Será que somente eu estava
sentindo aquilo? Não era possível, olhar em volta, olhar pro mundo e somente eu
sentir aquilo. O aperto que sentia no peito, o choro travado na garganta que
dificilmente explodiria, não era possível que ninguém mais compartilhava de tal
sentimento perante a tudo que estava em nossa volta.
Mas no meio do caminho,
bastou ouvir o arfar do peito do meu pai soltando um profundo suspiro, a
engasgada na direção do carro e depois a acelerada forte pra entender que de alguma
maneira o velho compartilhava sentimentos comigo. E que homem incrível era
aquele, ao mesmo tempo era um dos motivadores de tudo isso que eu estava
sentindo, mas ele era uma pequena peça.
A lembrança que tenho
de acordar nesse dia era justamente ele entrando no quarto.
- Quer que eu feche a
janela? Tá muito claro aqui.
- Não, não precisa, logo
eu vou levantar.
- Mas por quê?
Perguntou meu pai, em um tom sugerindo que eu deveria continuar descansando.
- Vou levantar pra
estudar.
Simplesmente saiu do
quarto. Pouco tempo depois meu despertador tocou, mas não levantei de cara.
Estava num pequeno recesso do meu trabalho e resolvi vir visitar meus pais.
Apesar de querer manter uma disciplina nos estudos e na escrita, resolvi ficar
um pouco mais na cama, acho que acabei levantando só uma hora mais tarde.
Quando abri os olhos
definitivamente, me deparei com a visão do meu antigo quarto em proporções
muito menores, na verdade era eu que havia crescido, fisicamente é claro. As
paredes de um branco escuro, tudo muito limpo, fruto do trabalho da minha mãe.
Os móveis eram até novos, principalmente um guarda-roupas de grandes portas de
correr, havia também uma bicicleta eletrônica e um ar condicionado portátil.
Para completar o cenário, na parede figuram dois quadros: uma pintura de flores
dentro de uma forte moldura e uma foto dos super-heróis da Marvel. Ao olhar
tudo isso, fiquei triste pelas flores, tanto pela moldura que as sufocavam quanto
pelos heróis que não estavam dando a mínima para elas, simplesmente pensando em
salvar o universo para inflar ainda mais os seus egos.
Esse padrão de cenário
do quarto, com móveis novos contrastando com uma aparência antiga do cômodo,
valia para o resto da casa. Quando cheguei na sala dei direto com o meu
sobrinho Hugo.
- Bom dia Hugo.
- Bom dia – Falou isso
duma maneira um tanto mecânica sem tirar os olhos da televisão.
Tomei o café da manhã
sozinho e voltei para o quarto para pegar meu violão e continuar tentando tirar
uma música que comecei no dia anterior. Nisso lembrei-me de como foi a
experiência com meu irmão e meu pai em relação à questão da música. Baixei umas
cifras da internet e estava na tentativa de tirar algumas músicas que eu gosto
quando percebi que meu pai estava escutando e então me cortou:
- Que isso hein. To
achando que nesse trabalho seu deve ter sempre um violão a disposição porque
você melhorou.
- É, no tempo que sobra
eu tenho treinado.
- Se você continuar
assim, daqui um ou dois, três anos você já vai estar fera – Ele sempre falava
essa frase desde que eu era criança. Hoje em dia eu já não me importava mais,
mas durante muito tempo eu pensava que o prazo tinha vencido e eu ainda não estava
bom.
- É, o negócio é
continuar treinando – respondi.
Nisso chegou meu irmão
e percebendo logo do que se tratava mandou uma frase clássica:
- Cara, meu sonho é
ouvir você tocando uma música completa.
- Não dá, não consigo.
- Todos eles são assim,
isso me mata de raiva – comentou meu pai.
- Pois é, me mata
também – concordou meu irmão.
Resolvi então tocar
Knockin on Heaven’s Door do Bob Dylan, era muito fácil e talvez fosse agradar
eles. Quando terminei, meu irmão bateu palmas.
- As primeira palmas
que você mereceu.
Respondi com um sorriso
seco. Meu pai então pediu para que tocasse uma música do Geraldo Azevedo,
especificamente Dia Branco, baixei a cifra e comecei a tirar a música, mas logo
no início fui cortado mais uma vez:
- Não, a outra você
estava tirando no tom certinho, essa você não tá não.
- Calma, eu ainda to
tirando a música.
