Arnaldo chegava sempre cedo à faculdade devido ao horário do ônibus. Calouro em seu curso, além de uma pessoa tímida, Arnaldo se habituara a sentar em um banco que dava de frente para um matagal, dentro do próprio campus, para dar ‘aquele tempinho’ antes de sua aula iniciar. Por mais de uma vez, Arnaldo percebera um senhor próximo a ele, fumando calmamente um cigarro, com um semblante de tranquilidade. Arnaldo reparou também que este senhor sempre tinha o maior cuidado em apagar o cigarro e em colocar sua bituca numa pequena caixinha de fósforos. Mesmo parecendo uma pessoa extremamente afável, Arnaldo era muito reservado para puxar uma conversa, além de detestar o cheiro de cigarro.
Com o passar dos dias, Arnaldo foi gostando mais e mais de sentar naquele banquinho. Havia alguns universitários andando por ali, mas ninguém de sua turma. E, volta e meia, aquele senhor estava ali, mantendo o seu ritual tabagista. Arnaldo já havia pensado “Que vício maldito. Ainda bem que não gosto desta porcaria!”. Até que um dia, ao passar por Arnaldo, o senhor disse:
- Boa tarde, meu jovem. Tudo bem com você?
Arnaldo sentiu pelo calor que suas bochechas tinham avermelhado, mas respondeu brevemente:
- Sim, sim.
- Então, não pude deixar de reparar que você faz Administração de Empresas aqui na faculdade. É um curso prestigiado aqui, garoto.
- Sim. Fui o terceiro no vestibular em minha sala.
- Meus parabéns. Qual o seu nome, a propósito?
- Arnaldo, senhor.
- Deixa disso, não me chama de senhor não. Não tem necessidade disso.
- Como posso chama-lo?
- Caio, apenas Caio.
Após o primeiro encontro, a conversa entre os dois começou a fluir. Quase como um ritual, Arnaldo chegava meia hora antes de sua aula e encontrava o seu Caio lá, no mesmo lugar de sempre. Uma das primeiras perguntas feitas por Arnaldo foi esta:
- Seu Caio, por que o senhor sempre vem fumar aqui?
- Bem Arnaldo, venho até aqui pelo espaço verde que está a nossa frente. Venho também, pois, este é o único cigarro que fumo ao longo do dia. Como não gosto de deixar cheiro de nicotina em meu apartamento – e minha senhora, que não fuma, gosta menos ainda – venho até aqui para estar perto do verde, e para ver os jovens chegando neste ambiente universitário.
- Mas... hum...
- O quê? Pode perguntar, sem problemas...
- Já que o senhor só fuma um cigarro por dia, por que não para logo?
- Ótima pergunta, Arnaldo... Bem, já fui um fumante compulsivo por muitos anos, daqueles de fumar um maço e meio por dia. Claro que passei a ter problemas de saúde devido ao vício, e tive que parar.
- E o senhor voltou, então?
- Sim. Mas veja bem. Hoje, consigo ficar sem fumar. Nos finais de semana ou em minhas viagens, por exemplo, nunca fumo. Quando estou aqui na cidade, faço isso como um ritual. Mas faço de cabeça leve, sem me preocupar. Apenas pelo “prazer” em fumar. Acho muito prazeroso, quando se está de bem com a vida, fumar um cigarro para meditar. Fui criado vendo filmes clássicos dos anos 40, com Humphrey Bogart sempre carregando um cigarro no canto de sua boca. E as atrizes, todas elas belas, fumavam também. Hoje está provado por A mais B que o cigarro é muito maléfico à saúde. Como o álcool, as drogas, o sal e o açúcar também são. Não uso droga nenhuma, mas de vez em quando bebo um pouco. Também como sal, com bastante moderação, e gosto de doces, apesar de evita-los ao máximo. Procedo mais ou menos assim com o cigarro.
