quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

João da Capa



No Ano de 1953, no norte de Minas Gerais, em meados de Novembro, numa pacata cidadezinha chamada Porteirinha, aconteceu um fato curioso, para não dizer assombroso. Fato esse que vou narrar, mas, por favor, que os mais impressionáveis, não leiam.
Contam que, dentre os fazendeiros da região, havia um rico e abastado apelidado de “João da Capa”. Recebeu esse apelido por usar uma capa preta que arrastava no chão, a qual só tirava mesmo pra dormir.
Sua esposa, mulher dedicada, adorava jóia. Incansavelmente exibia colares, tiaras, anéis de rubis, chaveiros etc. Mas tinha um anel, solitário, uma super pedra de diamante. Esse ela não tirava nem para dormir.
Um dia, acometida de uma pneumonia, Dona “Esmeralda”, esse era o seu nome, veio a falecer. Não, sem antes, fazer seu marido, João da Capa, prometer que seria enterrada com seu anel preferido.
O enterro foi pomposo, muitas flores, homenagens dignas até, de uma autoridade. A banda da prefeitura acompanhou o cortejo e todos pareciam compadecidos com o sofrimento do marido.
Logo mais à noite, João da Capa foi visto de canto em canto, com uma garrafa de aguardente na mão num sofrimento de dar dó.
Os dias se passavam e sem se conformar João da capa cada vez mais era visto bêbado, delirando. “Descanse em paz Esmeralda”, “Deixe-me em paz Esmeralda”. Ninguém sabia ao certo o motivo das frases alucinadas.
Os amigos decidiram investigar e começaram a seguir os passos de João da Capa. A fazenda antes próspera e bem cuidada, agora abandonada, pois o coitado nunca mais lá voltara, estava às escuras. Na porteira uma mulher de branco, véu no rosto, de longe parecia muito com Dona Esmeralda. Zé Vitor, Joaquim e Alfredo, os amigos que investigavam o caso, pararam a alguns metros da fazenda. Os olhos arregalados, coração batendo em disparada:
__ Céus! É dona Esmeralda!
Constataram, apavorados, o motivo do abandono da fazenda. O fantasma da mulher agarrado a porteira gemia e gritava:
__ Devolva meu anel! Quero-o de volta ou nunca mais te deixarei em paz!
Deram meia volta e não olharam para trás!
Aí tudo ficou esclarecido.
João da Capa, largado no banco da praça, com muito custo, respondia às indagações dos amigos.
Disse que achou um desperdício enterrar a mulher com uma jóia tão cara e que antes de fechar o caixão, fez a besteira, tirou o anel. Agora não tinha mais a coragem de levar o “dito cujo” ao cemitério.
Pediu que os amigos o acompanhassem, mas um a um, todos deram uma desculpa. Não queriam se arriscar a uma vingança da falecida.
Eis que, depois de muitos goles, João da Capa se decide:
__ Vou hoje, à meia noite, ao cemitério devolver o anel. Abro um pouquinho o túmulo, jogo para dentro e vou-me embora.
__ Não João! Disse Alfredo.
__ Não vá embora sem rezar para falecida, ela pode cobrar a reza depois.
E lá se foi João da Capa, o relógio da igreja começou a 1ª das 12 badaladas. O silêncio era mortal; só se ouvia o ranger do portão do cemitério e os passos de João, capa arrastando no chão, invadindo os túmulos à procura do de Dona Esmeralda.
Era muito escuro, depois de alguns túmulos errados, eis que avistou o que buscava. Ergueu a tampa, jogou o anel e preparava-se para ir embora quando lembrou do que disse Alfredo:
__ Não sem rezar antes!
Ajoelhou-se então e apoiando os braços no túmulo começou:
 “Ave Maria cheia de graça... Agora e na hora de nossa morte Amem!”.
Pronto, agora com dever cumprido vou embora!
Nisso, ajoelhado, fez menção de levantar, mas, “Deus”, sentiu que era puxado de volta ao chão!
__ Alguém está me puxando! Suava frio!
Novamente tentava erguer-se e era como se alguém o puxasse para baixo. __ “Esmeralda de Deus”, perdoe-me, deixe-me ir embora.
Ele sentia como se alguém o puxasse para dentro do túmulo!
Seu coração explodia, o suor escorria, as pernas bambas, não deu noutra, o coitado teve um enfarte fulminante e faleceu ali mesmo! Pobre João da Capa havia ficado tão nervoso, não percebeu que era a própria capa que enroscava em seus pés e quando se erguia era como se alguém o puxasse de volta ao chão.
Seu enterro foi lindo, cheio de flores, homenagens, etc. Só um fato ninguém sabe explicar.
João da Capa foi encontrado sem sua famosa capa e por isso enterrado sem ela.
Esse fato mudou os hábitos dos moradores de “Porteirinha”. Até hoje, ninguém mais se aproxima da fazenda, pois dizem que é mal assombrada. Assim que o sol se poe toda cidade já dorme. Dizem que têm medo de encontrar João por aí reclamando sua capa. E você, por acaso sabe de algo a respeito da Capa de João? Se estiver com ela, leve até o cemitério quando o relógio da praça soar 12 badaladas. Ah! Só não esqueça de rezar.
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MPadilha