Nisso, meu irmão
colocou um vídeo na internet de um cara que fazia cover de Bruno & Marrone,
meu pai observou um tempo e logo começou a pedir para que ele colocasse outras
músicas. Continuei na minha durante um tempo, ainda tentando tirar minhas
músicas e nesse momento percebi algo que sempre colocou empecilhos na minha
vida em relação à música: é que na verdade o problema não era bem comigo, mas
no fundo, por mais que dissessem que gostavam de música, principalmente meu
pai, eles não tinham o mínimo respeito e incentivo com a mesma. Logo fui pro
quarto e guardei meu violão.
Passado essa memória,
continuei trabalhando mais um pouco em tentar tirar a música e depois apanhei
um livro do Dostoiévski, no caso, Crime e Castigo. Filho da puta aquele russo,
estava ainda nas primeiras páginas mas já dava pra notar a obra prima que era
aquele livro. Um autêntico romance, pra mim ele e Balzac eram os maiores gênios
da literatura. Conseguiam compor realmente criações esplêndidas, peças que se
criavam entorno de uma tema central, mas que no decorrer desse tema várias
outras questões eram inseridas, vários outros debates, debates filosóficos
sobre a essência humana que transcendem até os dias de hoje, carregados de
metáforas extremamente precisas. Será que um dia meus escritos seriam assim? Eu
sabia que não, mas era possível ver na obra deles um caminho claro para se
compor um grande trabalho, ao menos isso me dava um norte.
Mas as conclusões cruas
sobre a vida que eles apresentavam me faziam pensar bastante sobre a realidade
em que estava inserido e sobre meus objetivos de vida, eram conclusões na
maioria das vezes tristes sobre o caráter da humanidade, não só sobre o caráter,
mas sobre a própria condição miserável da humanidade e quando eu olhava em
volta nesses dias de natal, tudo parecia confirmar tais conclusões.
Primeiro pensei no meu
sobrinho Hugo, não só pensei como fui até ele.
- Você não quer ler um
livro e sair um pouquinho da frente da TV. – Sabia que essa sugestão indutiva
era ridícula e não concordava muito com aquilo, mas já estava ficando
desesperado com o moleque grudado ali por várias horas.
- Não, não quero.
- Não precisava ser tão
mal educado com o tio assim – Pior ainda essa frase minha.
Minha mãe ouviu isso e
veio:
- Então agora, você
também deu pra ser mal criado?
Ele simplesmente respondeu
tudo isso só com uma risadinha maliciosa. Quando o danado do moleque pegou num
livro, leu já esperando a hora que aquilo fosse acabar, sempre reclamando que
era muito grande. Quando terminou e perguntei o que tinha entendido, me disse:
- Eu entendi, toda a
história.
- Tá, tudo bem. Mas me
diz o que tem na história?
- Se você continuar me perguntando
assim, eu fico com vergonha.
- Tá bom, foi mal. Mas
você não quer me contar nada da história?
Mais uma vez uma
risadinha maliciosa.
- Você não entendeu
nada da história, né?
- Não, eu não entendi
nada – E caiu em gargalhadas.
Minha mãe pediu que lesse
a história mais uma vez e ele fingiu estar dormindo e o caso se encerrou por
aí. Nesse momento comecei a olhar mais atentamente para meu sobrinho e minha
tristeza interior começou a se expandir ainda mais. O menino estava muito
gordo, não que fosse necessário seguir as regras malucas impostas pelos atuais
padrões de beleza, mas com certeza com todo aquele peso a saúde dele não ia lá
muito bem. Passava horas e horas em frente à TV, assistindo uns desenhos que
eram até legais, na verdade bem malucos, penso que deveriam ser bons pra
imaginação. Mas afinal, qual era a concretude que ele dava para toda aquela
imaginação? Gostava de desenhar, eu já havia insistido com minha mãe mais de
uma vez para que colocasse o menino num curso de pintura, mas ela sempre
negligenciava isso, preferia pagar as aulas de natação. Se nadava tanto, porque
continuava gordo daquele jeito? Ele parecia ser um garoto de poucos amigos, na
verdade, suas amizades pareciam se construir muito mais no mundo digital.
De onde veio tudo isso?
Foi uma escolha dele? Foi influência dos próprios hábitos da minha família? Uma
mescla das duas coisas? O mais provável é que realmente fosse essa mescla, mas
será que a condição do garoto era parecida com das demais crianças? É claro que
o recorte financeiro devia fazer diferença, mas quando eu refletia parecia que
todas as crianças do mundo estavam cada vez mais fadadas à merda. Esse menino
tinha salvação? Salvação do que? Salvação para que?
