Ontem, caminhando pelas ruas me
deparei com um beco e percebi que o mesmo me faria cortar o caminho em vários
passos. Mesmo com o adiantar das horas e do perigo crescente das nossas cidades
resolvi, por puro cansaço (ou foi extinto?), reduzir meu percurso com o auxílio
da pequena viela escura e tenebrosa.
Tenho que admitir que meu primeiro
sentimento foi o medo, medo de ser assaltado, morto, esquartejado, ou passar
por qualquer sofrimento e tortura alheios a vontade de qualquer pessoa “normal”.
Contudo, após alguns passos, percebi que não estava só na padieira. Escutei
passos, o caminhar de alguém que conhecia, que a muito transpôs minha vida. O
medo majorou, o temor de nunca mais vermos tais pessoas e escutarmos seus
passos nos inerva a ponderar que na vida nenhum vínculo vale realmente a pena.
A não ser o familiar, o doméstico. Assim mesmo, ainda nos pegamos a pensar, às
vezes, e se tivéssemos nascido em tal lugar, em tal situação, esse tal, sempre
antagônico ao que é pragmático.
Persistindo em minha peregrinação
quase táctil pela via bruna, escutei uma voz. Um brado rouco, baixo, quase um murmúrio.
Chegando a assemelhar-se àquele silêncio sonoro que todos já ouvimos quando
estamos em peleja com quem amamos. Quando o silêncio é o pior das altercações,
pois é a única conversa que não amortiza o problema, ao contrário, aumenta-o.
De forma que, quando liberado, já está maior do que a própria língua. A própria
razão torna-se irracional, bruta, e assim problemas passados são trazidos à
tona. Fala-se sem pensar, age-se sem pudor, sem educação, vai-se até o local
mais longínquo do coração. Quando, mesmo sendo senhores de nossa língua nos
tornamos escravos das nossas palavras.
Após o sussurro, veio o tranco, a
foice a cortar. E incisivamente cortou, amarfanhou como a quem precipita a
navalha bruscamente. Empós o corte, a cicatriz cauteriza-se, mas nunca
desaparece. Aguarda o momento injusto, descabido de abrolhar. Quando incisa, a
epiderme da alma nunca mais é a mesma. Torna-se mais densa, dura, áspera. Como
calos que narram experiências árduas, lições penosas. Assim, cada corte que
sangra também doutrina. Quanto mais cicatrizes, estigmas, mais sábios nos
tornamos. Todavia, nem sempre o que corta é navalha. A pena, tão leve e doce
quanto o beijo de quem se ama, pode ser tão talhante quanto. Por isso, conservo
todas as navalhas e penas que foram usadas em as quais usei.
Com o tranco corri, corri o mais célere
que pude. Como quem corre do medo, do receio de enfrentar o que está por vir, o
que está aí, o que ficou para trás. Corri como quem corre de mim, por asco de
amar, por medo de ser, estar, ou de quem já fui. Corremos da tristeza, da
incerteza, do obscuro, do que não é seguro. Corremos do incrédulo, do que não
achamos correto, do soneto em aberto. Até da sinfonia completa, quando temos
tudo que nos espera e sempre esperou. Corremos da felicidade, da novidade, da
porta aberta. Corremos, sempre.
Finalmente cheguei à luz, ao final do
túnel, do beco escuro. A lucidez que sempre desejamos. Que nos faz enxergar,
discernir o certo do errado, o sucesso do fiasco, o feliz do amaldiçoado, o sorumbático
do afortunado. Nada obstante, a luz imódica nos faz cegos. Ofuscados não
conseguimos distinguir quem, onde ou quando. Assim, decisões precipitadas,
errôneas, muitas vezes são tomadas, levadas a pino. A luminosidade da vida tem
que ser absurdamente controlada, sem medo de mudança, da alternância. Mais ou
menos luz? O que define é o momento. Quando acabamos de sair da escuridão
queremos a luz extrema, que chega a esquentar a alma. Porém, há um momento em
que devemos abrandá-la. Para que possamos enxergar melhor, bispar a quem, onde
e quando. Avistar o agora, à frente, clarificar a mente.
Contudo, após cruzar o beco, percebi
que ali não se encontrava vida, a não ser as baratas, ratos e outros
afortunados sobreviventes seculares da impiedosa evolução. Mas eu estava mais
vivo do que nunca, e meus fantasmas também. Os fantasmas que nos fazem
companhia pela vida, que nos fazem pensar a cada dia de nossa cadenciada
rotina. Todos os dias, ou quase sempre, atravessamos becos, vielas do dia, seja
em casa, deitados na cama, sentados na varanda. Sempre percorremos as ruas dos
pensamentos, as avenidas dos sentidos, e, ininterruptamente, sentimos que não
será a última caminhada pelo beco.
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