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Brasília




                   Para variar um pouco as postagens de literatura, esse mês postarei aqui algumas fotos minhas, da cidade onde vivo, Brasília.

 Interior da Catedral


 Catetinho


 Centro Cultural Banco do Brasil



 Ermida Dom Bosco




 Mastro da Bandeira



 Pira, com o Mastro ao fundo


 Panteão da Pátria


 Ponte JK, mais conhecida como Terceira Ponte



 Teatro Nacional, e seu jardim interior

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Rubra Flor

A espessura das palavras é algo extremamente importante. Tento construí-las como algo denso, quase impenetrável, que por si só terá a firmeza que necessita para se sustentar solitário. Retratar a beleza talvez seja o mais difícil. Não que se queira ignorar o fator de toda miséria material, porém é necessário transformar.
Todos carregam em si um tenebroso passado, uma quantidade imensa de chagas, que qualquer bofetão, pode afastar ao invés de acordar. Quando estava com Julia e sentia a respiração frágil dela, minha mão hesitava em tocar aquele corpo, só conseguia pensar em proteção.
Quando os olhos abriram, pude notar um grande conforto. Ela estava na nuvem do mais velho ancião. Qualquer sopro poderia ser trágico. Deitei a mão levemente em suas curvas e os olhos respondiam trocando pequenos afagos com os meus. Faz dois anos que isso aconteceu. Agora ela está ali, deitada, há uns dez metros de distância, no campo amarelo dourado pelo sol, cujas plantas eu não sei o nome.
Queria correr em sua direção, mas a fadiga é minha âncora e logo teremos que voltar aos fatos cotidianos. Sempre acreditei na força da transformação, porém em certos momentos comecei a duvidar dos métodos. Somos todos irmãos. Aprendi com ela a tomar cuidado com as palavras e hoje sei que um abraço amoroso é mais certeiro que meus livros vermelhos. Espero que não haja qualquer interpretação rancorosa em tudo isso.
Eis a poética da coisa. Caminhávamos eu e ela, lado a lado na grande marcha. Aqui, um momento de pulsão em minha vida. Creio que não era diferente com Julia. Num instante passou o braço em minha cintura e sentimos na pele o entendimento da palavra companheirismo. Marchávamos em pró do acesso a metrópole. Queríamos realmente ter acesso a aquilo? Almejamos o acesso ao sonho.
Depois no boteco, os companheiros bradavam os seus feitos. Eram engraçados aqueles momentos. Na base da cachaça, todos eram pra mim gigantescos heróis. Eu e Julia fazíamos parte daquele panteão. No auge das horas, os assuntos eram inacabados, não concluíamos nada, mas sabíamos que naquela unidade, tínhamos certeza de tudo.
Depois bamboleamos os dois de volta pra casa em cima de nossas magras pernas. No caminho, um gatinho de pelo preto e branco apareceu, era o nosso novo companheiro. Com ele atravessamos a cidade e quando passava sua língua lixa em nossos braços, tremíamos em risos ofegantes.
Julia é pra mim a flor vermelha da militância poética. Em seu centro se esconde um dourado vibrante, que se expande quando enche os olhos d’agua. Deitar ao seu lado era magnifico, porém quando caminhávamos juntos, eram esses os momentos que me constituíam força e vigor.
Certa manhã, deitados na cama, ela acordou dando risadas escandalosas.
- Que foi? – perguntei.
- Sonhei que grandes tomates usavam coroas.
- Nossa!
- Você acha estranho?