- O que você tá me
olhando? – Perguntou ele.
Nem respondi,
mergulhava tão profundo nos meus pensamentos que automaticamente meu corpo se
levantou e se recolheu para seu casulo no quarto. Lá abracei mais uma vez
Dostoiévski. A personagem principal era extremamente contraditória entre
supostamente se suas ações eram certas ou não, ou se ela estava até mesmo acima
de tudo aquilo. Que fazer o errado se justificava pelo certo que viria depois.
Nada dos dilemas daquela personagem estavam ajudando a me livrar daquela
tristeza expansiva, mas faziam com que mergulhasse ainda mais fundo nos meus
pensamentos, chegou uma hora que simplesmente me perdi do livro.
- Preciso visitar
alguns parentes. Sim preciso visitar eles, estão todos morrendo, estão todos
moribundos, mas preciso encarar tudo isso de frente. Preciso visitar minhas
duas tias, elas são as principais, uma já está bem velha, a outra teve um
derrame. Preciso vê-las. Tem minha vó, mas ela veio me visitar ontem, como
havia esquecido isso?
No dia anterior estava
parado na porta da cozinha, em pé, sem camisa, só de bermuda, segurando uma
grande caneca com água dentro. Provavelmente aquele era um dos momentos em que
estava perdido também nos meus pensamentos, mas ainda não acometido pela mesma
tristeza.
- Nossa eu vi um menino
aí na porta e pensei: ué, quem pode ser?
- Pois é, sou eu vó.
Como a senhora está?
- Eu to bem e você
Miguelin? – Era o apelido que ela me chamava.
Minha avó estava com
câncer desde o início do ano e era um dos graves. Já fazia uns quatros meses
que estava fazendo tratamento em Barretos. Ao que tudo indica o tratamento
estava progredindo bem e a velhinha estava aguentando fortemente, mas mesmo assim
que ridícula minha pergunta: “como a senhora está?”. A gente sempre sabe que as
pessoas vão continuar respondendo que estão bem, se fosse o contrário, se
dissessem realmente como estavam, tenho certeza que a freqüência das perguntas diminuiria.
- Também to bem vó, só
na correria mesmo – Que correria era essa? A dos corpos em movimento? Todos
indo na mesma direção, ou seja, a cova? Tanto eu como ela estávamos nessa mesma
corrida, a única diferença é que ela estava na frente do páreo.
- É, todos estamos meu
filho – Respondeu-me ela.
- Cadê o resto do povo?
- Então. Meu pai e meu
irmão estão ali desmaiados no sofá, já minha mãe ta tomando banho. Vou lá
chamar ela.
- Não precisa não meu
filho.
- Não tem nada não vó –
Nisso fui até o banheiro, bati algumas vezes na porta e avisei minha mãe que
minha avó estava ali. Quando voltei, ela estava sentada em uma das cadeiras que
ficava em volta da mesa da cozinha, passando o olho pelo cômodo. Reparei então
que estava usando peruca. Meus Deus! O que era aquilo? Ela ficava bem melhor
careca, eu já a tinha visto uma vez assim ou também ficava melhor com seu lenço
na cabeça. Mas aquela peruca veio como uma punhalada no meu peito. Talvez tenha
sido ali todo o princípio da minha tragédia no Natal. O princípio da minha
tristeza. Eu não conseguia tirar os olhos da peruca, minha avó conversava
comigo, mas era como se estivesse falando em uma freqüência que meus ouvidos
não compreendiam, só conseguia olhar para maldita da peruca. Aos meus olhos ela
funcionava como uma terrível pincelada, na verdade várias pinceladas, uma
verdadeira composição a parte da realidade que estava ali para me demonstrar
concretamente todo o horror da condição humana que Balzac e Dostoiévski falavam
sobre. Maldita peruca!
Pelo que eu me lembro, toda a conversa foi sobre uma tentativa de roubo a um carro forte na volta dela
de Barretos. É, acho que realmente não passou disso. Mas e minhas tias? Eu
precisava visitar elas de qualquer maneira. A visita de minha avó foi apenas o
princípio, eu necessitava mais do que tudo ficar diante das duas, diante
daquela condição. Precisava olhar para o cru da humanidade.
- Mãe, quando der, vamos
visitar minha tia Soraia e minha tia Holga?
