O cético
Cansado
e com fome, Rafael acordou, ouvindo passadas, abriu os olhos e com a
vista ainda embaçada, viu a senhora manca e cega de um olho que, tarde
da noite, entrava naquela encruzilhada com uma sacola preta nas mãos.
“Talvez agora ela me dê ouvidos!” pensou ele que, sem perder tempo, se
levantou e foi tentar se desculpar por mais uma vez:
–
Sinto muito pelo meu atrevimento! Eu estou, profundamente, arrependido!
Retire a maldição e deixe-me ir embora, por favor... – pedia em tom de
desespero, contudo, a sombria mulher parecia não poder ouvi-lo e, como
fazia das outras vezes, abriu a sacola que trazia consigo e iniciou a
fazer uma oferenda destinada ao mundo espiritual.
Assistindo a tudo, Rafael continuava a implorar por perdão até que, cansado de ser ignorado, perdeu a paciência:
–
Velha maldita! – Por que nunca me responde?! – gritou, com ódio,
enquanto a mulher, de fisionomia marcada pelo tempo, acendia velas e
colocava algumas frutas no interior de uma alguidar.
Novamente
não houve nenhuma resposta e tomado pela fúria, Rafael tentou, por
diversas vezes, agredi-la, com socos e ponta pés, contudo, seus golpes
atravessavam o corpo frágil daquela senhora como se ela não estivesse
ali. Sem conseguir compreender aquele estranho fenômeno o rapaz
continuou a desferir golpes e mais golpes, num esforço inútil, até
sentir suas forças se esvaírem por completo.
Em
meio a um choro sofrido, desabou sobre a calçada ouvindo a reza final
daquela mulher que, em seguida, foi embora sem sequer olhar para ele.
“Velha cruel!” pensou enquanto observava a senhora manca dobrando a
esquina no final da rua.
Naquele
momento sua raiva só não era maior que a fome, fato que o fez se
arrastar até a oferenda, junto ao poste, onde vultos negros já
disputavam espaço para sugar a energia etérica daqueles alimentos que
estavam ali contidos. (Frango, frutas e bebida alcoólica... para alguém
que já não comia há dias, aquilo era um verdadeiro banquete) Rafael
juntou-se às entidades e, sem saber ao certo como fazia aquilo, iniciou a
tragar a essência daquela oferenda enquanto pensava na ironia que
estava vivendo. Justo ele que, desde os 12 anos de idade, chutava as
macumbas que encontrava pelas encruzilhadas do bairro, agora necessita
delas para saciar a fome.
Quando
finalmente se sentiu, ligeiramente, melhor, Rafael se afastou das
demais entidades, indo até o muro de uma casa, aparentemente, abandonada
onde se recostou. A mente, demasiadamente, perturbada não lhe permitia
mensurar a quanto tempo estava aprisionado naquela encruzilhada. Tudo o
que conseguia se lembrar era como aquele pesadelo havia começado...
*********
Sabe
aquele tipo de pessoa que não acredita, em hipótese alguma, na
existência de fenômenos metafísicos, religiosos e dogmas? Pois é...
assim era Rafael Lopes. Um jovem de 26 anos que não perdia uma boa
oportunidade de zombar da crença alheia. Apesar da pouca idade, seus
casos de descaso já eram muitos, pois, desde menino, nunca tratou com
seriedade algo que não fosse passível de ser explicado pela ciência.
Sua
história de zombaria teve início aos 10 anos de idade, quando passou a
frequentar uma igreja, próxima ao condomínio onde morava, só para ter o
prazer de divertir os amigos, debochando dos dizeres do velho padre que
realizava as missas dominicais. Aos 12, como se aquilo já não lhe
bastasse, passou a chutar as oferendas postas nas encruzilhadas do
bairro e a dar, boas risadas, diante dos gritos de evangélicos, que
ecoavam do interior das igrejas protestantes, como se o Deus, todo
poderoso, deles sofresse de algum tipo de deficiência auditiva. Ainda na
adolescência, passou a ridicularizar todo e qualquer tipo de dogma ou
ritual religioso com o qual se deparava. Para ele as religiões não
passavam de uma grande perda de tempo. Todavia, existem forças com as
quais não devemos brincar e Rafael acabou aprendendo isso de uma maneira
nada agradável.