- Algo difícil né.
- Por quê?
- Não sei, nunca vi algo do tipo.
- Só acredita no que vê?
Ela estava nua e o seu corpo vermelho devido as risadas. De repente taquei-lhe um beijo e acreditei que aqueles tomates eram sujeitos bacanas. Gostávamos de tomar café da manhã ainda molhados pela água do banho. Toalhas soavam um tanto chatas e secar no decorrer do dia parecia mais divertido.
Um tanto absurdo. As reuniões coletivas eram marcadas por longos discursos e nem todos germinavam seus frutos. Era nos bastidores onde tudo se ajeitava. Tenho saudade deles. Sei que cada um tem seu tempo e com alguns, eu e Julia, deitávamos, brincávamos e amávamos. Sei que cada um tem seu tempo e espero também que compreendam meus erros e lembrem dos largos sorrisos que abríamos uns aos outros.
Hoje, separados nas trincheiras, sigo com meus escritos. Às vezes, penso que estou perdendo as forças, mas uma breve respiração me faz olhar para as pétalas que voam e reencontro meu caminho.
O mais compreensível e sagaz de todos, tinha uma barba muito cerrada e uma voz doce. Foi ele que me apresentou Julia. Ela usava um vestido branco que no centro possuía um grande girassol. Ele uma bata multicolorida e uma bermudinha de jogador de bola.
- Essa é a Julia.
Quando fui cumprimenta-la, me olhou de um jeito tão vivo penetrando facilmente na minha alma e de cara descobriu meia dúzia de defeitos que eu tinha. Ali me entreguei, a todo universo dela, de partidos, de eloquentes discursos, e de decepções intermitentes, que no fim, nunca superavam o carinho da camaradagem.
Um dia, tive o seguinte sonho:
Caminhava na rua sozinho, tudo em volta era cinza, somente meu corpo cintilava um branco estranho. Quando cruzei a primeira esquina, dei de cara com uma grande passeata de corpos cinzas mecânicos. Magneticamente meu corpo fora atraído por aquele fluxo. Todos olhavam para mim devido a cor que possuía, mas seguiam seu caminho, eu seguia com eles.
O destino final era uma enorme praça. Era perceptível que no centro da praça alguma coisa acontecia. Corri para ver o que era. Tudo ali possuía muitas cores. Todos os meus companheiros ali estavam. No centro estava Julia. Eles pareciam delicadas abelhas a procura de mel e se acariciavam. Julia era a grande flor. Eles explodiam em cor. Não era a cor original de seus corpos, vagueavam por infinitas aquarelas. Todos me olhavam convidativos.
- Você não vem? – perguntou Julia.
Percebi que estava descalço e comecei a caminhar em sua direção. Meus pés entraram numa morna lagoa. Rapidamente a agua já batia em meu pescoço. Senti o gosto das cores. Eu era um deles.

Ciclos

Sou semente
que desgarra e renasce
a cada primavera.

Sou dia
que a luz traz
e a treva engole
e regurgita a cada manhã.

Sou computador
que se auto-formata,
que se readapta,
a cada falha do usuário.

Sou poeta auto-libertário.

(em 13/11/2013)

domingo, 25 de janeiro de 2015

A dança




Ela chega em casa; ele, esperando, sentado em frente à porta.

Que horas são?

Tinha saído. Sozinha.

Vê no relógio.
Eu te perguntei.
E eu te respondi.

Ele não quer saber as horas, só quer explodir. Não entende como ela pode estar feliz sem que ele esteja perto o tempo todo.
Ela não sabe das horas, não quer saber e nem quer saber dele, daquele jeito inquisidor, atrás dela. Foge, ou tenta, na verdade. Porque não tem sucesso.

Tava onde?
Dançando.