- Tá bom, assim que a
gente almoçar a gente vai.
O almoço só foi sair no
meio da tarde, mas como minha mãe disse, aconteceu. Pegamos o carro, meu pai
foi dirigindo, eu ao seu lado sentando no banco da frente e minha mãe foi junto com meu
sobrinho Hugo sentados nos bancos atrás. Minha tia Soraia foi a primeira a visitarmos. Ela não
estava na casa dela, estava na casa de outra tia minha, ambas eram irmãs do meu
pai. A distância era um pouco longa, acho que gastamos uns vinte minutos até
lá.
Quando chegamos, minha
tia Soraia estava na porta, sentada numa daquelas cadeiras de fio de nylon,
fazia muito calor naquela hora e a maioria das pessoas tinha o costume de
ficarem sentadas na beira da rua.
- Oi tia, como a
senhora ta? Disse eu a ela.
Nisso ela abriu a boca
e começou a chorar. Deu pra ver todos os dentes dela, eram bem curtos e tortos,
não sei se estavam quebrados ou se simplesmente eram daquele jeito mesmo.
- Para de chorar so! –
Minha mãe deu uma bronca nela.
Talvez pela bronca,
talvez porque o choro já estava lhe cansando, talvez porque esqueceu o motivo
de estar chorando, poucos minutos depois já parecia estar bem sossegada em sua
cadeira. Minha outra tia estava no fundo da casa, vendo que chegamos veio ao
nosso encontro nos receber.
- Oi tia, como você tá?
- To bem meu filho, e
você? Parece que você ta cada vez maior ou é a gente que só ta encolhendo
mesmo? – Essa piada era clássica na família, mas de certo modo acho que fazia
sentido. Na medida em que os anos iam passando, realmente parecia que os
mais velhos só iam encolhendo. Será que, quando velhinho eu também me
transformaria em um hobbit?
- Vamos entrar pra
dentro gente, vamos sentar aqui na cozinha.
- Não, vamos ficar lá
fora mesmo – disse minha mãe.
- É, ta muito calor
hoje, lá fora ta mais fresquinho. – Comentei também.
Então todos sentaram na
porta da casa. Meu sobrinho seguindo os seus instintos mais primitivos começou
a repetir várias vezes a mesma frase?
- Tia, me dá chocolate.
Tia, me dá chocolate. Tia, me dá chocolate. Tia, me dá chocolate. Tia, me dá
chocolate.
- O Huguinho não tem
chocolate, mas tem aquela bolachinha de morango que você gosta, você quer?
- Não, eu quero
chocolate.
- Hugo! Para com isso!
Daqui a pouco a gente compra um chocolate pra você – Disse minha mãe para ele.
- Você quer ir no
supermercado então? Haha eu já to oferecendo pra ela, pra gente ir no mercado
tem mais de semana e ela não quer, agora de repente ela resolve ir. – Disse tudo
isso em um tom brincalhão, meu pai, porque minha tia Soraia pediu pra ele que a levasse
no supermercado.
- É que eu quero
comprar umas coisas pra casa sabe? Um papel higiênico, um sabão pra lavar
roupa, tem uma marca que deixa as roupas muito cheirosas, você só põe um
pouquinho e rende até. Acaba que compensa.
- Então vamos lá –
Nisso meu pai e tia Soraia entraram no carro e saíram, deixando eu, minha mãe, minha outra tia e o pequeno
Hugo conversando a beira da rua.
- Tia, me dá bolacha –
Pediu meu sobrinho.
- Vou lá pegar pra você
fi.
- Não, vai lá e pega
Hugo, você dá conta – Retrucou minha mãe.
Meu sobrinho levantou e
foi buscar suas bolachas na cozinha.
- Hoje eu fui fazer uma
omelete né, dae a Soraia não deixou eu fazer, falou que ela que ia fazer, que eu
não sabia mexer com isso. Ou, mas ela colocou tanto ovo na omelete, um tanto de
sal também, que acabou virando um ovo mexido.
- Ela perdeu a mão pra
cozinhar né, depois do derrame? – Perguntou minha mãe.
- Perdeu, ela não tá muito
boa pra cozinhar mesmo não, a omelete, aliás, o ovo mexido né, ficou super
salgado.
- Nossa que estranho,
minha tia Soraia era tão boa pra cozinhar.
