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sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Sobre pesos, desenhos infantis, prumo e o Natal


O fim do ano é, para alguns de nós, uma época pesada. Mais do que todos os compromissos, é o peso. Os pesos que acumulamos não apenas ao longo do ano, mas ao longo dos anos.

Não é o peso das contas, das noites de sono perdidas, do excesso de trabalho, do salário que poderia ser maior. Também não é sobre o mês de dezembro e a sua predisposição ao caos e ao desastre, com a confraternização da firma, o amigo-oculto dos amigos, o amigo-oculto da família, o amigo-oculto da turma de 1997, a festa de Natal, a festa de ano novo, as compras, o shopping lotado, as férias, o planejamento das férias. Não é nada disso.

Não é o peso do ano. É o peso dos anos. É o peso de quem foi, do que não foi, do que poderia ser, de quem deveria estar e não está. A virada do calendário traz a renovação e, com ela, vem a análise. Com a análise, as lembranças. O que nos leva ao tal peso.

É nesse ponto que está a origem daquele sentimento de tristeza diante do fim do ano. É disso que os que não estão por aí saltitando felizes como se fossem figurantes de um musical nessa época de festas falam.

Na verdade, não é bem tristeza. É uma melancolia que a gente sente pesando, ainda que nem sempre saiba explicar na hora. Não é ódio ao Natal ou ao Réveillon. Não é trauma por causa de um presente não recebido. Também não é o arroubo de rebeldia do jovem que resolveu desafiar as convenções sociais e não estar feliz nesta época do ano. Esse poderia discutir a concepção de Maria na mesa do jantar ou colocar uma camisa preta no dia 31.

O peso é outra coisa. É o peso legítimo da piada que não foi feita na mesa de jantar, na hora da ceia e que jamais será feita outra vez. Ao menos, não da mesma forma, com o mesmo tom. É o peso dos encontros que sempre parecem despedidas. É o sonho com o rosto que vai se apagando lentamente.

Como borrões. Sim, borrões na memória, no olhar perdido sentado na mesa imensa, ou minúscula, na rede pendurada na varanda no início da noite quente na casa da infância. Borrões das fotos apagadas pelo tempo. Ou pela umidade. Do papel manchado pela água, pelas gotas, derramada, derramadas, ou simplesmente a marca do copo suado.

O peso do fim do ano, das festas, é o peso das lembranças, coisas com as quais nem sempre é possível lidar. Ou sequer se quer lidar.

Acontece que peso pode ser também prumo. E as lembranças uma espécie de quilha sentimental, própria, original. Como pequenos desenhos feitos com as canetinhas do cérebro, como os desenhos infantis, meio tortos, com sóis sorridentes e árvores flutuantes.

E, como os desenhos infantis, são lindos em um contexto muito específico. Depois, viram um envelope guardado na prateleira, um volume que não deixa fechar a gaveta do armário. Um peso.

Até que um dia, sempre chega um dia, se vai, não há mais espaço pra ele. Ao menos, não para todos. E se salva um. Dois, três. Que vão para outros lugares, que são redistribuídos, reordenados, até redescobertos, reorganizados em meio ao caos, não só do ano.

Que possa ser assim com outros envelopes, pastas, com outros pesos. E talvez uma boa hora pra esse dia de faxina possa ser em dezembro.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Frase para começar um romance #5


Encarou o relógio de parede, o ponteiro pequeno chegando ao cinco, ponteiro grande querendo abandonar o nove, e sorriu pensando que ainda era cedo.

quarta-feira, 25 de março de 2015

Frase para começar um romance #3


Apesar dos dois dias acordada, ela não sentia sono nenhum, enquanto costurava, lentamente, a blusa rasgada.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Frase para começar um romance #2


Sentado no ponto de ônibus, pode observar todo o tumulto que se seguiu ao vaso sanitário despencando em frente ao prédio número 224.

domingo, 25 de janeiro de 2015

A dança




Ela chega em casa; ele, esperando, sentado em frente à porta.

Que horas são?

Tinha saído. Sozinha.

Vê no relógio.
Eu te perguntei.
E eu te respondi.