- Hum... – Arnaldo se despediu de Caio, e refletiu no que seu novo amigo lhe disse. Mesmo tendo uma opinião totalmente contrária ao tabagismo, Arnaldo entendeu o ponto de vista de Caio, e passou a compreender o porquê de ele fumar.
Com o passar dos dias, os bate-papos foram ficando cada vez melhores, e Arnaldo também começou a se abrir mais para Caio e também a perguntar a opinião deste senhor, que parecia saber muito sobre a vida. Com pouca experiência prática na vida, e deparando-se com a correria cotidiana moderna, Arnaldo pensava para si um futuro um pouco melhor que o de seu pai e de sua mãe – ambos trabalhadores dedicados, honestos, mas que pouco fizeram ou conheceram da vida, pois do tanto de dinheiro que acumularam, investiram nele, Arnaldo. Seria isto mesmo que Arnaldo queria da vida?
- Seu Caio, sei lá... Às vezes penso em fazer diferente... Ir para fora do Brasil, viajar por outros países... Mas me parece um sonho distante... Muito aventureiro, sei lá. Não sei se tenho esse perfil...
- Arnaldo, você é bem novo, não? Quantos anos você tem, dezessete, dezoito?
- Fiz dezoito no mês passado.
- Sim... Vejamos. Você pode votar desde os dezesseis. Pode dirigir também; e já está na Faculdade, sinal de que escolheu o seu curso, certo?
- Sim. Tinha dúvidas entre Administração e Ciências da Computação até me decidir.
- Pois, todas estas coisas que você já pode fazer dependem de sua decisão – só o tempo dirá se estas decisões foram certas ou erradas. Para algumas coisas, temos de decidir muito jovens como, por exemplo, escolher o futuro profissional. Muitos ainda não têm certeza do que querem fazer da vida. Quanto a votar, a definição de maioridade não passa de puro oportunismo dos governantes deste país; já dirigir, esta me parece a decisão mais acertada de todas, apesar de que o jovem deve ter muita prudência ao assumir o volante, uma vez que sua vida e a de outros está em jogo. A propósito, não tenho um carro há mais de quinze anos...
Neste momento, um pensamento ligeiro passou pela cabeça de Arnaldo: seria seu Caio um senhor de limitados recursos, talvez apenas sobrevivendo com uma ninharia de aposentadoria do INSS? Mas ele andava bem trajado, tinha classe ao falar...
-... Não que eu não goste de automóveis – completou Caio - Acho-os, na verdade, cada vez mais lindos e modernos.
- O senhor não tem mais condições de dirigir?
- Aparentemente, tenho totais condições. É uma opção de vida mesmo.
- De vida? – Arnaldo parecia não entender, pois ele, agora que dependia de ônibus para ir para cima e para baixo, queria muito ter um carro.
- Sim, de vida, Arnaldo. Isso tem muito a ver com “tomada de decisões” na vida. Meu caso foi que, ao me aposentar, após trinta e poucos anos de trabalho, passei a dar valor a outras coisas da vida; como viajar, por exemplo.
- O senhor já viajou muito?
- Mês que vem estaremos, eu e minha senhora, conhecendo nosso sexagésimo país.
- Puxa... – Arnaldo ficara boquiaberto.
- Como eu ia lhe dizendo, perto da aposentadoria tive alguns problemas de saúde que me ajudaram a refletir na vida que eu levava. Não era, nunca foi uma vida ruim, mas eu apenas a levava: do trabalho para a casa, de casa para o trabalho. Sustentei e dei estudo para três filhos, melhorava a nossa casa aos poucos, a cada três ou quatro anos saía da concessionária com um carro zero... mas não aproveitava a vida. Como neste momento, agora: vendo a natureza, respirando, meditando. Fazendo novos amigos para bater um papo. Não. Eu apenas me dedicava ao trabalho e ao conforto de meus familiares, pois me considerava o provedor, aquela coisa já ultrapassada de que o homem tem de prover os recursos para sua família, etc...
- Sua esposa nunca trabalhou?
- Por minha insistência, não. Que cabeça a minha... Isto quase acabou com a nossa relação, tempos atrás.