- Ixi, depois que ela
teve o derrame, até pra fazer crochê, ela não tá dando conta. Antes ela fazia
um tapete enorme, num instantin. Hoje em dia, ela começa, vê que não tá dando
conta, enfeza, desmancha tudo e joga pra lá. – Comentou minha mãe.
- Caramba! – Foi a única
coisa que eu consegui dizer.
- E o Marcelo seu
filho, ele ta namorando? – Perguntou minha mãe pra minha outra tia.
- Tá nada. A namorada
dele deu um pé na bunda dele. Agora ele fica aí, quase todo dia enchendo o cú
de cachaça. Mas se ele ta pensando que eu vou ficar sozinha, rumn, ele tá muito
enganado. Eu vou só dar uma repaginada em mim, porque eu to meio caída e vou à
luta minha filha.Você não gosta de ficar sozinho não, né Miguel?
- Quase ninguém nesse
mundo gosta tia, são poucos que tem esse dom.
- Nossa, ficar sozinha
é muito ruim. Você adoece, não tem ninguém pra cuidar de você, pra te dar um
remédio, pra dormir junto, é muito ruim. – Respondeu minha tia.
- Não deveria ser assim
né. Precisar casar, pra não ficar sozinho. Todo mundo poderia ajudar todo mundo,
até mesmo aqueles que a gente não conhece. – Disse eu à ela.
- Pois é, que nem uma
tribo né. Os índios que são assim. Às vezes, eu acho que eles é que são espertos
viu. – Colocou sabiamente minha tia.
- Pois é, também acho
tia.
Logo em seguida meu pai
e minha tia Soraia retornaram trazendo as compras. Uma das compras inclusive, era um saco de bombons. Imaginem vocês, que mais uma vez movido por seu instinto
primitivo, os olhos do meu sobrinho brilharam ao ver esse saco de bombons.
- Vovó me dá chocolate.
- Tá bom, vai lá e pega
meu filho.
Ele já saiu correndo pra
buscar os chocolates.
- Você já vai encher o
menino de doces – Comentou meu pai.
- Ai, ele nem come o
dia inteiro como você ta dizendo, come? – Minha mãe perguntou isso olhando pra
mim, na esperança que eu fosse concordar com ela.
- Na verdade, come sim
mãe. Ele come o dia inteiro assistindo televisão.
Então, Hugo voltou com
as mãos cheias de bombons. Arrependida minha mãe ordenou que ele pegasse só um
bombom pra ele e que desse os outros pros demais que estavam ali. Com os olhos
cheios de água o menino começou a oferecer os bombons para as pessoas, numa
tristeza que quase dava dó. No fundo era um bom menino, só estava sendo uma
marionete do próprio estômago.
Passado esse episódio e
por insistência do próprio Hugo, decidimos ir embora. Quando despedi da minha
tia Soraia, abriu a boca pra chorar mais uma vez, mais uma vez foi repreendida pela
minha mãe, a única novidade foi que meu sobrinho disparou a dar risada. Qual
era a graça que via naquilo? Talvez a miséria e o cômico sejam muito parecidos
e nem sempre as crianças saibam fazer a distinção entre eles.
Na volta pra casa, foi
justamente o momento em que meu peito estava apertado, foi o momento que
percebi que de algum modo meu pai compartilhava dos meus sentimentos,
provavelmente por ter visto a situação em que se encontrava a sua irmã. Passei
a viagem toda num absoluto silêncio. Quando chegamos em casa, assim que
descemos do carro, avistei minha tia Holga fechando o portão da casa dela. Era
vizinha nossa. Saí do carro e fui diretamente em sua direção.
- Tia Holga?
- Ô Miguelzin, nem vi
que você tava aí. Faz muitos dias que você chegou?
- Faz não tia, eu
cheguei ontem à tarde.
- Vamo entrar meu
filho.
- Vamos sim tia.
- Então vamo ué.
Não sei se minha mãe
estava esperando por isso, mas a maneira como eu aceitei o convite tão
rapidamente, não restou outra alternativa a ela que não fosse entrar também.
Descemos então a rampa para carros que dava acesso a garagem da casa e logo
depois visualizava-se a porta da sala. Do lado esquerdo da rampa ficava o
jardim dos meus tios, ainda era um jardim com muitas plantas, porém já não
estava tão bem cuidado como na época em que eu era criança. Meu tio era muito
zeloso com as plantinhas, na minha cabeça era o jardim mais bonito do mundo,
não podia ser, mas pelo menos da rua era, todos ficavam admirados com as flores
que meu tio cultivava. Mas ultimamente ele estava muito doente e já não conseguia
levantar-se da cama e a saúde da minha tia já não estava das melhores também,
sendo assim, eles não conseguiam cuidar do jardim com o mesmo zelo de antes.