Ele não quer saber as horas, só quer explodir. Não entende como ela pode estar feliz sem que ele esteja perto o tempo todo.
Ela não sabe das horas, não quer saber e nem quer saber dele, daquele jeito inquisidor, atrás dela. Foge, ou tenta, na verdade. Porque não tem sucesso.

Tava onde?
Dançando.

Ele está no limite. Vai atrás dela, num balé virulento pela sala do apartamento pequeno.

Não perguntei o que você tava fazendo. Perguntei onde tava.

Ela também está no limite. Ou talvez além dele.

Então você faz o seguinte: vai pra puta-que-pariu! E lá você pergunta e responde o que bem entender.

Uma pausa curta naquela dança mal ensaiada. E, após um pequeno respiro, a retomada do movimento.

Tava preocupado, a cidade desse jeito.

Ela não diz nada. Anda pela casa, tenta fugir dele: não consegue.
Está cansada. Da noite, da dança, do caminho de volta pra casa, das escadas pro quarto andar do prédio antigo, daquela conversa, dele. Dele, principalmente, dele.

Você nem pra dar um telefonema. A gente só vê desgraça na televisão. Fiquei muito preocupado. Você não pode fazer isso... Foram onde?
Para!
Você não pode fazer isso!
Para, por favor.
Você não pode fazer isso.
Quem você acha que é? Você ficou louco?

Ele não sabe, ela não sabe, ninguém sabe, ou sabem, quando ele segura ela pelo braço e ela se solta irada.

Você não pode fazer isso comigo!
Olha bem, você não é meu dono. Eu não tenho que te dar satisfação dos meus passos. Eu te falo o que eu quiser. E quando eu achar que devo. E nunca mais me segura desse jeito.

Silêncio.

Onde você tava?

Recomeça a coreografia pela sala. Ele atrás dela; ela em fuga.

Dançando.
Com quem?
Com os meus amigos.
Que amigos?

Ele intercepta ela numa quebra de movimento.

Que amigos?
Os meus.
Eu conheço?
Não sei.
Quem são?
É bastante gente.
São amigos ou amigas?
São amigos e amigas.
Nomes.

Retomam, como se a orquestra retomasse junto o movimento daquela canção em forma de disputa.

Quem são?

Nada, não há resposta.

Foram onde?
Para!
Você não pode fazer isso!
Para, por favor.

Não para, não param.

Que horas são?
Vê no relógio.
Eu te perguntei.
E eu te respondi.
Tava onde?
Dançando.
Não perguntei o que você tava fazendo. Perguntei onde tava.

Então você faz o seguinte: vai pra puta-que-pariu! E lá você pergunta e responde o que bem entender.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

