terça-feira, 4 de agosto de 2015

Tratamento do Choque *



            De começo foi imperceptível e estranha infecção, daquelas que espreitam corpos desavisados, trechos não vistos e períodos decompostos. Amigavelmente, ia atingindo um setor, um membro, daí se espalhando para todo o corpo. Ou a maior parte dele.
            Isto em geral poderia resultar em uma atividade febril, na suspensão de sensações ou, em casos mais extremos, a morte do organismo. E os órgãos sabem que morrem coletivamente; o problema nunca é somente dos outros... Cada um tem sua parcela, a falência individual acaba tornando-se múltipla. Morrer é fácil, viver é fácil, o difícil é conviver, como já disse o poeta...
            Não que estivesse já nos estertores: por fora ainda brilhava o lume do uso diário, de aventuras passadas e outras atividades recentes que sempre refrigeravam, traziam um frescor de vida e beleza que areja lugares insalubres. Assim como o tifo, aparece quase sem querer.
            Austregésilo do Perpétuo Amparo tremia convulsivamente no meio da birosca mal ajambrada onde havia se refugiado, estrofes e parágrafos estragados nas mãos, um sem número de rostos, rodopiando em sua volta, sussurravam sibilantes: “Lindo”, “Maravilhoso”, “Belíssimo”, fora os “Bravos” e “Bis”. O pobre sabia estar nu e todos aplaudiam. Austregésilo tremia e tremia e tremia... Sabia estar infectado com o vírus do elogio gratuito.
            Foi salvo por um ornitorrinco resmungão, que aplicou-lhe vocabulária vacina:
            − Tu não escreveu nada! Não disse alhos com bugalhos e ainda quer palmas?
O pobre quedou ali sem entender, mas sentindo os tremores cederem, enquanto o Ornithorhynchus anatinus saiu gingando no melhor estilo Bogart e ao som dos maiores sambas da velha guarda barnasiana.
− Sincerol 500 miligramas, direto na veia. O melhor remédio para o nhe-nhe-nhem...
           

Austregésilo, de súbito atingido por inclemente chuva de tomates podres, sentiu que se não estava curado, ia no caminho da cura. E pôs-se a reescrever tudo aquilo que já havia dito um dia, sem dramas, nem dracmas, nem choro, nem lágrimas...  

* Em homenagem aos 10 anos de Bar do Escritor, um aperitivo publicado na quarta antologia do BdE: Tomo IV. 

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