Quando entramos na sala
dei uma observada em toda ela. Que diferença! As paredes estavam com a pintura
desbotada e em muitos lugares estavam cheias de reboco feito com barro. Na
minha infância e quando meus tios eram mais novos, aquela sala era magnífica,
tudo sempre muito limpo, os móveis brilhando e distribuídos de uma maneira que
sempre se tinha aquela sensação de que ali naquela casa até o chuveiro era
sério e respeitoso. Mas para além das paredes, havia poucos móveis na sala,
somente um sofá encostado num canto, uma cadeira perto da entrada que dava
acesso à sala de jantar e alguns colchões e estrados de cama encostados em
outra parede. Lembro que ela começou a dizer sobre o seu neto, que havia dado
um dinheiro para ele, mas a mãe acabou gastando e o menino ficou muito bravo. Mas
de repente algo na conversa me chamou a atenção: ela disse que seu netinho não
gostava de gente preta e de uma maneira muito natural. Como assim? O menino já
tinha nascido com um dom pra nazista? Não, minha tia dizia tudo aquilo com um certo
orgulho possível de ser lido nos seus olhos.
- Vamos embora então –
Minha mãe já ia se levantando quando eu a interrompi.
- Meu tio tá dormindo
tia?
- Vamo lá ver ele, vamo
lá.
Acho que até levantei
do sofá em que estava primeiro do que ela levantou-se de sua cadeira, depois
nos dirigimos pro quarto. Meu tio estava deitado no centro de uma cama de casal
encoberto por um lençol branco. Os móveis do quarto ainda eram os mesmos da
época da minha infância, todos de madeira maciça e bem ornamentados: uma cama, um
grande guarda roupas fixo na parede e de frente pra cama uma cômoda com um grande
espelho oval ligado a ela logo acima. Minha cabeça girava por causa das
perguntas que não paravam de surgir nela. Se meu velho tio conseguisse erguer
um pouco a cabeça e olhasse naquele espelho, qual seria a visão dele? O que ele
pensaria sobre?
Assim que entramos no
quarto minha tia puxou o lençol que o cobria revelando que ele estava usando um
fraldão.
- Bem, o Miguelzin tá aqui.
- Ahn? Ah sim, é, ele
foi lá ontem... disse que tava lá. – Meu tio disse essas palavras duma maneira
muito desconexa.
Minha tia estava
sentada na beira da cama, enquanto eu e minha mãe estávamos sentados em duas
cadeiras que davam de frente pra cama. Meu tio olhava fixamente para o teto e
enquanto as duas falavam sobre as plantas do jardim, ele tecia comentários que
não faziam nenhum sentido. Será? O que se passava na cabeça daquele velho
homem? Pensar que um dia ele já foi tão forte. Conseguia derrubar um boi
somente torcendo o nariz do bicho. Um dos meus antigos heróis naquela situação,
a pele extremamente enrugada, parecia ser chupada pelos ossos, a carne já era
muito escassa nele.
Tudo aquilo deixava-me cada vez pior. Por que eu tinha resolvido visitar eles? Quando as duas
comentaram sobre as orquídeas que ficavam no quintal do fundo, era o pretexto
que precisava pra sair daquele quarto e me levantei para ir ver as plantinhas.
Assim que saí do quarto dei de cara com o velho banheiro mágico. Ele era todo
azulejado com azulejos na cor de um verde água bem forte, lembro que quando
tomava banho naquele banheiro parecia que me encontrava em outro universo.
Agora figurava ali a cadeira de rodas do meu tio.
No quintal do fundo,
seguia nas paredes e muros, grandes rebocos de barro fazendo assim um plano de
fundo tenebroso para as pobres orquídeas. Conversamos ali mais um pouco sobre
as flores que elas davam e quando minha mãe chamou para ir embora dessa vez não
recusei, na verdade aceitei de cara.
- Não gente, fica mais.
- Não tia, a gente
precisa ir embora, ainda to meio cansado da viagem. Preciso descansar.
- Tá bom meu filho,
depois eu vou lá te ver então.
- Vai mesmo tia, to te
esperando então.