De longe

Quem olhasse de longe não entenderia.
Ela estava agachada sobre a mesa do restaurante. Segurava uma faca com a mão esquerda e encostava na ponta o nariz. Na direita estava um garfo com as pontas tocando seu queixo.
Definitivamente, quem olhasse de longe não entenderia.
No entanto, cinco minutos antes, o ambiente era de paz e tranquilidade. Havia um casal sentado na mesa ao centro. Conversavam. Tudo aparentemente normal.
Estava ali havia meia hora. Sentado. Esperando. Movia lentamente a faca na mesa. Vez em quando, passava pela borda do prato. Mas isso não significava absolutamente nada. Ou não deveria.
Quando ela chegou.
Atrasada, ele disse.
Ela não respondeu. Beijou e começou a falar. Perguntou sobre o restaurante. Ele respondeu. Mas ela não prestou atenção. Tinha outras coisas pra falar. Mais importantes, ele imaginou.
Desistiu de ouvir. Pensou no quanto aquele atraso era sintomático. Pensou na vida. Pensou que pensar na vida era vago, coisa pra dizer quando não se está pensando em nada ou não tem nada a dizer ou pra evitar outras perguntas a respeito do que se está pensando. Pensou se era possível a vida se atrasar.
Quando se deu conta, ela ainda falava.
Geleia de damasco o que acha?, perguntou.
Não sabia o que responder. Se aquilo fazia de algum assunto ou se tinha a ver com o pedido. Sem saída, fez o que qualquer um faria: concordou com a cabeça. Ela sorriu. E continuou falando.
Ele segurou a faca. Não, não ia matar ninguém. Ainda que a ideia pudesse ser reaproveitada no momento oportuno. Riu consigo, rosto sem expressão. Com ela, desenhava nuvens imaginárias na toalha. A faca, não a ideia. Vez em quando, tocava com ela na borda do prato. Foi quando começou a olhar com atenção para o casal.
Pra isso, é fundamental usar aqueles cristais, ela disse.
Cristais? Copos ou hippies?, ele se perguntou. Não sabia o que, mas precisava responder. Responder rápido. Vacilava.
Ela sorriu.
Me acha boba né?
Não, que isso.
Achava. Claro que achava. Que papo era aquele de cristais? E geleia? Pensou num filme da adolescência. E riu de novo. Pra dentro. De novo. Ou consigo, como acharia bonito. Achava bonito falar consigo. E nunca tinha a oportunidade. Estava, afinal, rindo consigo.
Ela riu. Não dele. Ou com ele. Era um riso débil. Meio frouxo. Ele nem percebeu.
Ela continuou a falar.
Mas ele não ouviu. Estava olhando pro casal. Eles estavam numa mesa ao centro. A luz incidia sobre eles de uma maneira curiosa. Não sabia explicar. O casal se tocava carinhosamente. Eram jovens. Pareciam estar juntos há pouco. Ele imaginou, sem nenhum fundamento real. Só especulação. Pensou que tinham cara de estudantes. De humanas, provavelmente.
E ela falava.
Quem olhasse de longe, não entenderia, pensou. Tantas pessoas ali. Tão parecidas. E tão diferentes.
Ele não ouvia.
Mais nada.
Olhava pro casal. Tentava ouvir o que eles falavam. Mas não falavam. Nada. Não, não deviam ser de humanas. Talvez por isso se entendessem.
O telefone dela tocou. Era tosco. O toque.
Ela atendeu.
Ele continuou no casal. Agradeceu silenciosamente pela ligação. Ela encontrara outra pessoa pra conversar. Ou pra falar. E falava.
Tentava entender o casal. E fazia anotações invisíveis na toalha com a ponta da faca. Quando o telefone do rapaz na outra mesa tocou. O rosto da menina se fechou.
Instantaneamente.
A menina se levantou, subiu na mesa e agachou-se sobre ela. Com a mão esquerda, segurou a faca e tocou a ponta do nariz. Com a direita, encostou o garfo no queixo.
O menino não conseguiu atender. Ficou olhando. Estático.
Abandonou o casal e desviou o olhar de volta pra sua mesa.
Ela falava ao telefone. Ainda. Sobre geleias e cristais. Ele sentiu vontade de subir na mesa. Quem sabe se agachar e, garfo e faca a mão, compor alguma cena surreal.

Quem olhasse de longe não entenderia. Nem de perto.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Queria ser um cachorro


Tentou. Procurou especialista. Investigou métodos de transformação. Estudou por décadas. Tentou de tudo.

Tudo o que conseguiu foi aprender a urinar no jornal.

sábado, 25 de outubro de 2014

Queria voar

Não bastava fazer de avião. Ou asa delta. Ou parapente. Ou paraquedas. Queria voar mesmo. Sem artifícios.
Tudo o que conseguiu foi um suicídio aos 25 anos.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Antes do fim chegar

Quando eu morrer, queimem meu corpo e coloquem as cinzas nos canteiros com plantas da casa em que cresci na aldeia. Antes, bebam, riam, lembrem das nossas histórias e toquem umas canções. Quem sabe alguma coisa do Paulinho da Viola, do Chico Buarque, da Legião Urbana, do Pearl Jam. Façam uma mistura grande, uma farofada mesmo, essa mistura toda que me formou.

Esse é meu desejo. Se puderem cumprir, que seja. Espero não dar muito trabalho. Se não puderem, entenderei também. Ou não, já que morto, em tese, não teria condições de relativizar a situação. Mas fiquem tranquilos, não atormentarei ninguém, juro.

