O homem é bicho de não ser só
Havia no sertão um lugar desabitado. Tão ermo, enfadonho e
desolado, que por lá ainda se esperava a chegada de Cabral. Fazia silêncio
absoluto, a ponto de primeiro amedrontar e depois enlouquecer até quem tenha
predileção pelo sossego. Pois assim parecia que o tempo não passava, ou nem
sequer existia. E só se notava que ele existia e passava, por causa da
escuridão da noite que rendia o claro do dia. E vice-versa. Na falta de alguém
que mandasse, quem reinava mesmo era o sol, que no alto da sua autoridade
esturricava tudo, fazia o chão arder e não é qualquer nuvem que ele deixava
passear sobre a paisagem. Não tinha culpa. Afinal, se nasceu quente, dourado e
explosivo, não se queira que ele pudesse refrescar.
Mas o homem é bicho teimoso.
Seja em solo árido ou pedregoso, sempre há de aparecer
pessoa com ânimo de fazer morada, que nem mato, capim e maria-sem-vergonha, que
se dão a brotar em qualquer canto. E do nada surgiu uma dupla, que parecia há
muito tempo errante. Por falta de olhos que os cercassem, ninguém os viu
chegar, a não ser que os calangos possam ter a qualidade de testemunha. Na
falta de melhor nomenclatura, convém que Alto e Baixo lhe caibam como alcunha.
Arquitetaram choupana sem teto, de modo a enxergar o céu
escuro antes de dormir. Tentavam plantar de tudo, mas só comiam o pouco que a
terra se dispusesse a produzir. E não era raro que faltasse alimento. Quando
era assim, não sobrava história que calango pudesse contar. Tudo era questão de
se adaptar, e da adaptação chegou-se à rotina, que evoluiu para a afeição ao
lugar. Se trabalho é ocupação, o Alto e o Baixo trabalhavam até o cansaço dar
aviso de chegada, e era menos pela sobrevivência que precisavam manter, e mais para
afastar o tédio. Alto e Baixo levavam uma vida de viver só por viver, o que
para eles não deixava de ser o melhor sentido que a vida deveria ter.
Diferente das nuvens, o vento, sempre ligeiro e expansivo, circulava
livremente sem que fosse incomodado, e isso em decorrência da artimanha de se
aproveitar da sua falta de aparência. E num dia em que estava especialmente
disposto, levou para lá um objeto diferente que planava suavemente, dançando ao
sabor de redemoinhos. O Baixo estranhou a visita, e, com um pulo certeiro,
apanhou a coisa suspensa. Quando se deu conta do que se tratava, pôs-se a
esbugalhar os olhos, com sintoma de hipnose aguda. Segurava um retrato do mar.
O Baixo passou a carregar o retrato para onde quer que
fosse. Bem aos poucos foi nascendo reflexão persistente. Uma ideia tomou de
assalto seu pensamento. Era tal como coceira. Ia e vinha sem parar e cada vez
que voltava aparecia com mais sustância. Passou a andar arqueado com o peso da
perturbação. E num dia, muito de repente, postou-se em paralisia, inerte como
tronco enraizado. Sacou o retrato, posicionou-o à sua vista e, sem aviso do que
ia fazer, deu um grito de criar eco, ecos e mais ecos, esvaziando todo o ar que
tinha guardado nos pulmões. “Eu não fico mais aqui.” “É na direção do mar que
eu quero ir”. Partiu com urgência, sem fazer aceno de despedida.
O Alto não demonstrou reação de se ter abalado. Resignou-se
com a imposição do destino, exibindo indiferença que quase esbarrava na altivez.
Logo pensou que, se antes eram dois e agora era um, mais comida haveria de
sobrar. Deu de ombros e se voltou ao que lhe era rotineiro.
Mas o homem é bicho de não ser só.