Chegando em casa eu
simplesmente desabei em um dos sofás, meu pai mais uma vez se encontrava
desmaiado em outro. A sala estava escura, o sol já tinha se posto, liguei a TV
e coloquei num canal de jazz clássico, essa era uma das poucas serventias que a
TV a cabo dos meus pais tinha. Os solos de sax e trompete fizeram-me esquecer
um pouco dos meus tormentos, acho que até cochilei um pouco.
Quando acordamos já
estava quase na hora de irmos para a festa de Natal que ia ser na casa de uma
prima distante da minha mãe. Lembro também que um pouco antes de começarmos a
arrumar para a festa eu e meu pai tivemos uma discussão sobre os rumos que
minha vida tinha que seguir.
- Eu ainda não conformo
de você ter largado sua carreira acadêmica.
- Por que pai? Eu já te
disse mais de uma vez que a faculdade abriu muito meus horizontes, mas hoje em
dia se eu continuasse lá eu só me limitaria. Não quero mais ter que ficar
cumprindo prazos e escrevendo coisas que ninguém lê pai, aquilo lá é uma grande
bolha.
- Mas meu filho, se
você realmente quer mudar o mundo, você precisa ter uma estrutura, você precisa
ser alguém. Ser um doutor, um juiz, pra poder dizer como as coisas vão ser.
- Hahaha – não consegui
conter o riso – Pai, você realmente acha que ocupar uma posição de poder dessas, vai adiantar? Você acha que eu não seria assassinado ou deposto?
- Ué meu filho, mas o
lá da Amazônia também foi morto... o... o... o Chico Mendes.
- Pois é pai, pra mim
tem que mudar tudo, não dá pra querer ficar subindo e depois mudar as coisas.
Ma sei lá viu, eu ando bem descrente, eu tenho a plena ciência que as coisas só
vão mudar quando as pessoas quiserem que mude, quando a maioria das pessoas
fizer pra que mude.
Nisso o velho parou,
mirou ao longe e disse:
- É, é tanta
hipocrisia, tanta podridão, isso inclusive a minha volta, na minha própria
família, eu não dou conta de fazer nada.
- Mas é porque a
maioria das pessoas pensa assim, que não pode fazer nada, que as coisas não
mudam.
- Fazer o que meu
filho? O que é que eu posso fazer? Eu não to dando conta de ajudar os meus próprios
irmãos.
Agora foi a minha vez
de mirar ao longe. O velho também estava certo. Tanto eu como ele, sabíamos que
o buraco era muito mais em baixo, na verdade, acho que a maioria das pessoas
sabia disso, mas afinal, todo mundo tinha que sobreviver.
Na festa de Natal, tudo
normal. Era notável que não haveria barracos como no ano passado, a família da
minha mãe era muito mais contida e havia ali poucas pessoas. Quanto menos gente
houver, menor o risco de barracos. Minhas primas estavam parecendo duas modelos,
dois mulherões e uma delas tinha apenas quinze anos.
- Meus Deus! Você ta cada
vez maior! – Falei pra ela quando a cumprimentei. Que frase de velho essa
minha, ela nem se deu ao trabalho de responder-me.
E realmente o resto da
noite foi bem tranquila, comemos muito, bebemos um pouco, contamos algumas
piadas, fizemos a reza na hora da virada. Só teve uma tia minha reclamando
sobre as músicas, de que não gostava de Pink Floyd e que preferia Gustavo Lima,
vai entender né. E ela não estava já velhinha pra isso não? Enfim, acabamos
voltando pra casa até um pouco cedo.
No dia seguinte, madruguei. Fiz minha mala, decidi colocar o pé na estrada. Escrevi um bilhete
de despedida pros meus pais e deixei em cima da mesa da cozinha. Nele desejava
feliz Natal pros dois e um feliz ano novo também, agradecia por toda
hospitalidade e também dizia como os amava. Mas como assim? Vocês devem estar
pensando. E toda aquela tristeza crescente, pra onde foi? Realmente é só um
babaca amargurado, criticando tudo que vê.
A parte do babaca deve
ser a maior verdade de tudo isso. Mas querem saber o real motivo da minha
tristeza? O que me deixa mais triste não são as pessoas, mas sim a condição em
que estamos inseridos. Ver as pessoas que amo nessa condição. Condição criada
pela própria humanidade, me entristece saber que somos responsáveis por isso,
por nossa própria cova e cada dia que passa estamos nos encaminhando pra ela.