Minha avó, por exemplo, sempre disse querer ser enterrada de pé. A morte, rápida, um mês entre a descoberta da doença e o fim, atrapalhou as coisas: ela não falou sobre isso, os filhos fingiram que esqueceram. No enterro, não havia meio de enfiar o caixão deitado na gaveta. Levou uns 40 minutos até que muitos homens, além do coveiro, esforçados, conseguissem resolver a situação. Parecia haver dedinhos invisíveis segurando. A gente até riu de tudo isso, como uma forma de aplacar a dor.

Tenho pensado na morte ultimamente. Mais que o normal. Ver tanta gente boa morrer, próxima e distante, mas conectada de alguma forma, faz isso. No fundo, depois de várias conexões possíveis, volto sempre à mesma questão: é estúpida a morte. E como é.

A mãe de dois amigos queridos foi atropelada por uma bicicleta lá na aldeia. Na rua de casa. É a cena da qual provavelmente riríamos. Como sempre fizemos, aliás, rindo das nossas desgraças, dos fracassos, das nossas tragédias pessoais, coletivas e individuais.

Só que dessa vez não teve graça. A estupidez dela, da morte, veio rasgando. E o atropelamento de bicicleta virou morte cerebral. Em horas, dias, quase uma semana, não sei e nem importa. Estúpida a forma, estúpida a morte.

Nunca sei o que pensar nesses momentos. Como a gente consola alguém diante de uma coisa assim?, o que a gente diz?, não sei, não sei. Acho que a gente só deve chorar, a única forma de expressão sincera desse sentimento esquisito que vem. E, claro, dizer que tá ali, por perto, e pras pessoas ficarem firmes.

Mas é maior que isso. Fico pensando em quantas vezes na vida, nos próximos anos, vou ter, teremos nós, que nos deparar com situações, se não iguais, parecidas. E como em todas as vezes que penso sobre isso, reforço a certeza de que não estou preparado pra lidar com a morte.

Nem sei se alguém está. Só que a gente perde as pessoas sem estar mesmo. A gente recebe o soco, empurra o soco de volta e tenta transformá-lo em lágrimas e lembranças. Às vezes, literatura ou música.

Um pouco por tudo isso, voltar à aldeia é sempre pensar em saudade. E só aumentará, penso, essa sensação. Porque as coisas seguem, a vida segue, as pessoas envelhecem e morrem. E nem sempre envelhecem antes de morrer.


A verdade é que escrevi tudo isso pra falar as coisas de sempre, que a gente tá cansado de saber, que dói, às vezes, que a perda é foda, sempre. Então desculpa os clichês que estiverem soltos pelo caminho, mas escrevi pra falar, porque a gente precisa falar, precisa colocar pra fora essa coisa meio angustiante que toma a gente quando alguém morre. Não importa se próxima ou distante, tenho aprendido isso a cada dia, a morte de alguém querido, pra nós ou pros nossos queridos, é sempre uma força quase inconsolável que esmaga tudo por dentro.

Outra verdade, desculpem, não era só uma, é que escrevi pra lhes pedir o impossível. Amigos e amigas, não morram. Não, por favor, não morram. Vamos fazer o seguinte: vivemos todos até os 100 anos e, depois disso, começamos a evaporar devagarzinho.

E, se por acaso não for possível mesmo, que a gente possa se encontrar mais antes do fim chegar, porque a gente não sabe nunca quando ele vem, e ouvir mais músicas juntos e rir mais de tudo, de todos, dos outros, de nós, dos riscos. Da vida. Fazer as coisas que sempre fizemos, uma farofada mesmo, como sempre, essa mistura, essas grandes misturas que nos formaram.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A geladeira desligada

As janelas fechadas faziam entrar uma luz difusa do fim da tarde. Não havia ninguém vivendo ali. Os móveis também já não estavam.

A casa vazia se percebe pela geladeira desligada, pensou. Olhou por uns segundos antes de abrir. Aberta, contemplou as prateleiras vazias. Nenhum sinal de vida.

Fechou os olhos e tentou sentir o cheiro da comida no fogão. Não havia cheiro ou fogão. Só um espaço vazio.
Insistia na procura. Procurava por alguma coisa esquecida. Havia muitas.

