Sônia pegou a correspondência ao chegar do trabalho, separou o que era para ela, e deixou as de João sobre a mesa, para que ele as abrisse quando chegasse do trabalho. Ao chegar, João foi para o banho e quando deitou ao lado de Sônia, começou a verificá-las, uma a uma.
- Conta, propaganda, conta, endereço errado, propaganda – dizia João em voz alta, o que tirava a atenção de Sônia para a novela; nada que ela já não estivesse acostumada. Foi aí que João viu um envelope timbrado com o logo de uma famosa emissora de TV, e curioso, abriu na hora. Tratava-se de um convite para João participar de um programa novo e que vinha tendo muito sucesso chamado “Qual é o seu Emprego?”, uma espécie de talk show no qual os entrevistados eram pessoas dos mais diversos trabalhos, em sua maioria desconhecidos, dando um relato do que faziam para viver. Na carta estava a data em que o programa seria filmado, e a emissora permitia que João levasse um acompanhante ao programa.
João ficou eufórico com o convite, mesmo não entendendo o que havia de tão importante em seu trabalho de assistente administrativo que merecesse uma entrevista para um programa de TV. Sônia não pôde viajar junto, pois teria uma semana corrida na escola atendendo pais de alunos, então João levou a sua mãe junto, que adorava uma viagem. Quando um carro da emissora veio para busca-los no hotel, sua mãe comentou:
- Meu filho, te desejo tudo de bom hoje no programa!
- Obrigado, mãe...
- Apenas, negro – assim João era carinhosamente chamado por sua mãe - tome o cuidado de não desdenhar muito a empresa que você trabalha. Ninguém sabe o dia de amanhã, meu filho...
- Tranquilo, mãe.
Já dentro do estúdio de gravação, enquanto sua mãe sentou numa das primeiras fileiras do auditório, João foi maquiado e aproveitou para conhecer alguns outros entrevistados: um mecânico de helicóptero, uma intérprete que falava 54 idiomas e um brasileiro que era crupiê em Las Vegas. E também a apresentadora, Mirian Bartholomeu, o que deixou João bem à vontade para a entrevista. Quando foi chamado ao palco, João foi apresentado como “assistente” ou “auxiliar” administrativo (devido à similaridade existente entre os cargos), mas no caso específico de João, Mirian iria se referir à profissão como “assistente”, pois assim estava descrito na carteira de trabalho dele.
- Bem João, o Brasil quer saber: o que faz um assistente administrativo?
- Hum... – pensou João rapidamente, para responder em seguida: - No meu caso Mirian, eu faço os cadastros de novos clientes, digito os pedidos e tiro os relatórios de vendas que meu chefe me pede.
- Que interessante, João! E qual a quantidade de pedidos digitados por dia na empresa?
- Depende, Miriam. Como nosso produto tem um alto valor, às vezes não digitamos nenhum pedido, às vezes dois, no máximo três talvez.
- E o que você faz quando não tem pedidos?
- Normalmente tomo mais café. – nesta hora, João ouviu risadas do auditório.
- “Quer trocar de trabalho comigo?” é a pergunta do nosso internauta com o nick de “Serjão”, do Espírito Santo, que é entregador de telhas e tijolos. Que tal João?
- Não Serjão, acho que não me daria bem em entregas – disse João, bebericando um gole de café – ainda mais que sinto uma dor no nervo ciático.
- Puxa, e isso dói mesmo, hein João? Me diz uma coisa, o sua empresa oferece plano de saúde?
- Sim, Mirian. Temos um bom desconto para funcionário, inclusive.
- E você alguma vez já usou o plano, João?
- Sim. Sempre que tenho crises de enxaqueca, geralmente naquele período de fim de mês que envolve muito stress, daí eu uso o plano sempre que vou ao hospital. Também há uns tempos atrás eu estava com sintomas de úlcera gástrica, mas os médicos me falaram que era psicossomático, que eu não devia me preocupar.