Ele está no limite. Vai atrás dela, num balé virulento pela sala do apartamento pequeno.

Não perguntei o que você tava fazendo. Perguntei onde tava.

Ela também está no limite. Ou talvez além dele.

Então você faz o seguinte: vai pra puta-que-pariu! E lá você pergunta e responde o que bem entender.

Uma pausa curta naquela dança mal ensaiada. E, após um pequeno respiro, a retomada do movimento.

Tava preocupado, a cidade desse jeito.

Ela não diz nada. Anda pela casa, tenta fugir dele: não consegue.
Está cansada. Da noite, da dança, do caminho de volta pra casa, das escadas pro quarto andar do prédio antigo, daquela conversa, dele. Dele, principalmente, dele.

Você nem pra dar um telefonema. A gente só vê desgraça na televisão. Fiquei muito preocupado. Você não pode fazer isso... Foram onde?
Para!
Você não pode fazer isso!
Para, por favor.
Você não pode fazer isso.
Quem você acha que é? Você ficou louco?

Ele não sabe, ela não sabe, ninguém sabe, ou sabem, quando ele segura ela pelo braço e ela se solta irada.

Você não pode fazer isso comigo!
Olha bem, você não é meu dono. Eu não tenho que te dar satisfação dos meus passos. Eu te falo o que eu quiser. E quando eu achar que devo. E nunca mais me segura desse jeito.

Silêncio.

Onde você tava?

Recomeça a coreografia pela sala. Ele atrás dela; ela em fuga.

Dançando.
Com quem?
Com os meus amigos.
Que amigos?

Ele intercepta ela numa quebra de movimento.

Que amigos?
Os meus.
Eu conheço?
Não sei.
Quem são?
É bastante gente.
São amigos ou amigas?
São amigos e amigas.
Nomes.

Retomam, como se a orquestra retomasse junto o movimento daquela canção em forma de disputa.

Quem são?

Nada, não há resposta.

Foram onde?
Para!
Você não pode fazer isso!
Para, por favor.

Não para, não param.

Que horas são?
Vê no relógio.
Eu te perguntei.
E eu te respondi.
Tava onde?
Dançando.
Não perguntei o que você tava fazendo. Perguntei onde tava.

Então você faz o seguinte: vai pra puta-que-pariu! E lá você pergunta e responde o que bem entender.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Vagamundo

Vaga vagarosamente divagando, revirando o vácuo, vivendo o vazio, envelhecendo devagar e levando a vida em vão







quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

8760 horas de paz para cada ano...











Em uma fração de esperança

Num ritual de retorno para a paz,


Explosões de luzes e cores

Festejam e saúdam o novo ano e Iemanjá,

Ao som dos tambores e,

Bebendo do branco ondulado das flores

Que a deidade sereia vem buscar.


Na beira do mar cósmico
A madrugada dança enfeitiçada
Em vigília para não despertar.
Yèyé Omo ejá (mãe cujos filhos são peixes)

 