Pequena, puxou o banco e subiu. Abriu o armário: pratos, copos, um escorredor. Tudo empoeirado. Pensou que o armário não impedia a poeira do tempo. Concentrando-se de novo na busca, não achou nenhum eletrodoméstico.

Não estava lá.

Desceu do banco e procurou embaixo da pia.

Um liquidificador. Pegou, organizou as coisas sobre a pia e ligou na tomada. Apertou o pulsar.

Pulsava.

Pensou em colocar gelo, cachaça e suco de frutas. Mas a geladeira estava desligada, não havia gelo. Cachaça, só no bar da esquina. E suco de frutas nunca havia entrado naquele apartamento.

Imaginou um milkshake. Mas lembrou da geladeira desligada. E leite, se houvesse, estaria azedo.

Melhor seria colocar ali a geladeira desligada, que parecia tão diferente iluminada por aquela luz difusa. Ou todas as suas mágoas. Sem escolher muito, decidiu pelas mágoas: a geladeira não caberia. Teve medo de transbordar. Apesar disso, ligou o liquidificador.

Mas não aconteceu nada.

As mágoas não poderiam ser trituradas. Até tentou.

Então, decidiu enfiar a mão na lâmina que girava.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Queria ser uma celebridade da internet

Curtia tudo, seguia a todos, comentava qualquer assunto. Era o rei do compartilhamento. Subiu um vídeo no youtube. Fez um vlog, um blog e até faria um fotolog, não fosse ultrapassado.

Tudo o que conseguiu foi estourar o limite de consumo da franquia.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Senhor, em que posso lhe ajudar?


Ligou para o restaurante.- Boa noite, senhor, em que posso lhe ajudar?
- Gostaria de fazer um pedido.
- O que o senhor deseja?
- Eu queria um amor verdadeiro.
Uma pausa longa. Ele esperou por uma resposta atravessada. Ou por compaixão.
- Não encontro no sistema. O senhor poderia fornecer o código do produto?

domingo, 25 de maio de 2014

Estava claro


A sala estava clara. No sofá, ela.
Ele não tinha espelhos em casa. Não gostava de se ver. Nem de vê-la. Eram feios os dois.
Estava claro.
Sem saber o que fazer, ele olhava pela janela. O sol se escondia atrás do prédio da frente.
A luz fica bonita assim, pensou.

Pensou, então, em se esconder com ela atrás do prédio. Quem sabe ficassem bonitos também.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Queria ser reconhecido nas ruas



Se inscreveu em todos os programas de tv que conhecia. Inventou fofocas sobre si mesmo. Tentou plantar notícias. Passou a esperar repórteres no centro da cidade, aqueles que entram ao vivo no jornal da hora do almoço. Pensou até em cometer um crime, quem sabe fizessem um retrato falado. Nada funcionou.
Tudo o que conseguiu foi rejeição.

terça-feira, 25 de março de 2014

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Seco


Engoliu em seco.
Aquelas palavras significavam mais do que pareciam. Ou deveriam.
Deixou o garfo sobre a mesa e perguntou o que ela queria dizer com aquilo.
Foi ignorado.
Pede outra garrafa.
Ele chamou o garçom. Pediu outro vinho. Outro pedido.
Seco.
Ele repetiu.
Não sobre o vinho. Sobre ela.
Nenhuma resposta.
Mas queria saber. Aquilo não podia ser uma simples frase.
Permaneceu olhando pra ela.
- Você tem que experimentar o filé.
Mastigava o ar. Olhos fixos.
Ela, cabeça baixa, desenhando no prato com o garfo.
- O ponto é perfeito.
Pensou, então, que o chef deveria gerenciar sua vida. Tinha dificuldades em estabelecer pontos perfeitos. Mas não disse nada.
- Desmancha.
Talvez fosse essa a intenção dela com a frase inicial.
Ele insistiu no significado.
- Os acompanhamentos também são excelentes.
Ignorado. Sem cerimônia. Outra vez.
Pensou que talvez o que ela havia dito não significasse nada demais.
O que não pensou foi que sua inquietação talvez fosse a resposta.
E, concentrando o olhar no que estava a frente, decidiu analisar, com cuidado, os acompanhamentos que pediria para o seu filé.



