quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Convidado Pedro Arthur Vieira



Sobre o coração.


Eis que encontraram o coração, sozinho e apertado entre costelas e vizinhos, tecidos, musculo, veias e artérias, sangue, pulsação, contração e distensão, cumprindo com sua função designada sem se preocupar com grandes coisas além disso, apenas batendo, batendo e batendo, vinte e quatro horas por dia, estando o portador desperto ou dormindo. Nesse dia a Entidade a qual a existência não cabe a mim discutir disse ao coração:

"Fostes por demais barulhento, enquanto teus irmãos trabalhavam em silêncio foste o único orgão a querer se fazer sempre presente, sempre notado. Todos desempenham suas funções sem causar alarde, sem lembrar que estão ali, sem chamar atenção para o que exista dentro, sois o único chamando constantemente a atenção do portador para dentro de si mesmo. Queres tanto ser notado, o serás então, façamos jus ao seu egocentrismo. A partir de hoje todo e qualquer sentimento será tido por sua culpa, o enxergarão como causa de todo e qualquer mal, assim como toda e qualquer felicidade, qualquer sentimento, qualquer ânimo, todos eles te caberão a responsabilidade, qualquer sentimento será visto como partindo de ti e terá de reponder por eles. Ira, melancolia, júbilo, serenidade, esperança, desesperança, todos poderão ser creditados a ti. Inclusive a paixão e o amor, os mais arriscados, os que mais gratificam e mais fazem sofrer, será recompensado pela missão mas garanto-lhe que hás de sofrer antes de qualquer coisa. Chegará a um ponto no qual as mazelas humanas serão culpa tua e somente tua, mas não se assustes pois será caro aos portadores e eles não voltarão-se contra ti, mesmoo tendo por culpado. Antes de tudo sofrerá e pagará por aquilo que não é teu."

O coração não entendeu, apenas fazia aquilo que lhe incumbia a Natureza, não era sua intenção pertubar, só poderia ser daquele modo e não de outro, no entanto aceitou seu Destino sem levantar objeção. Milhares de anos após, quando a Ciência quis explicar que a culpa de todo o sentimentalismo era do cerebro e não do pobre coração a mesma entidade retornou a aquele mesmo coração:

"Carregastes o fardo de todo o corpo por muito tempo, pagaste o preço pelo teu pecado. Encontraram enfim o verdadeiro culpado por aquilo que tens carregado a culpa durante tantos anos. Estás livre de tua penitência."

O coração calmamente apenas replicou que não, o posto a qual foi designado continuaria sendo dele. A Entidade surpresa indagou porque continuaria carregando sozinho tanto sofrimento, e ele respondeu:

"Muito sofri, é verdade. Mas se ao longo desse anos eu
Era apenas tecido, pude me tornar seda, lã, algodão, ser rasgado e queimado, mas também acolher, abrigar e confortar
Era apenas músculo, pude me tornar muro, vaso, recipiente, ser posto a baixo, quebrado, pichado, mas também defender, guardar, ser colorido
Era apenas véias e artéria, pude me tornar rodovia, encruzilhada, ser pego por engano, confundido, enganar mas também mudança, movimento, caminho
Era apenas pulsação, pude me tornar incômodo, descompasso, criatura inquieta, mas também um alerta, música, vivacidade
Era apenas sangue, pude me tornar olhos, ser água e prantear a melancolia, mas também a felicidade,
Se me contrai no medo e na incerteza, fui arisco e inseguro
Me distendi e fui força, fui impulso
Deram-me tela em branco, pincéis e tinta e fui pintura,
Deram-me mármore, cinzel e martelo, fui escultura,
Deram-me asfalto, pernas, mochila, fui jornada,
Deram-me ritmo, palco e figurino, fui dança,
Deram me cordas extendidas, juntei às minhas batidas, ao meu sopro, fiz acordes e notas, fui música,

Se fui corpo, matéria, me tornei metafora.
Se fui razão me tornei paixão.
Se padeci, também vivi."

Assim, bem antes de surgir a primeira religião na face da terra já se fizera o primeiro mártir da humanidade. 



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 Pedro Arthur Vieira


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