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Preguiçoso

Seu Gláucio sempre fora taxado de preguiçoso. Primeiro por sua esposa, depois por suas duas filhas, e por fim por seus genros - o que foi a estopim para que seu Gláucio pedisse o divórcio, mesmo após trinta anos de casamento. Dona Mariângela aceitou de bom grado, e ficou decidido que eles venderiam o apartamento da praia, para o seu Gláucio morar em um apartamento menor na cidade, só que desta vez sozinho. Ele não queria ninguém por perto para chama-lo de preguiçoso; nem para atender a insistentes pedidos de dona Mariângela “faça isso, Gláucio, faça aquilo”.
Com o dinheiro da venda do imóvel da praia, seu Gláucio poderia escolher, enfim, um lugar para morar sozinho. Mas, com preguiça de ficar escolhendo apartamentos, ele preferiu investir o dinheiro ganho e alugar um apartamento de um quarto no bairro universitário. Assim sendo, ele poderia ver da janela de casa belas meninas indo e vindo para a universidade todos os dias. Até no próprio edifício seu Gláucio poderia ver garotas novinhas, na hora de levar o lixo para fora, por exemplo. Tudo montado para que ele tivesse seus últimos anos de vida em paz, sem dona Mariângela lhe pentelhando, ou mesmo as filhas, que agora estavam casadas. “Já dei o que tinha de dar à elas. Paguei comida, roupa, faculdade. Agora que elas têm seus maridos, que fiquem com eles!” Era o que seu Gláucio dizia quando algum parente telefonava para saber como ele estava.
Mas a nova rotina do seu Gláucio passou a ser motivo de preocupação para sua ex-esposa e filhas. Seu Gláucio, que nunca fora muito de sair de casa, raramente saía do apartamento: com uma TV de plasma de 51 polegadas e mais de 200 canais a cabo, seu Gláucio já dormia no sofá da sala, que ficava em frente a TV. Ali era o seu QG. Quando ele levantava, era para ir ao banheiro, ou para buscar comida nos armários ou na geladeira. Ah, ele também levantava do sofá para ir até a sacada, algo em torno de 1 metro e meio de distância, só para ver “suas meninas” no horário de entrada e saída da faculdade. Sua família começou a se preocupar quando seu Gláucio parou de atender o telefone; primeiro suas filhas acharam que ele estivesse saindo de casa, talvez até namorando um pouco; depois pensaram que ele não queria se levantar da cama ou do sofá por preguiça. A verdade só veio à tona quando as duas filhas, e mais a dona Mariângela, foram fazer uma visita surpresa para o seu Gláucio.
Já no corredor, ao se aproximarem da porta do apartamento, o cheiro de mofo ia crescendo a cada passo que elas se aproximavam. Após tocarem insistentemente na campainha, as mulheres ouviram um: “Já vai!”. Quando seu Gláucio abriu a porta, as filhas viram o pai barbudo, pela primeira vez na vida. Não uma barba simples, e sim uma barba branca e grossa, tapando metade do rosto do pai:
- Ah, são vocês... O que vocês querem? – indagou seu Gláucio da porta.
- Queremos entrar, pai. Que tal? – perguntou Luana, a mais nova.
- Já vou avisando: tá bagunçado. – e abriu caminho para as “suas ex-mulheres” entrarem.
Dona Mariângela entrou tapando o nariz, devido ao fedor. Luciana, a mais velha, estava de boca aberta com a bagunça: extratos bancários, sacolas de supermercado, farelos de comida, tudo atirado no chão. Luana, sempre a mais animada, tentava brincar com a situação:
- Bem, mãe, certamente o pai não arrumou outra ainda. Não há vestígios de que uma mulher tenha passado por aqui.
- Não me importo com isso. Me importo com sua saúde, Gláucio! Isso é jeito de viver, homem?
- Me separei de você para não ouvir isso. Trata já de mudar de assunto...
Mas antes que uma nova discussão se iniciasse, as filhas apaziguaram os ânimos, para que não houvesse briga. Por uns quinze minutos elas ficaram lá, para ver o pai e sua decadência como homem. A maior decepção foi saber que seu Gláucio tinha um telefone sem fio, com bina, que ficava ao lado dele o tempo todo, e ele não havia atendido sequer uma ligação das filhas. Mesmo após a frustrante visita, Luana se propôs a visitar o pai, ao menos uma vez por mês. Luciana disse que precisaria de mais tempo para se refazer do baque, então sua visita seria trimestral. Já dona Mariângela lembrou-se da frase que ela mais falou para o marido ao longo da vida, frase esta repetida aos milhões: “Êta homem preguiçoso!”

domingo, 18 de janeiro de 2015

A Polaquinha

Mestre da narrativa curta, quase haicais em forma de prosa, Dalton Trevisan sempre foi cobrado pelos seus leitores a aventurar-se em uma história mais longa. Dezoito livros de contos depois nascia, em 1985, A Polaquinha, novela de que narra as estripulias de uma jovem curitibana no universo do sexo.
Polaquinha, cujo verdadeiro nome nunca nos é revelado ao longo da narrativa, leva uma vida medíocre, com namorados e amantes não menos ordinários do que ela. O primeiro, um moleque asmático, o segundo um jovem imberbe com problemas de coluna trocado por um advogado mau caráter e manco que por sua vez dá lugar a um motorista de ônibus de maus bofes e desempenho na cama proporcional à sua canalhice. Todos eles, de uma forma ou de outra, usam e abusam de Polaquinha que, mergulhada em um oceano de prazeres, deixa-se levar passivamente.
A prosa é enxuta, levemente pornográfica, contudo divertida. Rimos. Às vezes um riso de compaixão por uma moça que se deixa ingenuamente enganar por tipos de homens tão baixos, mas presentes no imaginário brasileiro. Em outras ocasiões o riso é amarelo, de identificação. Quantas Polaquinhas já não foram vítimas da nossa lábia, canalhas de plantão?

