Capítulo 1 - De Criança a Homem, numa chamada.
Era
manhã de sábado. Eu tinha aquela sensação boa de ser um dos 2
curtíssimos dias de fim-de-semana. Aquela sensação de descanso, de não
fazer nada. Era o dia de ficar em casa, de pijama, a olhar para a
televisão enquanto comia bolo de mármore, fofinho, fatia a fatia. Este
era o típico e o melhor dos cenários.
Porém, nem tudo é como nós desejamos... Recebi uma chamada...
- "Tou" ?
E,
de repente, a manhã de sábado de suposto descanso tornara-se uma manhã
pálida, com a televisão desligada, com o bolo de mármore escondido e
só. Apenas eu, a mesa, o jornal, o telefone e uma inútil esperança de
arranjar emprego. Como haveria eu de me sustentar? Eu que vivia sozinho,
no meu apartamento T1, com uma cama barata e uma televisão com os
canais nacionais apenas. Não iria de certo pedir dinheiro aos pais, aos
amigos, nem pedir esmola na rua. Não, não queria chegar a esse ponto. Ao
ponto de ser gozado e a minha reputação de garanhão iria por água a
baixo.
Eram
já 4 horas da tarde e já havia tentado dezenas se não centenas de
oportunidades de emprego. Mas nada resultava. "Pedimos desculpa, mas se
não tem o 10º ano, não poderá entrar para a nossa empresa".
E
o tempo passava... Mas porquê esta estúpida ideia de sair da escola no
fim do 9º ano? Porquê? Achava eu que ia ficar a trabalhar naquela treta
de arrumador de caixas dos supermercados, ou lá como se chamava. Eu,
como só trabalhava para sustentar a minha vida de solteiro, nem queria
saber o que eu fazia, desde que o cheque com os números do salário
mínimo estivesse nas minhas mãos ao fim do mês.
Enfim,
era Domingo e agora tudo parecia importante. Eu, que nunca me importara
se a porta estava quase a cair ou se as escadas de madeira
antiquíssimas deveriam ser substituidas, estava agora importado com
tudo. Importava-me com a canalização, as contas da água e da
eletricidade. Estava com medo de as receber, mas principalmente de as
pagar. Certamente que nem as do mês em que estava poderia pagar, porque
todo o dinheiro que ganhava era dividido em noitadas, bebidas, até
prostitutas e, eventualmente drogas, porque não era uma pessoa que se
viciasse facilmente. Fumava o meu cigarrito 4 vezes ao dia, mandava pela
varanda a baixo e divirta-me a vê-lo acertar na cabeça das pessoas que
passeavam na rua, e depois fugir como se fosse uma criança.
As
semanas passavam, e eu estava agora decidido a mudar. Talvez o
despedimento tivesse sido um mal que veio por bem. Treinava
agora malabarismos para ganhar uns trocos na rua. Quem sabe, se nos
instantes encarnados dos semáforos não ganharia eu algo para comprar
comida água e para entregar a roupa à lavandaria. Eu não queria que os
meus pais soubessem, fingia estar tudo bem. Nem lhes pedia um bocado de
comida que fosse. Nem um resto de um almoço em família que se fazia de
15 em 15 dias, aos domingos. Domingos esses em que eu deixei de fingir
não fumar, deixei de fingir ter um trabalho estável e uma vida
igualmente estável, repleta de amigos e de quem me queria bem.Deixava de
ser quem era. Porque agora eu tentava algo novo. Além de malabarismos,
tentava ser um "Homem".
Foi então, num daqueles dias monótonos de malabarismos para cá, malabarismos para lá, que um homem me interrogou:
- Porque fazes isto? Porque começaste e continuas a fazer isto?
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Miguel Gomes
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