Um poema
arranha o vidro da janela com as unhas, anunciando sua presença numa
angustiante e lenta ranhura, como às vezes faz a chuva num começo de tempestade
Depois bate
rispidamente na vidraça, golpeando, esmurrando
Impondo-me a fazê-lo existir
É sempre
assim, inesperado e insistente e não tenho certeza se já me acostumei a isso
Forçando sua
entrada se arremessa contra a superfície transparente e cortante, sem medo de
que seu corpo seja lacerado se, com o impacto, tudo se estilhaçar
Ele deseja
existir e me escolheu para arranca-lo de sua carne ao devora-lo vivo
Enxergo seus
lábios, furtivamente sussurram algo
Tem dentes
sujos e olheiras escuras, seus olhos são minúsculos
Então levanto
da cama e apanho alguns livros, arranco suas folhas e preparo no meio do quarto
uma fogueira para receber meu novo amigo incendiário
As chamas
crescem, o vidro se estraçalha, o ar se torna pesado e irrespirável e a
presença monumental do poema toma conta de todo o ambiente
Sinto seu
impacto no peito, a boca instantaneamente seca e os olhos coçam
Fagulhas
rebrilham pelo ar tremeluzindo à minha volta, estou em chamas e minhas mãos são
torrões de carvão, negros e fumegantes
Há tanto calor
dentro do quarto que insetos e moscas caem mortos, ardendo ao meu redor, as
lâmpadas explodem e a madeira das estantes range endemoniada
Em delírio,
como amantes suicidas, num último reencontro mortal, nos abraçamos
Calidamente
nos beijamos, eu e meu poema, como fracassados misericordiosos que somos, não
nos escondendo em frestas sociais e purgando do singelo desconhecimento de
nossa conjunta obra
Mas isso pouco
importa, pois o fogo ainda continua queimando no meio do quarto e dentro da
minha cabeça as labaredas lambem meus lóbulos frontais
O poema então
senta em uma cadeira e dá o primeiro gole numa garrafa que subitamente surge em
suas mãos
O tempo é
curto
Não há nada o
que dizer
Pego uma
caneta, pouso no papel, deixo o sangue escorrer, o calor toma conta dos meus
ossos e então começo a escrever enquanto as chamas se alastram e tudo ao nosso
redor começa a incendiar
.
Um comentário:
Gostei muito.
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