Os capítulos finais do livro simbolizam de certa forma a tragicômica mesmice em que Polaquinha se meteu (trocadilho forçado), numa constante troca de parceiros em um dia comum de uma moça que decide “dar-se” para ganhar uns trocados a mais dentro de um bordel fuleiro. O texto quase que se repete, inclusive nos diálogos, a despeito da rotatividade de clientes. Polaquinha nos desperta compaixão, pero sin perder la sensualidad.

Pagamento do Dia


vista cansada
sombras dormidas
em assombradas casas.
e uma dor
paga
à vista.

André Espínola

(Poesia presente no Ebook "Apenas Cinco Minutos")

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Predestinado

Um poema
de conteúdo etílico
escrito em letras garrafais

delirante
febril

Num guardanapo
amassado no bolso da calça
fadado ao esquecimento.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

FELIZ 2015!

RÉVEILLON

Na contagem regressiva,
fogos queimam meus remorsos
e a champanhe banha a Vida.

*

RÉVEILLON JAPONÊS

No silêncio de um templo,
os deuses e o vento
nos conduzem pelos tempos.

***

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

O foxtrote dos desiludidos


Como o salão é todo espelhado
uma hora você acaba se enxergando
severo, severo demais.
Você sabe que perdeu no jogo
qualquer coisa que te fará muita falta
mas a banda continua, inflexível
porque o show é bem maior que a vida.

É a primeira vez que você dança
o foxtrote dos desiludidos
mas a dama não vai perdoar
o seu menor deslize.
Você dança, algo entorpecido
e pensa em quanto ainda falta
para a hora do embargo total.
Mas a banda continua, inflexível...
zomba de tua desjuventude.

A dama quer tentar aquele giro
que você se esqueceu de ensaiar.
— Hoje você tem dezenove, ela diz,
amanhã terá trinta. A temporada
de ensaios it's over. E rindo:
Todas as formas de suicídio, darling,
resultaram/resultarão inúteis.

Você ri também (em todos os espelhos
suas mãos espalmadas contra o tempo).
Mas a banda continua, inflexível
enquanto a dama desliza (e com que
facilidade, e com que doçura) para
os braços de um cara mais jovem.

***
mais poemas do autor aqui

OUTRO MUNDO


Hoje
Repeti o mesmo mundo....no fim
Viver de amor....e depois
Morrer brandamente em mim

Outro castelo recriei
Após rochas caírem
Até a pintura borrei
Com as mais belas alvitres

Agora procure o que te desperta
O que te deixa em alerta
O que queima, mas não arde
O que, mesmo no fim, nunca é tarde

O que ficou para trás
São esfumaturas embranquecidas
Perde-se o tom da tinta
Mas não a importância adquirida

Pois mesmo manchas abstrais
Ainda borram a pintura que já fora
A vida em sete cores iniciais
Torna-se cinza, diferente de outrora

E não segui seus passos
Preferi os meus
Eram mais suaves
E livres do que os teus

Pesadas eram as rédeas
Que determinavam a direção
Dos raios e das pedras
Que atingiam o coração

Amanhã
Vou reinventar outro mundo.....se der
Morrer de amor....e depois
Ressuscitar num domingo qualquer