Todos nós, no meio disso cada uma faz suas acrobacias, mas não adianta, cedo ou
tarde vamos estar como meu tio, olhando para o teto branco e caso consigamos
erguer um pouco a cabeça vamos nos deparar com o nosso próprio reflexo, o
reflexo de toda uma vida e que agora está moribunda e no fundo do espelho a
morte nos olha e ainda dá uma piscadinha.
Abri a porta da
cozinha, saí e antes de ir pra rua acendi um cigarro. Não costumava fumar, mas
nessa ocasião que se foda, era a minha piscadinha pra morte também. Nisso meu
tio Arnaldo chegou.
- Cara, você não tem um
Legião Urbana aí, pra eu escutar?
Eu não era muito
chegado na banda, mas fucei no meu celular, que não era dos mais modernos mas
tocava música, e por incrível que pareça acabei achando algumas músicas do
acústico deles.
- Tem essa aqui oh. – E
coloquei a música pra tocar. Era Teatro dos Vampiros.
- Noh Renato Russo hein
cara.
- Pois é – dei mais uma
tragada no cigarro.
- Me arruma um cigarro?
- Arrumo sim. – Tirei um
do maço e joguei pra ele, quando colocou na boca já acendi.
- Você ta aonde?
- To em Campinas tio.
- Campinas. O Mário
Augusto fez medicina em Viçosa, ele até tentou passar em Campinas, mas não deu
conta.
- É mesmo? Medicina lá
deve ser muito concorrido né.
- Medicina cara, você
tem que ser o... Ele morava com uns japoneses. Eu conhecia muitas pessoas, de
todos os lugares. Conhecia os japoneses, os alemães, os europeus. PAIS E MÃES
PASSEANDO COM OS SEUS FILHOS PRA CIMA E PRA BAIXO.
Nessa hora apaguei meu
cigarro e senti um arrepio que começou no inicio da minha espinha e foi até o
final. “Pais e mães passeando com os seus filhos pra cima e pra baixo”. Mario
Augusto nunca existiu, o meu tio era esquizofrênico, mas nesse exato momento,
com aquela frase entendi que diferentemente de nós ele estava livre de tudo
isso. Será? Nunca iríamos saber, só isso já o colocava em outro patamar.
- Tchau tio. – Com os
olhos cheios d’água abracei-o fortemente, acho que eu nunca havia feito isso
antes. Virei-me e saí.
- Tchau Miguel – Meu tio
nunca acertava o meu nome, aquela fora a primeira vez.
Um comentário:
Eu gostei muito do seu texto Marcos. Você demonstra ter as virtudes típicas de um bom escritor. É, de início, um bom observador da realidade que o cerca. A narrativa se desenvolve com fluidez até o final da história, que poderia ter sido mais conclusiva. A narrativa está carregada tanto reflexiva quanto emocionalmente, mas isso não perturbou a obra, ao contrário, foi em "boa medida" (o que só se pode avaliar da perspectiva do leitor médio alvo, se é que ao escrever você tem algum em mente). As personagens são "demasiadamente reais" e o conteúdo da narrativa é bastante pessoal, mas isso não é um defeito (é apenas uma virtude ambígua), contudo, como toda estratégia literária, essa não pode ser exagerada. Há, na minha opinião, apenas uma deficiência no conto: ele não articula e desenvolve, de modo suficiente e satisfatório, o seu motivo principal. O leitor tem a impressão de que o personagem central/narrador poderiam oferecer mais. Talvez, se a contradição dos sentimentos que, por um lado, são esperados em um Natal e que, por outro, são experimentados pela personagem central fosse mais desenvolvida, o conto não deixaria essa impressão de vazio no leitor. Há também um nítido conflito entre o ideal de felicidade natalino (leia-se: "para todos") e a condição real, concreta, dos personagens apresentados direta e indiretamente pelo conto. Talvez, esse conflito possa ser descrito como uma contradição do ideal das personagens do cenário narrado (ao menos no nível mais superficial da idealização) com a realidade vivida pelas personagens do cenário, e supostamente produzida por elas. Eu acho que a sugestão do escritor poderia ter sido, também, mais desenvolvida. Poderiam haver indicações mais concretas da relação , mas isso é só uma impressão. O final do conto é instigante e abre para um "sonho" muito bonito. No todo é um belo conto, eu gostei muito de lê-lo. Se tiver outros contos publicados me os indique, eu os leria com muito gosto.
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