Depois que o tempo se arrastou, dando mostras de que a coisa
mudou, o Alto se aborreceu de só ter sua consciência para prosear. Pior é que
já não havia quem escutasse sua reclamação do calor. Não tinha paz para dormir,
tamanha era a aflição de abandonar o corpo desacordado em redor deserto. Nem
mais se deleitava com seu prazer de matar sede com água de moringa. Perdia a
fome. Sim, tinha desinteresse de comer sua parte da comida e a outra parte que
também lhe cabia porque sobrava. Tornou-se dono de tristeza esquisita, e sabia
bem a razão. Com o sacrifício dos joelhos, tombou no chão de terra batida e
começou a espirrar lágrimas em profusão. Chorou feito criança pirracenta,
porque a solidão é coisa que não se aguenta sem chorar.
Enquanto isso, lá pelas bandas do litoral, o Baixo era
pessoa transformada e já flertava com o deslumbramento. Conhecia gente, sorvia
do coco as delícias da água adocicada, saboreava carne de peixe e salgava-se em
banhos demorados.
Mas o homem é bicho inquieto.
Caminhando pela praia, o Baixo desequilibrou-se, tropeçou e
caiu de um jeito que foi natural a risada se espalhar. Com o rubor da
humilhação, levantou depressa, e olhando para a areia bradou com irritação:
“mas que malícia é essa de afundar meus pés? Lá de onde eu vim, tinha a
confiança de pisar firme no chão, sem o cuidado de evitar o infortúnio de cair.”
E depois disso, o Baixo começou a exercitar a comparação. De um lado a areia
mole e de cor aguada, do outro a terra dura e de cor marrom-forte, quase
avermelhada. Daí se vê que o Baixo ia pelo caminho de cultivar recordação do
seu ponto de origem, e é sabido que amontoar lembrança é querer chamar a
saudade, que quando chega sabe muito bem marcar presença. É o que dizem por aí:
o mar causa enjoo, e o Baixo enjoou do mar.
O sol já se punha, porque até quem tem poder de mando merece
descansar. No horizonte pintado de cor-de-abóbora, o Alto avistou a figura do
Baixo se aproximar. Os dois correram um contra o outro e se abraçaram com
aperto forte, e foi tão forte que rolaram no chão, levantando nuvem de poeira.
Aquilo foi de dar nó em garganta de calango curioso. Tudo voltou ao tempo de
antigamente.
Mas o homem é bicho rancoroso.
Dizer que tudo voltou ao tempo de antigamente é querer dar
conclusão rasa a questão profunda. O Alto tinha no seu íntimo algo desarrumado,
reclamando ajuste premente. Memórias sobre a desgraceira do desamparo eram como
filme de reprodução repetida. Uma voz interior atiçava com injúria irritante: “tonto,
frouxo e paspalhão”. Essa mesma voz, teimosa que era, passou a cobrar postura
de revide. Por aí é que a inteligência do Alto forjou julgamento fundado no
preceito de que cada qual tenha que dar paga pelo mal que causou. A sentença
estava pronta e acabada. O Alto partiu sem rumo e sem previsão de parada.
Deixou para trás o Baixo, que estava condenado a experimentar a mesma dor da
solidão que um dia provocou.
O Alto seguiu caminho com passo acelerado, chutando pedra atrevida
que parasse à sua frente. E desse modo percorreu trilha alongada, até quando
uma segunda voz anunciou advertência: “se o Baixo inaugurava solidão, por causa
de condenação, o Alto já ia para a sua segunda vez, e por causa de orgulho ou ausência
de perdão.” Então, começou a andar em marcha diminuída. De resoluto passou a
vacilante. Agora já quase nem andava. Braços jogados para trás em entrelace nas
costas e olhar fixo nos rasgos do terreno. Por ali se viu em grande dilema que
precisava solucionar. Parou, fazendo menção de se virar.
Porque o homem sempre será bicho de não ser só.
---
Nenhum comentário:
Postar um comentário