ele se excedeu quando botou a mãe no meio.
- como é? repete.
- uma mulher entende de pau, otário. – Ele parecia alerta contra uma possível investida minha embora ainda estivesse recostado no balcão. – ou você acha que tua mãe te concebeu imaculadamente como a virgem de Guadalupe.
Eu não sabia se reclamava de sua grosseria se escutava mais atentamente suas palavras.
- em Guadalupe tem cada virgem... – O sarcasmo estampava em seu rosto. – uma mulher de verdade sabe tratar um pau. ela entende que o pau é a miniatura do homem, uma espécie de boneca vodu, onde se concentra toda a atenção e reação do sujeito. um homem de verdade, que sente como a coisa mais excitante uma boa segurada feminina no caralho, exigindo-o em seu ventre para conter o furor, sabe como domar o próprio desejo para conseguir amar completamente uma mulher, ou seja, sabe foder.
- como é?
- tu é bem burrinho, né? só fica repetindo “como é”, “como é”... – Bebeu um gole de algo meio verde antes de continuar. – quer aprender a foder?
- como é? quero dizer, é, sim... bem, explica.
- tu tem que saber escolher a mulher, ver outros detalhes além da tríplice constituição básica: peito, bunda e acessório, que pode ser cabelão, coxa, panturilha, pé bonito, barriga sarada, cara de safada, bocetão, cuzinho rosa, aí depende da tara de cada caboclo. esses detalhes é que são preciosos. neles você percebe a perfeição em cada mulher. – Os olhos antes opacos do bêbado refletiam a luz da luxúria. – pode ser um pescoço longilíneo, uma batata da perna mais grossa, uma boca carnuda, um jeito de andar, um olhar apaixonado, uma voz aconchegante...
- ah! – Eu disse, mostrando que aquele discursinho romântico não me convencia.
- toda mulher tem um detalhe que é só dela, que a torna especial, algo que às vezes nem ela própria percebe, ou melhor, ela quase nunca espera que exatamente ali, em tal ponto, é que está sua arma final de sedução. – Deu um gole na coisa verde. – a mulher é diferente do homem. ela não concentra na vagina seu prazer sexual, ela própria é um órgão dedicado ao sexo. dos pés à cabeça. – Contornou um violão imaginário com os braços. – ela se cuida e se perfuma e se penteia e se alisa e se arruma e se ajeita e se apronta em cada pequena parte do corpo com esmero, trata tudo com a maior atenção, sabe que será admirada por inteiro, dos pés à cabeça. cada delicioso detalhe de um corpo feminino, dos pezinhos pequenos e cheirosos até a cabeleira ruiva ondulada, no meio da cintura, cobrindo a pele branca e suave, ajeitando-se sobre os seios em pêra, de bicos rosados, que estão emoldurando a barriga lisa, de umbiguinho fino, que será o portal da vagina, ah, a vagina...
- ta bom, já entendi. – Quase berrei. - cada mulher tem um detalhe e devo saber escolher.
- ... dos pés à cabeça. – Ele ainda resmungou antes de beber mais um gole para voltar aos ensinamentos. – a mulher dá bem mais atenção ao corpo inteiro que o homem dá ao próprio pau, então, tem que dar atenção ao corpo inteiro da mulher, à sua cabeça, às suas idéias, aos seus medos, não apenas a uma só parte, ou a três: boceta, bunda e peito. Tem que saber explorar até os espaços entre os dedos das mãos e dos pés da parceira. – Outro gole. Um sorriso verde brotou. – você sabia que lamber entre os dedos da mão de uma mulher lhe causa uma sensação parecida com uma lambida na vagina? aprenda a lamber mãos, meu caro, que isso lhe abrirá muitas portas. ou pernas.
- a música já me abre muitas pernas. – Respondi, sem modéstia, mostrando todo o poder de um rockstar.
- mas são pernas que se abrem com qualquer música. se vc aprender a escolher a mulher que te interessa, principalmente pelo detalhe que a torna especial, então perceberá a satisfação da singularidade.
- por quê?
Ele me olhou como um predador que está prestes da dar o bote, tinha o sorriso riscado de quem recolhia a caça de uma armadilha bem ajambrada.
- porque você a amará.
Esperei que ele completasse a idéia com algum argumento lido nos fóruns de swing da revista Ele/Ela. Como manteve o silêncio enquanto bebia mais um verde, intervim:
- por quê?
- é burrinho mesmo, né? agora fica “por quê”, “por quê”... bem, porque sim. você compõe as músicas que canta?
- não.
- então você as escolhe.
- é.
- demora para escolher?
- ah, cara, é meio como uma paixão momentânea, escuto algo novo de algum compositor e digo é essa, é a própria música que me pega. na verdade, ela me chama, se mostra para mim. mas depois tem que trabalhar o arranjo, encaixar na minha voz, aprender a variar no tempo de execução... – Eu estava excitado por poder falar de algo que conhecia em meio a tanta exposição de sabedoria daquele bêbado. Só então me lembrei: - mas o que isso tem a ver com as mulheres?
- trate sua mulher como trata sua música.
Eu não sabia se me sentia tonto pela quantidade de bebida na cabeça ou pela falação retórica do Carlos, mas por alguns segundos não consegui focar corretamente os olhos, me sentia dentro de um delirante conto do Charles Bukowski. Talvez faltasse alguma mulher maluca gritando ou alguém vomitando, porém eu percebia a mesma amorosa consternação em ambos as reflexões, a do escritor e a do bêbado da minha frente.
- você ama suas músicas, não é?
- sim... – Ele tinha razão. Eu não deveria reclamar por não receber amor das mulheres que me cercavam. Se eu escolhesse a quem amar, a recompensa estaria intrínseca. Eu amaria, que era o que importava, que me faltava para ser feliz. – sim, você tá certo. – Sorri e levantei o copo prum brinde, mas percebi que sua bebida havia terminado. – Garção, dá uma dessas bebidas verdes para o meu amigo Bicauisque aqui.
Ele sorriu e brindou comigo. Tentei relaxar o ambiente com uma piada. A conversa ainda estava densa no ar.
- cara, esse treco verde, isso é a porra do hulk?
- não, mas a minha ta aqui, quer provar? – Ele respondeu de bate-e-pronto, as mãos segurando o cós da calça.
- você já tinha escutado isso antes, né?
- é.
Sim, um palavrão bem colocado valia mais que mil poesias chatas.

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