domingo, 7 de junho de 2015

Um Cisco nos olhos - parte I



Apertou no peito o bilhete amassado. Arremessou a bituca de cigarro, colocou as mãos no bolso e aninhou com os ombros a mochila nas costas. Olhou os carros que passavam rápidos na Avenida, nem sinal do ônibus. A passagem custa R$3,10. Amanhã, vai tentar mais empresas, vai enfrentar mais entrevistas, vai ser testado novamente. Vai buscar um emprego. Como um boi no matadouro, como um porco sendo castrado.
Eram dez horas da noite e tem fome. Em sua casa há apenas alguns pães, já duros, e um pacote de macarrão. Mas não tem molho e pensa em fazer o macarrão com um tablete de caldo de carne. Sabor churrasco.
Estava contrariado pela derrota que sofrera no bar do Ramiro. Não havia resistido à tentação e passou no bar pra beber uma pinga, bebeu duas e desafiou o Ramiro pra uma melhor de três. Perdeu as duas primeiras partidas e jogaram a terceira só de sarro. Estúpido, pensara que pudesse vencer Ramiro e sair com mais dez reais da banca e ainda beber outra pinga. Foi tolo, como se aposta dinheiro com o dono do bar, o dono da mesa? Imbecil.
Perdeu dez reais.
Tanto dinheiro pra quem tem fome.
Dentro do ônibus, os passageiros calados, quietos. O ônibus está vazio. O terminal de desembargue ao contrario já está lotado, pessoas andando rápido, crianças de colo, senhores idosos e jovens voltando da escola. Todos esperando o ônibus que os levarão aos seus bairros, às suas casas. Um cheiro de pipoca, de sanduíche, de carne fritando se mistura no ar.  O gosto da gordura lhe vem à boca. Lembra-se da sensação de ter seus dentes rasgando um naco de carne. Há quanto tempo não come um pedaço de carne? O estômago começa a doer. É como se o socassem por dentro, forte, como se um boxeador o golpeasse o baixo ventre e o baço. A cachaça pegou em cheio suas entranhas e ácidos intestinais e os revirou como fazem com o lixo os moradores de rua, sobrando somente um chorume que, como um cachorro sobre a carniça, lhe devorava por dentro.
As tevês do terminal estavam sintonizadas em um telejornal e a todo momento surgiam, entre as falas dos repórteres, rostos de homens, com seus nomes e números com muitos zeros logo abaixo de suas caras. Seus rostos surgiam na tela, imensos. Eram os políticos da tal lista de corrupção. Uns caras começaram a falar sobre aquela merda toda ao seu lado e quando percebeu que poderiam puxar assunto, colocou os fones no ouvido. Mas não ligou a música no celular. Continuou a ouvir os homens agora protegido pela barreira dos headfones e seguro de que não lhe dirigiriam a palavra.
Listas de nomes. Isso o lembrou do dia fatídico em que seu nome surgiu na lista de demissões do canteiro de obras, numa bela manhã de sol. Inesperadamente. Chegou ao canteiro e um amigo o olhou de forma estranha, outros dois vieram lhe cumprimentar sérios. “Que foi mermão?“. Seu nome estava no fim da primeira folha, das duas pregadas na porta do almoxarifado. Francisco Rocha, e em seguida seu RG. O encarregado das finanças disse que a obra estava em conclusão e que decidiram cortar custos. Ganharia todos os direitos e o aviso prévio também seria pago.
Esse foi um bom período, bons meses. Ralava muito é verdade, mas tinha sua grana, tinha amigos, tinha uns chapas. E a grana era até boa. Dava pra sair no fim de semana, pagar umas cervejas para as meninas. Beber uns destilados dos bons. E a amizade entre os caras era firmeza. Às vezes, rolava uns empréstimos, quem ainda tinha algum dinheiro no fim do mês, segurava as brejas e as sinucas dos sem grana. No dia do pagamento era como o canto do galo, logo pela manhã, certeiro. Quem devia já passava o dinheiro vivo na mão do credor. Agradecia o empréstimo e se dispunha a ajudar caso o outro precisasse. Era como um acordo no fio do bigode, na palavra. Havia uma justeza entre aqueles homens. E quem não cumpria recebia a represália dos demais. “dá mancada não mermão“.
Ele gostava desses códigos, dessa confiança e camaradagem implícita. Era o segundo emprego dele na cidade, e começava a se interessar pela construção, pelo avanço colossal de uma obra, pela ideia de que suas mãos ergueriam tanto aço e concreto rumo ao céu infinito, modificando violentamente a paisagem. Observava também que muito dinheiro circulava ali, que os donos eram muito ricos, que andavam em carrões novos, que as contas e os gastos eram todos na casa dos milhões e isso o agradava, estar próximo de dinheiro. Começou a pensar que podia se tornar um encarregado ou um motorista de guindaste talvez, porque os motoristas não carregavam peso e ficavam boa parte do tempo, muitas horas do dia escorados em alguma sombra aguardando as ordens para subirem nas cabines das altíssimas máquinas e trabalharem sentados, enquanto ele, como servente só parava pra tirar o suor da testa. E os motoristas de guindaste por mais que trabalhassem, mantinham suas roupas muito mais limpas. Isso também o interessava.
Mas nada disso aconteceu, foi demitido, recebeu todo o seu acerto, alguns mil reais e os consumiu rapidamente em alguns meses, procurando outro emprego. Nos últimos tempos havia feito um bico num restaurante em troca do almoço, lavando as louças e todo o piso do salão, depois das três da tarde, quando fechavam a cozinha. Que se lembre, foi lá que mordeu pela última vez algo que se possa chamar de carne.
Seus dentes doíam, era a fome. Tinha que sair do terminal de embargue logo, o cheiro dos sabores da comida, e as lembranças ruins, o corroíam o estômago. Ter fome dói.


Merda de ônibus que não chega.

_ continua

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