Quando eu morrer, queimem meu corpo e coloquem as cinzas nos canteiros
com plantas da casa em que cresci na aldeia. Antes, bebam, riam, lembrem das
nossas histórias e toquem umas canções. Quem sabe alguma coisa do Paulinho da
Viola, do Chico Buarque, da Legião Urbana, do Pearl Jam. Façam uma mistura
grande, uma farofada mesmo, essa mistura toda que me formou.
Esse é meu desejo. Se puderem cumprir,
que seja. Espero não dar muito trabalho. Se não puderem, entenderei também. Ou
não, já que morto, em tese, não teria condições de relativizar a situação. Mas
fiquem tranquilos, não atormentarei ninguém, juro.
Minha avó, por exemplo, sempre disse
querer ser enterrada de pé. A morte, rápida, um mês entre a descoberta da
doença e o fim, atrapalhou as coisas: ela não falou sobre isso, os filhos
fingiram que esqueceram. No enterro, não havia meio de enfiar o caixão deitado
na gaveta. Levou uns 40 minutos até que muitos homens, além do coveiro,
esforçados, conseguissem resolver a situação. Parecia haver dedinhos invisíveis
segurando. A gente até riu de tudo isso, como uma forma de aplacar a dor.
Tenho pensado na morte ultimamente. Mais
que o normal. Ver tanta gente boa morrer, próxima e distante, mas conectada de
alguma forma, faz isso. No fundo, depois de várias conexões possíveis, volto
sempre à mesma questão: é estúpida a morte. E como é.
A mãe de dois amigos queridos foi
atropelada por uma bicicleta lá na aldeia. Na rua de casa. É a cena da qual
provavelmente riríamos. Como sempre fizemos, aliás, rindo das nossas desgraças,
dos fracassos, das nossas tragédias pessoais, coletivas e individuais.
Só que dessa vez não teve graça. A
estupidez dela, da morte, veio rasgando. E o atropelamento de bicicleta virou
morte cerebral. Em horas, dias, quase uma semana, não sei e nem importa.
Estúpida a forma, estúpida a morte.
Nunca sei o que pensar nesses momentos.
Como a gente consola alguém diante de uma coisa assim?, o que a gente diz?, não
sei, não sei. Acho que a gente só deve chorar, a única forma de expressão
sincera desse sentimento esquisito que vem. E, claro, dizer que tá ali, por
perto, e pras pessoas ficarem firmes.
Mas é maior que isso. Fico pensando em
quantas vezes na vida, nos próximos anos, vou ter, teremos nós, que nos deparar
com situações, se não iguais, parecidas. E como em todas as vezes que penso
sobre isso, reforço a certeza de que não estou preparado pra lidar com a morte.
Nem sei se alguém está. Só que a gente
perde as pessoas sem estar mesmo. A gente recebe o soco, empurra o soco de
volta e tenta transformá-lo em lágrimas e lembranças. Às vezes, literatura ou
música.
Um pouco por tudo isso, voltar à aldeia
é sempre pensar em saudade. E só aumentará, penso, essa sensação. Porque as
coisas seguem, a vida segue, as pessoas envelhecem e morrem. E nem sempre
envelhecem antes de morrer.
A verdade é que escrevi tudo isso pra
falar as coisas de sempre, que a gente tá cansado de saber, que dói, às vezes,
que a perda é foda, sempre. Então desculpa os clichês que estiverem soltos pelo
caminho, mas escrevi pra falar, porque a gente precisa falar, precisa colocar
pra fora essa coisa meio angustiante que toma a gente quando alguém morre. Não
importa se próxima ou distante, tenho aprendido isso a cada dia, a morte de
alguém querido, pra nós ou pros nossos queridos, é sempre uma força quase
inconsolável que esmaga tudo por dentro.
Outra verdade, desculpem, não era só
uma, é que escrevi pra lhes pedir o impossível. Amigos e amigas, não morram.
Não, por favor, não morram. Vamos fazer o seguinte: vivemos todos até os 100
anos e, depois disso, começamos a evaporar devagarzinho.
E, se por acaso não for possível mesmo,
que a gente possa se encontrar mais antes do fim chegar, porque a gente não
sabe nunca quando ele vem, e ouvir mais músicas juntos e rir mais de tudo, de
todos, dos outros, de nós, dos riscos. Da vida. Fazer as coisas que sempre
fizemos, uma farofada mesmo, como sempre, essa mistura, essas grandes misturas
que nos formaram.
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