A
estória, aqui exposta, ocorrida num bairro carioca da zona oeste do
estado do Rio de Janeiro, versa sobre um sinistro caso divulgado com o
único propósito de alertar que, de uma forma ou de outra, todos estamos
sujeitos a responder por nossas ações.
*********
8 de novembro de 1996
Era
madrugada quando Rafael e Rogério, embriagados, voltavam de mais uma
noitada de curtição. Conversavam, animadamente, atravessando uma
encruzilhada, já bem próxima de onde moravam, quando viram uma senhora
manca e caolha parar em frente a um poste e abrir uma sacola preta de
onde tirou velas, bebida, alimentos e duas alguidares.
– Para de sujar a rua e vai pra casa dormir vovó! – gritou Rafael, arrancando risadas de Rogério.
A
senhora virou o rosto na direção dos dois ébrios rapazes que,
cambaleando, passavam do outro lado da calçada, mas nada disse.
Voltou-se novamente para a oferenda e continuou seu ritual. No entanto,
Rafael não parou por aí. Ao ver uma garrafa de 51 que a senhora
colocava, cuidadosamente, sobre o chão, resolveu atravessar a rua e dar
continuidade ao seu desrespeito. Ele não desconfiava que, desta vez, sua
zombaria não iria passar impune.
– Com licença! – disse Rafael apanhando a garrafa de cachaça para si.
– Devolva isso, rapaz!
Rafael ignorou a ordem e carregando a garrafa consigo, atravessou a rua novamente, como se nada tivesse acontecido.
–
Miserável! – urrou a senhora apontando o indicador de sua mão velha e
enrugada na direção do atrevido rapaz. – Que aquele que tem o poder de
fechar e abrir os caminhos para o ser humano aja sobre sua vida
trancando-a permanentemente!
Ao
ouvir aquelas palavras, Rafael, imediatamente, voltou para chutar tudo
àquilo que a senhora havia, cuidadosamente, colocado junto da calçada.
–
Estou pouco me lixando para suas maldições, sem fundamento, velha
bitolada! – Olha o que eu faço com toda essa porcaria! – retrucou ele
desferindo um forte ponta pé numa alguidar que continha frutas em seu
interior.
Percebendo
que seu amigo havia passado dos limites, Rogério aproximou-se para
tirá-lo de lá e os dois saíram andando para longe da estranha senhora
que continuava a fitá-los.
– Vai se arrepender por isso! – disse à mulher com ódio contido em sua voz.
Sem
imaginar que a partir daquele momento, seus dias de zombaria estavam
contados, Rafael regressou para casa e, uma semana depois, já nem
lembrava mais deste ocorrido.
15 de novembro de 1996
A
noite havia apenas começado quando Rafael desceu do elevador, deixando,
pelo ar, um delicioso rastro de seu mais novo Pacco Rabanne. Bem
vestido, o jovem rapaz cumprimentou, educadamente, o porteiro do prédio e
então ganhou as ruas, indo em direção ao barzinho, onde havia combinado
de se encontrar com alguns colegas da faculdade. Como o local era
próximo de sua casa, não levou mais que 20 minutos para chegar ao
estabelecimento e, do outro lado da rua, já era possível ver como o bar,
famoso pela boa música e ambiente agradável, estava lotado. Garçons
andavam, de um lado para o outro, com suas bandejas repletas de
caldeiretas de chopp enquanto um músico, de belíssima voz, embalava os
casais apaixonados, ao som de Lembra de mim de Ivan Lins.
– Rafael! – gritou uma voz, assim que o rapaz adentrou no bar. Era Rogério, que acenava de uma mesa mais ao fundo.
– Olá pessoal! – cumprimentou o recém-chegado, aproximando-se do grupo que, animadamente, bebia e jogava conversa fora.
– Cara, você não morre tão cedo! Eu estava falando, ainda agora, da maldição que te rogaram!
– Maldição?! – Que maldição, Rogério? – perguntou, se sentando junto à mesa.
– Não vai me dizer que já se esqueceu daquela velha, manca e caolha, que você roubou na encruzilhada!