sábado, 25 de janeiro de 2014

Descafeinado

- Comprei um café.
- Nossa!, que original.
- Quer?
- Ah, sim. Adoro creme.
- Mas não tem creme.
- Então, quero. Adoro açúcar.
- Também não tem açúcar.
- Ok. Gosto de xícaras.
- Tá no copo.
Pensou no quão original era alguém comprar um café. Sem creme, açúcar e no copo. Possivelmente, descartável.
- De vidro?
- Descartável.
Sabia.
- Não tem problema. Preciso de cafeína.
- É descafeinado.
Não tinha cafeína.
Nem tinham nada em comum.

E talvez isso fosse a única coisa que explicasse aquele relacionamento.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

A bailarina


Amanheceu o sábado.

Ela levantou cedo. Não queria perder um segundo. O banho foi rápido, o café igualmente.

Foi ao armário. Lá estava a fantasia. A bailarina.

Dançou dos três aos 12. Parou: o quadril cresceu mais do que a professora de balé poderia aceitar. A fantasia era uma lembrança. E uma frustração.

Tirou-a do armário e do cabide. Estendeu sobre a cama e observou por alguns segundos. Os segundos viraram minutos de contemplação. Era muito bonita a roupa da bailarina.

Lembrou da infância. Uma lágrima escorreu discretamente.

Tirou o pijama e começou a colocar a fantasia. Mas a roupa da bailarina parecia ter alguma coisa errada. Não entrava. Não cabia na roupa da bailarina. Tentou mais uma vez.

Lembrou da professora do balé. E das outras bailarinas. Ia sempre assistir. Gostava de balé. Era apaixonada. Mas odiava um pouco as bailarinas. Pensou que a professora talvez tivesse razão. Definitivamente, não tinha jeito para bailarina.

Foi então que rasgou a roupa da bailarina. Inteira. Desfiou algumas partes, costurou outras. Em pouco mais de uma hora, tinha outra fantasia.

Odalisca.

A odalisca é uma bailarina gostosa, pensou.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Salgado


Fazia sol.
Tão forte, que ele mantinha os olhos ligeiramente fechados. Estava sentado em um banco no calçadão, em frente à praia, olhos fixos no mar.
Tranquilo.
Olhos no movimento das ondas. Ligeiramente fechados.
Pensou em Fernando Pessoa. Não porque fizesse sentido, mas porque achou que combinava. Quis declamar um poema dele. Mas não havia clima para. Também não conhecia nenhum de cor, o que impediria qualquer gesto.
Desviou, então, o olhar do mar, observando o que havia em volta.
Nada interessante.
Voltou e ficou pensando no tranquilo movimento ligeiramente fechado das ondas. E naquele eterno ir e vir.
Horas antes, ouvira muito sobre o ciclo da vida. Ir e vir. Começo e fim. Tranquilo. Que as coisas acabam. Que foi melhor. Que a única certeza da vida é.
Era clichê, mas, ao final de todo aquele discurso previamente idealizado, pôde sentir, de fato, o peso. Com a mão esquerda numa das alças.
Não tinha chovido. O sol forte. Desde cedo. Os olhares parados. Desde cedo. Não choveria. Não do lado de fora.
Olhou em volta de novo. Mas não encontrou ninguém. E pensou que peso não é só o resultado da ação da gravidade sobre os corpos. E pensou que pesava. E que talvez um gerúndio se adequasse melhor aquela sensação. E resolveu parar de pensar um pouco.
E respirar.
Mas não conseguiu. Angustiou-se um pouco. Havia um peso. Passou a mão no rosto e olhou pro mar. Procurando uma resposta. Tantas perguntas. Mas só uma, justo a sem resposta, era a única que interessava.
Durou alguns minutos. Talvez horas. Não saberia precisar.
Não houve resposta. Nem haveria.
Foi quando sentiu os olhos arderem um pouco e o gosto salgado da lágrima na boca. E, mesmo sem a resposta, pôde respirar.