Trata-se de uma deslavada inverdade que eu deteste palhaços. Um equívoco, desconhecimento dos fatos. Gosto inclusive de assistir suas estripulias em programas de televisão e é constante pegar-me em estridentes gargalhadas ao interagir com eles da plateia de um espetáculo circense. Nada contra estes respeitáveis artistas, dignos, a despeito da cara pintada e roupas coloridas. A imprensa exagera a esse respeito. Apenas não quero fazer parte do seu mundo, ser um deles, tenho lá os meus motivos.
Meu incômodo em relação a palhaços iniciou-se no dia em que a Tia Sônia, casmurra professora da turma do jardim de infância, resolveu dividir entre seus pequenos alunos os papéis que cada um desempenharia na festa de encerramento do ano letivo. Eu queira por demais representar um sapo no número musical ambientado em uma floresta, porém, Tia Sônia, mais sorumbática do que nunca, decidiu colocar-me no grupo dos Palhacinhos Dengosos. Reclamei com uma surpreendente polidez para os meus parcos cinco anos e como não consegui convencê-la, terminei por resignar-me, achando que ao explicar o caso à minha mãe tudo ficaria resolvido.
Mamãe já se acostumara com o meu comportamento maduro para a idade. Ela acreditava ser eu um “espírito antigo” desde que fora consultar um pai-de-santo para livrar-me de uma bronquite que nenhum médico da Terra conseguia curar. O pai-de-santo, incorporado por uma entidade que afirmava se chamar “Doutor Marcolini”, médico italiano que habitara Veneza no ápice da Renascença, ao dar de cara comigo abriu um largo sorriso e exclamou.
— Oh! Você por aqui? Que grande alegria! – e virando para minha mãe disse: — Este já sabe de tudo. Deixe-o tomar as rédeas de sua própria vida. É um espírito muito antigo… Muito antigo…
E receitou um preparado à base de xarope de ameixa e uma série de ervas que em dois tempos deu por encerrada a persistente bronquite que me acompanhava.
Sendo espírito antigo, mamãe deduziu que eu trazia de outras vidas aquele comportamento adulto que eventualmente desabrochava, como no episódio do palhaço. Seria comum na minha idade espernear, armar um berreiro, mas qual? De dentro de minha roupinha vermelha do jardim de infância, tão somente dizia que não queria fazer “papel de palhaço na frente de todo mundo”. Preocupada, a mãe foi ter com a professora.
— Não posso mudar o Marquinhos de grupo agora, Dona Veridiana – protestou a casmurra – Como as outras crianças reagirão? Além do mais, os coleguinhas dele estão adorando a ideia de se fantasiarem de palhaços. Não entendo porque só o seu filho está com esta história. Vamos fazer o seguinte: o Marquinhos ensaia e a senhora diz que ele não vai se apresentar. No dia, lá no teatro, vestido de Palhacinho Dengoso, eu tenho certeza de que ele vai adorar e se divertir como todos os outros. E a senhora vai ficar orgulhosa com os aplausos.
Tia Sônia apelou ainda para o conceito de disciplina e que seria bom para o menino aprender desde cedo que na vida nem sempre podemos fazer tudo o que desejamos.
Mamãe achava que deveria seguir as orientações do “Doutor Marcolini” e deixar-me “tomar as rédeas da própria vida”, mas preferiu não se confrontar com Tia Sônia, lembrando-se que meses atrás eu já havia entrado em contenda com minha primeira mestra ao teimar em não tocar “coquinhos” na banda mirim da escola. Sentia-me ridículo batendo duas meias-esferas de casca de coco seco e sempre que o ensaio se iniciava, pegava na caixa de instrumentos um triângulo de aço. Diante da minha firmeza em não ser um mero tocador de coco, Tia Sônia na oportunidade se deixou dominar pela insubordinação de um moleque de cinco anos, mas desta vez seria diferente. Uma maçã podre dentro de uma caixa poderia contaminar todos os frutos e para tia Sônia não perder o leme de sua turma, eu seria um palhaço.
Os primeiros ensaios revelaram que, mesmo sentindo-me desconfortável, eu era o melhor entre os oito Palhacinhos Dengosos selecionados. Ao som da música tema…
O Palhacinho Dengoso,
Dá três pulinhos assim!
