Me sinto pequeno,
diante de cada harmonia que a princípio soa simples, mas a cima de tudo soa
sincera. É como se todas as minhas tentativas fossem meros falsetes, com
extremo esforço posso atingir um purismo técnico, porém vazio de criatividade.
No momento em que penso isso, caminho sobre a praia. Minhas calças jeans e
minha camisa vermelho sangue chama atenção no meio de tantos corpos seminus.
Paro. Olho para o mar e vejo as
linhas poéticas que surgem de cada onda. Ele zomba de mim. O mar zomba de mim.
Brincalhão como é, não poderia fazer algo diferente naquele momento.
- Oi.
Olho pro lado e lá está ela. Pequena
menina branquinha, singular em cada gesto, mulher atraente aos olhos comuns,
muito atraente.
- Nunca pensei que fosse te ver aqui.
- Nem eu.
- Como assim?
- Só quero dizer, que nunca me
imagino caminhando na praia. Sei lá, é estranho pra mim. Mas tudo ultimamente
anda tão estranho, que agora já não faz diferença.
Ela sorri. Ri. Sua risada é um pouco
mais disfarçada do que a do mar. Mas aquilo me soa como um sorriso. Vejo os
dentes e a boca, tudo fica em silencio naquele momento. Quantas vezes eu beijei
aquela boca? Era salgada como o mar? Talvez só no final. Ela me pergunta:
- Mas afinal quais são suas crises
atuais?
- Inutilidade poética em pleno auge
criativo.
Belos sons de gargalhada.
Maravilhosos sons de gargalhada.
- Como assim? O que isso quer dizer?
- Não sei, é essa a questão. Não quer
dizer que eu não tenha feito nada, mas tudo soa como inútil. Para poesia, pro
nosso mundo até que tem algum valor.
- Você sabe que não vejo sentido
nenhum nessa conversa.
- Sério? Pensava que não. Qual foi a
última vez que a gente se viu?
- Sei lá, faz muito tempo. Você tá
mais maluco do que antes, acho que foi por isso que a gente não deu certo.
- A gente não deu certo pela
utilidade que eu almejava naquela época. E agora que tudo finalmente se torna
inútil, eu não vejo sentido.
- Meu Deus, as vezes isso cansa
sabia? Você nunca pensou em relaxar, em ser normal?
- Normal? Corta essa vai. Você sabe o
tanto que isso é furado.
- Sei, mas quem sabe dizer essas
coisas não te ajuda a voltar pro eixo.
- Eixo, eixo, eixo, eixo, exu, exu.
- Acho que já vou indo.
- Não espera, senta aqui do meu lado.
Ela usava biquíni, o loiro do cabelo
refletia bem o sol. A pele tinha um contraste bom com aquilo e eu despenteado
como sempre sentia o suor escorrer, grudento, simplesmente grudento. Mesmo
assim me atrevia a estar ali, ao seu lado, na ousadia da troca de presenças.
Sentamos. Foi bom. Realmente bom
saber que existia alguém ali do meu lado, olhando o mar zombeteiro e que a
chacotas do espelho já não seriam secretas. O que ela pensava, o que ela
pensava dele, o que pensava de mim? O que eu penso sobre ela? Quem dera fosse a
única, mas foram tantas que minha esquisitice teimou em afastar. Se afasto
tanto porque será que atraio? Consiste numa teoria de polos opostos e
complementares?
- Você não tá com calor com essa
roupa?
- Sim.
Olho pra ela bem nos olhos. Azuis,
porém bastante sérios.
- Pra você o que é conversar comigo
nesse exato momento?
- Estranho, como sempre foi.
- Entendo.
- Entende nada, finge que entende.
Eis o meu primeiro sorriso do dia.
Ela gosta, gostou, sei que gostou. Maria Flor é o nome dela. Nos conhecemos a
dois anos atrás, o nosso relacionamento durou quatro meses e vinte e sete dias.
Poderia considerar como cinco meses, mas prefiro ser exato. Na verdade o seu
nome é Marcia ou Lidia, não sei, não me lembro mais. Mas esses são os nomes
mais recorrentes na minha cabeça, provavelmente é algum deles.
A atração carnal era ponto forte, mas
nunca se tratou disso. Ela cantava. Nem a canção materna era tão reconfortante
como a voz dela. Talvez pela ausência materna considerasse isso. Postura de mãe
não tinha. Era daquelas eternas crianças que aprende as brincadeiras da vida
adulta e sabe levar muito bem desse jeito. Fez muito bem para mim, como todas
de uma certa maneira fazem. A minha boa influência como sempre foi somente no
início, depois o caos.
Gostava de acariciar os cabelos do
meu peito, era fanática nisso. Eu tinha tara em seus pés. Depois que terminamos
cheguei a sonhar algumas vezes, somente com eles. Desperto novamente com frases
perdidas.
- Sabe o que é? Quando ti vi, pensei
em passar reto. Percebi que você estava distraído e provavelmente nem ia me
ver. Mas não sei, alguma coisa me atraiu pra você, magnetismo, e eu bancando de
pedaço de metal. Ai que raiva de falar essas coisas.
- Relaxa.
- Enfim, já deu pra notar mais ou
menos como anda sua vida, mas a minha também não tá boa.
- Eu nunca disse que minha vida
estava ruim.
- Ai, viu? É por isso que eu te
odeio.
- Eu sei e acho que você tem razão.
- E por isso também.
Tapei a boca dela com minha mão. Os
olhos refletiam indignação, mas lá no fundo agradeciam, pois sabiam que aquela
forma de comunicação a muito tempo já estava falida. Faliu para humanidade
toda. O gesto de carinho nos cabelos loiros veio como sucessão, a mão ainda
continuava na boca, os olhos me diziam tudo o que precisava. Pediam para não
fazer aquilo, mas denunciavam a entrega. Enfim ambos cederam, ela deitou no meu
colo e eu continuei com o carinho nos cabelos.
Queria perguntar para o mar agora, o
que ele achava de tudo isso. Será que ainda achava engraçado. Eu ao menos,
sentia que aquele gesto não fora um falsete, suspeitava que poderia haver algo
de poético ali. Cabe ao julgamento de cada um, ao meu, ao seu, ao do mar e ao
dela é claro.
Ficamos ali durante muito tempo, ela
no meu colo e eu lhe fazendo carinho. Por aquilo eu já conseguia compreender
porque sua vida estava ruim. Estava ruim, pelo mesmo motivo que a vida de todo
mundo está. Pela impossibilidade de uma nova forma de comunicação que nutra corpo
e mente e que seja para todos. Não havia o que fazer, a não ser dizer que
continuasse tentando.
Ela sabia também que eu continuaria
flutuando em minha orbita especifica, mas que aquilo ainda poderia ter uma
utilidade para todos nós. Uma autentica utilidade poética.
Passado muito tempo, nos levantamos.
Para não quebrar o protocolo, disse um pedido de desculpas com o olhar. Nunca
terei a certeza de qual foi a resposta. Ela simplesmente se virou e foi embora,
decidida sobre alguma coisa. Alguma coisa realmente importante.
Eu do meu lado, voltei a caminhar na
praia e ainda continuei a me sentir pequeno. Só que as notas já estavam todas
embaralhadas em minha cabeça. Arrisquei um assovio e acreditei que deu certo.
Fui emendando os fraseados e não parei mais. Continuo até hoje e compartilho
sempre que posso.
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