- Me desculpe... – disse Arnaldo um tanto constrangido.
- Que é isso, não se desculpe não. Isto serviu para eu mudar de opinião, e hoje levamos uma vida maravilhosa. Ela, a propósito, dá aulas de piano em nosso apartamento todas as tardes, e é muito feliz com isso.
- E os sessenta países?
- Ah, despertei sua curiosidade então, Arnaldo... Bom, isso é bom. Para você que pensa em sair mundão afora, a único conselho que lhe dou é: ouça o seu coração, em primeiro lugar. Veja bem, estou lhe dando este conselho antes mesmo de te dizer das maravilhas que cada viagem me proporcionou, das inúmeras pessoas diferentes que conheci, que conversei, que fiz amizade. Por quê? Pois, especialmente quando se é novo, a gente dá muita importância para o que os outros nos dizem. Geralmente, crescemos condicionados pelos modelos de pensamento que nossos pais, ou que pessoas ao nosso redor nos dão. Comigo foi assim, com minha esposa também... Meus filhos tinham princípios iguaizinhos aos meus e de minha companheira... Mas você precisa, num momento como este, estando junto da natureza, podendo ouvir o som dos pássaros, escutando a água de um riacho correr por entre as pedras, neste momento em que a buzina dos carros e ônibus não desviam a sua atenção, nem as mensagens em seu smartphone te chamam o tempo todo – é nesta hora que você deve tentar ouvir a voz do seu coração. Aí você tem de ser você mesmo Arnaldo, quem você é, e pensar no que você gosta, na sua própria vida e se perguntar: que vida eu quero para mim? O que eu gosto de fazer? O que eu realmente gosto de fazer?
- Entendo...- Arnaldo ouvia Caio de olhos bem abertos.
- Foi me questionando que decidi por viajar, no mínimo, quatro vezes por ano. Sabe que só fui refletir e meditar sobre isso dentro de um quarto de hospital, quando sofri um princípio de enfarte alguns anos atrás. Ainda bem que não era a minha hora, pois se fosse, não teria tido esta chance de começar a conhecer este mundo maravilhoso em que vivemos.
- Uau... Me conte mais... Sobre os países que você foi, ou, sei lá, qual deles você mais gostou... – Arnaldo estava nitidamente impressionado.
- Antes de nossa próxima viagem, vou lhe mostrar minhas caixas de sapato.
- Como assim? – nessa Arnaldo boiou.
- Não vou lhe vender sapatos, não se preocupe não. É que costumamos guardar nossas fotos em caixas de sapatos antigas; prefiro falar e lhe mostrar as fotos de onde estive, para lhe dar ideias de onde poderá, quem sabe, ir também.
- Mas como você vai trazer estas caixas para o campus?
- Não vou. Você é meu convidado para ir até a minha casa, tomar um bom café passado por minha senhora, dona Matilde, e ver minhas fotos. Isto é, claro, se você puder e se quiser, meu jovem.
Arnaldo aceitou o convite de bate-pronto. Então eles marcaram uma data, que seria já na próxima semana, haja vista que Caio e sua esposa Matilde iriam conhecer o deserto da Namíbia, na África, em questão de duas semanas. Arnaldo se sentia motivado de uma maneira diferente, sentindo ao mesmo tempo um friozinho na barriga, mas uma sensação boa, de paz e tranquilidade que o fazia, por momentos, esquecer da pressão do dia-a-dia, do novo trabalho como estagiário, de pegar o busão lotado todo santo dia, dos trabalhos maçantes de faculdade. Repentinamente, parecia que a sua vida tinha outro valor quando ele aplicava estes pensamentos (ou seriam ensinamentos?) a ela. Até onde isto iria, Arnaldo ainda não sabia. Talvez naquelas velhas caixas de sapato, daquele velho senhor que gostava de fumar um cigarrinho ao fim da tarde, estivesse o começo de uma vida nova para Arnaldo, repleta de emoções, aventuras e descobertas por vir...
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