- Que bom João, melhor assim... Aqui temos a Valdinéia, de São José, Santa Catarina que diz: “Vou mandar meu currículo para o João, pois aqui na minha empresa não tem plano de saúde. Socorro!” Que tal, João?
- Olha, desde que ela não tome meu emprego, tudo bem. – são escutadas novamente risadas do público.
- Bem João, e o almoço? Você volta para casa, come na empresa, como é que é?
- Não dá tempo de voltar em casa Mirian. Aí como na empresa, tenho só uma hora.
- E o cardápio João, que tal?
- Olha, Mirian é basicamente o mesmo sempre. Temos arroz, feijão, três saladas e um tipo de carne, que pode ser de porco, de gado, frango ou peixe. Ah, e um pedaço por pessoa apenas.
- Mas, nossos telespectadores estão curiosos para saber João, a porção de carne servida é justa?
- Bem, Mirian, eu diria que quando é carne bovina, o bife é minúsculo...
- João, você está nos dizendo que são feitos cortes pequenos para bife em sua empresa?
- É. Ou talvez a carne que eles compram venha de um abatedouro que só abate bois e vacas com nanismo, não sei ao certo...
- Bem, voltando agora ao seu cargo de assistente administrativo João, quanto tempo é necessário para se treinar um estagiário para a sua função?
- Bem, como a empresa só contrata quando a coisa “tá preta”, geralmente estamos tão atolados de coisas atrasadas que o estagiário aprende tudo assim, nas coxas, entende Mirian? – o público ri mais uma vez.
- Certo... mas e nos dias mais calmos, que você passa a cafezinho, o que o estagiário faz? Serve o café para vocês? – o público ri com a pergunta de Mirian.
- Não, isso não era para ser dito, Mirian – risadas seguidas de aplausos, agora.
- Você diria João que se perde ainda muito tempo com pequenas burocracias, no dia a dia de um assistente administrativo?
- Infelizmente sim, Mirian. Mas o que mais tira o tempo do assistente são os pedidos que nossos chefes fazem em cima da hora. Você acredita Mirian que, uma vez meu chefe me pediu para fazer um relatório super complexo, com gráficos e tudo o mais, enquanto ele escolhia entre mais uma TV de plasma ou de LED para a sua mansão? E pior é que quando eu terminei tudo, ele disse que estava errado, que eu não tinha prestado atenção no que ele me pediu para fazer...
- E aí João, o que você fez?
- Ué, refiz tudo. Levei trabalho para casa e fiquei até a madrugada refazendo.
- Estes são alguns contras de sua profissão, João... lidar com chefes não é fácil para ninguém, o meu staff aqui que o diga... – seguem-se risadas do público, neste momento o cameraman faz um sinal de positivo com o dedo confirmando o que Mirian diz; e mais risadas do público.
- Como nossa entrevista vai chegando ao fim – escuta-se um “aaahhhh” do público – vamos para uma pergunta de nosso internauta Adão Nepomuceno, de Imperatriz no Maranhão. O Adão quer saber João se um assistente administrativo viaja a serviço, ou se isto é raro de acontecer... O que você nos diz?
- Hum... eu diria que é raro, Mirian. Bem, no final do ano temos uma festa que a empresa dá aos funcionários, e normalmente o evento acontece em uma cascata, que fica na divisa com o município vizinho. Creio que é o mais longe que já viajei a trabalho...
- Na divisa do seu município? Bom, acho que isso responde a pergunta do Adão de Imperatriz...
Naquele momento, Mirian fez as considerações finais, João despediu-se dela e do público, que o aplaudiu em pé por quase um minuto. Aí João sentou-se no lugar que estava reservado para ele, bem ao lado de sua mãe. Ali eles assistiram a próxima entrevista daquele dia de gravações, com um senhor que fazia locuções para corridas de cachorro, rinhas de galo, entre outras...
Um comentário:
Ah, André, seu texto descreve bem um ambiente de trabalho cheio de vícios, mesmices, sem insentivos e, pior, sem crescimento e investimento no profissional...
Postar um comentário