O Palhacinho Dengoso,
Vira os olhinhos assim!
…lá estava eu, virando os meus olhinhos infantis com aplicação espartana, dando três pulinhos e cambalhotas com maestria de um palhaço profissional. Tia Sônia, encantada, decidiu que eu me apresentaria na primeira fila, no centro do palco. Desconfiado, afirmei só estar ensaiando e não iria participar do espetáculo. A professora, livrando-se momentaneamente da sua natureza carrancuda, afagou meus cabelos ruivos e disse:
— Como quiser, meu anjo. Você não vai participar…
A traição rondava a minha própria casa, invadia os corredores, transitava pelos cômodos até chegar ao quarto da minha irmã Natália, dez anos mais velha do que eu e cúmplice do plano de mamãe e Tia Sônia em fazerem de mim um palhaço. Foi de Natália a ideia de comprar uns dois metros de uma imitação de cetim branco com motivos em forma de losangos vermelhos e verdes. Pano não muito caro, contudo de efeito arrebatador. “Maninho vai brilhar no meio daqueles remelentos” – declarava triunfante.
Certo dia, ao chegar do colégio, deparei-me com mamãe e Natália num frenético trabalho de preparo da minha vestimenta de palhaço. Em meio aos seus gritos de entusiasmo diante da obra-prima que julgavam confeccionar, pude, pela primeira vez, ver aquela roupa que iria perseguir-me em pesadelos por anos. Era um simples macacão, parecido com os dos pilotos de corrida, porém com losangos verdes e vermelhos espalhados por todo o seu espaço, tendo o branco como cor predominante ao fundo. As mangas, compridas, eram acompanhadas em toda a sua extensão por uma fileira de guizos que tilintavam enquanto as duas davam os últimos retoques na fantasia. Surpreendidas pela minha chegada, ainda tentaram esconder a roupa. Magoado, resmunguei:
— Já disse que eu não vou me vestir de palhaço!
— Mas a roupa não é para você, Marquinhos, — mentiu mamãe. É para o Rogério. A mãe dele não sabe costurar e pediu para eu fazer.
— O Marquinhos tem o mesmo tamanho do Rogério, mãe. Vamos medir a fantasia nele para ver como fica? — perguntou Natália.
E sem que me dessem oportunidade, mediram em mim a roupa que eu ainda guardava pálidas esperanças em realmente pertencer ao Rogério.
No dia da apresentação, um calor infernal assombrou a cidade. Dirigimo-nos, os três, para o teatro onde seria o espetáculo. No táxi eu ainda protestei, dizendo mais uma vez que não iria participar. Mamãe, sorrindo, tranquilizou-me, afirmando que só iríamos assistir, mas a bolsa que minha irmã levava no colo pelo volume denunciava que eu não teria escapatória.
Dentro do camarim, várias crianças eram aprontadas por suas mães, cuidando de suas fantasias como escudeiros zelavam pelas armaduras dos seus cavaleiros. Sem opor resistência, deixei-me vestir e ser maquiado. Na cabeça, recebi uma peruca improvisada com uma meia feminina cujos cabelos em lã vermelha só aumentaram o calor. Nos lábios, um batom que tornou imprestável o sabor do refrigerante a mim oferecido minutos antes da apresentação. Estava vencido, domado, obrigado pela primeira vez em minha curta existência a fazer algo que eu não desejava.
Fomos chamados ao palco. Palmas nos receberam. As cortinas foram abertas. Resignado, encarei o público. Temia a vergonha de me expor diante daqueles desconhecidos, ser ridicularizado pela minha condição, ainda que temporária, de palhaço. Porém, aquele bando de pais e parentes que compunham a audiência pareceu-me amistoso, quase encorajador. Mamãe e maninha, sentadas na primeira fila, aplaudiram freneticamente a nossa entrada.
Um tanto encabulado, corri os olhos pelos meus sete companheiros de jornada. Todos pareciam deslumbrados com a oportunidade de estarem ali. Por um momento pensei ser apenas eu a criatura destoante da atmosfera de alegria a envolver o teatro. De súbito, a introdução da melodia já tão íntima explodiu nos alto-falantes.
