Foi como se um
machado cortasse o pulso. Uma dor insuportável. O braço ardia em
agonia. Dilacerado. O susto a fez tremer. Foi assim que
despertou de uma soneca rápida naquela tarde: aos gritos.
A tatuagem no braço direito latejava.
O desenho de um coração sangrando simplesmente pulsava. O sangue não era
mais pintado. Era de verdade. Sujara a cama onde Estela adormecera minutos
antes.
A garota de 20 e poucos anos
morava sozinha. Mantinha, ela mesma, o corte de um moicano rosa feito
na cabeça. Exibia uma maquiagem pesada que se acumulava na pele mal
cuidada. Para pagar as despesas, fazia bico de atendente numa lojinha de
roupas góticas de um amigo gringo.
Depois de gritar de dor, tomou
fôlego e acendeu a luz fraca que tentava iluminar o quarto bagunçado.
– Que porra é esta?
Disse em voz alta.
– Que merda!
Praguejou ainda mais alto.
Segurou o pulso direito, olhou mais de perto, mas não conseguia acreditar
no que via.
Era a primeira tatuagem que havia
feito na vida: um coração "retrô" vermelho atravessado por uma seta. E agora ele
sangrava de verdade!
Correu para o banheiro, enfiou o
braço na pia, abriu a torneira até o fim. A água caia forte em cima do desenho.
Limpava o sangue mas não revelava cortes, nem mordidas de animal,
nada. Era como se o coração sangrasse por conta da seta atravessada.
Estela passou a mão,
esfregou a tatuagem com a esponja que estava caída no box. Era
isso mesmo: a seta fazia o coração sangrar. O desenho todo se agitava.
A tatuagem estava viva.
Enrolou a toalha no pulso e
correu para o guarda-roupa.
Vestia somente uma calcinha
rasgada e uma blusa velha de propaganda política há muito descartada por alguém
na igreja vizinha.
Ela era assim: passava uma vez
por semana na igreja, não pra rezar, mas pra ver o que havia de donativos à
disposição. Foi lá que conseguira dinheiro para fazer o tratamento
dos dentes que no ano passado haviam caído.
Estela tinha levado uma surra do
padrasto e perdeu dois dentes da frente. O mesmo sórdido que a
estuprou quando tinha apenas 13 anos. Para conseguir visitar a mãe, a moça se arriscou encarar o homem bêbado. A mãe ficara paraplégica depois de um acidente de
carro, onde tentava fugir do marido violento. Por absoluta falta de opção,
voltou aos braços do agressor e vive à mercê da loucura do homem.
O padre da igreja é um senhor
alegre, sorridente, o chamado “gente boa”. Sempre tem uma palavra de conforto
para Estela. “Minha estrela”. É assim que o padre Mércio chama a garota
punk cheia de piercings e tatuagens. E não se importa quando Estela "renova" o guarda-roupa com as doações.
Na ansiedade que estava, Estela pegou um vestido
qualquer, pelo meio da sala, mesmo antes de chegar aos cabides minguados onde pendurava as roupas velhas. Trocou de roupa e saiu
correndo de casa. De pés descalços, com o pulso amarrado na toalha. Ia em
direção ao padre Mércio quando novamente sentiu uma chaga se abrindo. Dessa vez
no pescoço.
Estela tinha um sol tatuado no
pescoço. Que agora pegava fogo. Queimava a pele da garota. Ela gritou
e voltou para casa, não conseguia andar de tanta dor. Voou para dentro do
chuveiro e a água que caia em seu corpo amenizava a dor.
Não demorou muito e logo sentiu
uma pontada no pulmão. Uma lança atravessava suas costelas. A espada de São
Jorge lhe tirava o fôlego rapidamente. Estela tinha um dragão e o santo
tatuados nas costas.
Sem aguentar o golpe, Estela
caiu. No chão, sentindo a lança atravessada nas costas, gritou em agonia.
Ninguém ouvia.
Foi então que, de uma das
pernas dela, duas cobras começaram a rastejar pela pele. Subindo em
direção ao seu rosto. Ela tinha duas serpentes tatuadas na perna.
Estela gritou mais uma vez mas já estava quase sem ar.
A noite chegou.
A porta da frente da casa estava
aberta. Na pressa de chegar ao chuveiro, esquecera de trancar. E assim
permaneceu até o outro dia.
Na manhã seguinte, um vizinho curioso
achou estranho a porta escancarada e se atreveu a entrar para ver se estava
tudo certo.
Encontrou Estela no chão da
cozinha. Sem vida, com uma faca na mão.
FIM
2 comentários:
Andrea, parabéns! O texto é conciso, objetivo, claro, muito bem redigido, perfeito...Também é profundo, fui além das palavras.
Tatuagem? Horrível.
Beijos!
obrigada shirley, fiquei honrada com sua leitura e seu comentário. um beijo.
Postar um comentário