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terça-feira, 8 de setembro de 2009

Bênção leiga

Já notaram que quase todo o mundo se despede sempre do mesmo jeito, sempre com as mesmas palavras? Há quem diga “Tchau”, há quem diga “Deus te acompanhe” ou “Vá pela sombra!”... “Deus te abençoe”... “Até logo”, “Até mais ver”, “Até amanhã”, “Adeuzinho” – e os poliglotas que se afastam com um “Adieu”, “See you later, aligator”, “Auf Wiedersehen”... Mas cada pessoa usa quase sempre uma mesma expressão para se despedir.

Fui algumas vezes a um cabeleireiro que tomava o rosto das clientes entre as duas mãos, sapecava-lhes um beijo na testa e dizia: “Eu te dou a minha paz”. Aquilo me incomodava. Excessivamente messiânico. Fui lá só umas três vezes. E, nessas três, respondi – rindo, mas era pra valer – que não queria levar comigo a paz de ninguém! Se ele me "desse" a paz dele, como ficaria? Sem paz?

Lá em casa, quando nos despedimos, dizemos “Juízo!”. Para nós, “juízo” passou a significar apenas uma espécie de “até logo”. A palavra perdeu a conotação real a tal ponto que sempre me espanto quando alguém retruca ao “juízo” automático que digo, levando ao pé da letra. Respondem: “Tarde demais!”, “Eu tento ter, mas não adianta” ou algo equivalentemente lógico. Por um segundo, penso: “ahn?”. E logo percebo, claro, a razão da resposta.

Uma amiga querida, a Claudia Dalla Verde, observou que digo “juízo” como se fosse uma “bênção leiga”. Você pode pensar que não sabe quem é a Claudia, mas sabe, sim. Ela é roteirista de TV, foi parceira do Flávio de Souza na criação do "Castelo Rá-tim-bum" da TV Cultura, depois escreveu o "Clube Disney", do SBT, e agora está fazendo "A Turma do Gueto". Quando a Claudia falou em “bênção leiga”, reconheci que, de fato, ao dizer “juízo”, é como se eu desenhasse uma espiral imaginária em torno da pessoa de quem me despeço. Uma espiral de proteção, um campo de força que isole de qualquer perigo. Nada a ver com superstições; é só uma sensação.

Quando meus filhos saem à noite e lhes digo 'juízo", não estou recomendando que “se comportem”... e eles sabem disso. Se por acaso eu estiver muito distraída e esquecer da “bênção”, parece q ficou faltando alguma coisa, que algo está errado, incompleto. Sou capaz de ir atrás deles, correr até o portão para completar a despedida...

Mas isso gera também histórias engraçadas. Em uma festa, eu disse como sempre “tchau, juízo” para uma moça que conheço muito pouco. Ela voltou da porta.

– Por quê?

Eu nem lembrava o que tinha dito, claro:

– Por que o quê?

- Por que você disse aquilo?

– O que que eu disse?

– “Juízo", ela repetiu, com um olhar desconfiado, de esguelha, me sondando.

Eu ri.

– Ah, digo isso pra todo o mundo... é meu jeito de despedir.

No dia seguinte, ela ligou para uma amiga comum:

– Mariana, a Betty me conhece?

– Bom... se encontrar você na rua, talvez não reconheça... mas se encontrar na minha casa, por exemplo, sabendo que somos amigas... claro que reconhece. Por quê?

– Ah, Mari, ela me disse uma coisa tão estranha!

A Mariana, ao me contar a conversa, estava achando muita graça na “coisa estranha”:

– Imagine que quando se despediu de mim a Betty disse... “juízo”!

E, diante da risada da Mariana:

– Será que ela me confundiu com a minha cunhada?

Eta! Que andará aprontando a cunhada dela? Despedidas podem trazer grandes revelações!

Enfim: se eu algum dia disser a você “juízo” – não me leve a sério. Não me faça confidências! Nem pense que considero você desajuizado, ou que confundi com alguém... É só um jeito de desenhar a tal da espiral imaginária de proteção... um jeito leigo de abençoar.
(2003)