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

REZANDO


Não tá fácil pra ninguém
Sem salário não há vida
Num país de desemprego
Quaisquer mil paus
Um apertamento em Benfica
Plano de saúde
Vale transporte
Vale alimentação
Um mínimo de dignidade
Salvariam
Não tenho nada disso
Abandonaram-me ao azar
Durmo de favor na casa dos outros
As refeições são da mesma forma
Agora
Definhando com dores na cabeça de mil martelos
Deitado neste colchão nojento
Sem comer
Com febre
Sem forças
Meus ditos são os piores
Outra vez
Penso em roubar, matar…
Quando falta o pão sabemos não ter ninguém
Pesando cinquenta quilos sei os responsáveis pela minha bulimia
Negaram-me feijão
A fome mata!
“Matou a facadas por um Big Mac”
Escondido no porão
Não vejo a hora de estar preso
Ter alimento pra ingerir todos os dias
Reformatórios são hotéis cinco estrelas


Pablo Treuffar
Licença Creative Commons
Based on a work at www.pablotreuffar.com
A VERDADE É QUE EU MINTO

A VERDADE É QUE EU MINTO

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Um poema sem nome



Se meu filho se chamar Benjamin
faremos juntos um som, livre e experimental,
bem jazz, talvez com o Jack, colhendo notas,
como beija-flores sugando uns girassóis e alguns jasmins

Se minha filha se chamar Teresa
serei seu cúmplice, ligeiro, em assaltos a reinos imaginários,
ela sendo sempre muito mais companheira de fortaleza
- com a cara suja de terra, escavando túneis para nossa escapada –
do que donzela ou princesa

Se seu nome for Pablo
caminharemos pelas ruas de cidades antigas,
pisando nossos calcanhares calçamentos de pedras ancestrais,
visitando calabouços, catedrais e gargalhando em descalabro

Se seu nome for Rita
levará onde for um sorriso no rosto, e vez ou outra, ainda pequena,
andará pela casa tendo nos cabelos flores de margarida,
dançando dentro de um curto vestidinho rodado de chita

Se se chamar Benício
prevejo muitos tombos de bicicleta, joelhos ralados,
ansioso para abandonar as rodinhas, me ensinará sobre
a infante insensatez das crianças
e todos os dias serão um eterno recomeço e início

Se se chamar Manuela
gostará dos astros e se interessará pelas estrelas,
será questionadora e arisca, como as personagens de Jorge Amado,
e seus cabelos lembrarão de fato, em dado momento, os cabelos de Gabriela

Se teu nome for João Francisco
gostará de futebol, iremos a partidas em estádios
e o time que você escolher torcer será então meu novo time também
e chorarei ao seu lado nas conquistas,
dizendo ser em meu olho somente um repentino cisco

Se teu nome for Maitê
dividirei apenas em três as estações do ano,
criando uma nova e quarta primavera outonal,
onde as folhas das árvores e os frutos vibrantes florescerão
simplesmente por conta dos sorrisos que brotam em você

Se o chamarmos Joaquim
poderá ser um músico, violonista,
desses de ganhar corações com um sorriso e escrever
canções de amor sobre a disputa entre Pierrôs e Arlequins

Se a chamarmos Júlia
ouviremos discos de vinil, leremos poemas de John Lennon sobre sua xará
e aos nossos pés bolinaremos com dedinhos e dedões
nossa gata preta, que chamaremos Tertúlia

Se você se chamar Ernesto
discutiremos política e economia,
discorreremos sobre as guerras e as revoluções,
lhe explicarei sobre o Wikileaks e conceberemos, nós,
nosso particular e familiar “contra-o-mundo” manifesto

Se você se chamar Janaína
gostará do mar, do vento solar salgado na face, e quando já adulta,
morando no interior, será pelos amigos conhecida sempre;
sereia, seja das águas de cachoeira ou de fluorescente piscina

Se meu filho se chamar Dante
organizaremos nossa biblioteca pelas cores das capas dos livros,
em festiva ordem degrade, seu exemplar d’Os meninos da Rua Paulo
ao lado das minhas epígrafes e micro contos de Jorge Abrantes
e da Literatura Latina, fantástica e delirante

Se minha filha se chamar Nara
será pequena leoa delicada, de cabeleira volumosa,
sempre com as melhores perguntas na ponta da língua,
como as personagens de Drummond que um dia eu amara

Meu poema mais bonito,
ainda sem nome,
se avolumando no mundo,
silencioso e urgente
Nesse momento
eu olho e ainda não entendo,
à minha volta, venta, mas
o tempo, este parou de repente