O Palhacinho Dengoso, dá três pulinhos assim!
Desviei os olhos da plateia e procurei executar a coreografia ensaiada da melhor maneira possível. O calor por debaixo da vestimenta incomodava, as gostas de suor banhavam o meu rosto e misturavam-se com as rodelas de ruge que circundavam as bochechas. Uma sensação de total abandono me consumia.
O Palhacinho Dengoso, vira os olhinhos assim!
Esta era a parte do número que eu mais detestava. Tínhamos que nos posicionar de frente para o público, pôr as mãos nos joelhos e ao mesmo tempo arregalar nossos olhos e revirá-los. Tia Sônia havia ensaiado aquele momento até a nossa quase exaustão. Creio que nossa atuação deva ter causado um efeito arrebatador a julgar o “oh” de entusiasmo emitido pelo público. Percebi, em um canto do palco, Tia Sônia com uma expressão de alegria construída no semblante costumeiramente tão sisudo. Em vez de me sentir recompensado, desejei que os minutos corressem, e que tudo aquilo se encaminhasse para o fim.
O Palhacinho Dengoso, dá piruetas assim!
Meus guizos emitiram um estridente som, fruto das minhas piruetas, executadas com maestria. Deus! Como eu queria ir embora!
Por um momento tudo pareceu distante. Já não era eu que ali estava. Meus pensamentos cavalgavam no cérebro desconexos, enquanto o corpo, vazio de emoções, executava o mecânico bailar. Vieram à minha mente as figuras de mamãe e Natália. “Traidoras”, rosnei. O desejo de chorar apoderou-se de mim, contudo, finou-se, sendo substituído por uma poderosa sensação de alívio ao perceber que a apresentação terminara.
Foi então que algo surpreendente aconteceu, moldando para sempre os rumos da minha existência.
Aplausos pipocaram de várias partes do auditório. Longe de serem polidos, levavam consigo a marca do entusiasmo verdadeiro. A plateia havia amado nossa apresentação. Agradecemos com o conhecido aceno que os artistas fazem ao final do espetáculo, mãos dadas, reverência conjunta. A cortina cerrou-se e o público continuou sua manifestação de agrado. Surpreso, eu e meus colegas presenciamos as cortinas serem reabertas e os espectadores levantando-se para aplaudirem de pé! Sugiram os primeiros pedidos de “bis”, que pouco a pouco cambiaram para o desejo quase unânime da plateia. Os acordes de “O Palhacinho Dengoso” foram novamente executados e, quando dei por mim, já estávamos em plena encenação do nosso número sob palmas frenéticas. E eu estava adorando tudo aquilo!
Décadas consumidas por estas lembranças de infância, sentado diante do espelho do meu camarim, chego a rir refletindo sobre as ironias da vida. Não fosse o Palhacinho Dengoso, meu début nos palcos, eu hoje não seria o aclamado cantor lírico Marcos Marcolini, tenor brasileiro de sucesso na Europa. O sobrenome artístico eu tomei emprestado do espírito que mamãe consultara. Em idas posteriores ao centro de umbanda, o próprio Doutor Marcolini revelara ter sido eu um cantor de operetas, seu contemporâneo em Veneza. Afirmava ele que estivéramos juntos “na experiência da carne”. Segundo o médico do outro mundo, eu voltara com o encargo de brilhar através da arte, incumbência que fracassara na vida anterior. Já Marcolini se viu obrigado a dar consultas por séculos até o resgate de suas dívidas contraídas em outras existências. Ainda que duvidasse das crendices cultivadas por mamãe, não desmerecia a boa vontade do médium pelo qual o doutor renascentista se manifestava e considerei justo homenageá-lo usando seu nome.
Apenas um detalhe intrigava os amantes da ópera e a crítica especializada: por que o grande Marcos Marcolini nunca havia interpretado Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo? Diante da dúvida, eu sorria sempre que tal questão brotava em alguma entrevista e, brincando, dizia não estar à altura de representar o personagem imortalizado pelo mito Enrico Caruso para, em seguida, invariavelmente brindar o meu interlocutor com um tostão da famosa ária: “No! Pagliaccio non son, se il viso è pallido, è di vergogna…”
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