–
Ah ta...! – disse Rafael que precisou de um breve instante para se
lembrar do episódio. – Aquilo é bobagem! E eu não roubei coisa nenhuma.
Só peguei o que ela iria desperdiçar. – Onde já se viu? – Colocar uma
garrafa de 51, ainda fechada, numa droga de despacho.
Todos riram, exceto, Vinícius, um colega de turma que parecia bem preocupado.
–
Olha eu não sei não cara... tenho uma tia que meche com essas coisas e
pelo que o Rogério nos contou, acho melhor você procurar um pai de santo
para tentar te ajudar!
Rafael sorriu com escárnio.
–
Desculpa Vinícius, mas se sua tia “meche com essas coisas” então ela
esta perdendo tempo à toa. Isso tudo é crendice e não passa de uma
grande besteira. Não vai acontecer nada comigo!
Disposto
a convencê-lo do contrario, Vinícius apanhou um livro de umbanda, que
trazia em sua mochila, e abriu na página onde havia uma imagem da
entidade que a velha tinha se referido na maldição que lançara, mas de
nada adiantou. O ceticismo jamais permitiria que aquele jovem
acreditasse na possibilidade de haver realmente sido amaldiçoado. O
grupo então entrou em outros assuntos e, sem que se dessem conta disso,
as horas foram se passando. Rafael levou um baita susto quando olhou no
relógio e viu que já eram 2:00h da manhã. Estava muito tarde para alguém
que iria trabalhar no dia seguinte. Precisava ir embora e, contrariando
os pedidos para que ficasse um pouco mais, despediu-se de todos com a
promessa de repetir a dose na sexta-feira da semana seguinte.
–
Cuidado com a maldição, hein! – ainda brincou Rogério vendo o amigo
deixar o estabelecimento. Aquela foi à última vez que Rafael foi visto
com vida.
Do
lado de fora, o rapaz, que só pensava em chegar a casa e desabar sobre a
cama, aguardava por um taxi, mas, após 15 minutos de espera, acabou
desistindo e resolveu ir a pé mesmo. Fazia uma madrugada fria e mesmo
com a blusa de manga longa que vestia, Rafael precisava esfregar os
braços para afugentar a temperatura amena. O vento gelado soprava pelas
ruas vazias enquanto ele avançava ouvindo o som do bar ficar cada vez
mais distante. Quando atingiu a encruzilhada onde, na semana anterior,
havia se deparado com a esquisita senhora manca que Rogério mencionara,
não pôde deixar de se lembrar da conversa que tivera no barzinho. “Como
uns marmanjos daqueles podem acreditar em maldição?” pensava ele,
ligeiramente tonto, devido à grande quantidade de bebida alcoólica que
havia ingerido.
– Rafael! – bradou uma sombria voz vinda de trás.
Levando
um susto, o rapaz virou-se, rapidamente, quase perdendo o equilíbrio,
mas não viu ninguém. Estava sozinho naquela rua deserta. Acreditando ter
imaginado coisa ele decidiu prosseguir, mas antes que desse um novo
passo, tornou a ouvir a mesma voz:
– Rafael!
Um
calafrio percorreu-lhe a espinha diante a reincidência que lhe dava a
certeza de não estar imaginando coisas. Virando-se, lentamente, Rafael
empalideceu ao constatar que não estava tão só quanto acreditava. Seus
olhos fitaram um sujeito, exatamente igual à imagem que Vinícius tinha
lhe mostrado no bar. Um homem de porte, extremamente, fino e poderoso
que usava cartola sofisticada e também uma capa azul turquesa com
contraste em vermelho, decorada com safiras amarelas. “Tranca ruas!”
lembrou o nome da figura do livro ao mesmo tempo em que disparou a
correr. O rapaz que até então jamais havia acreditado naquele tipo de
coisa tentou escapar do destino que havia traçado para si, no entanto,
numa velocidade sobrenatural, a entidade anulou a distância entre os
dois e o agarrou pelas costas. Rafael gritou, desesperadamente, pedindo
por ajuda, mas ninguém ouviu seus gritos apavorados.
–
Chegou a hora de pagar por suas travessuras, espírito desvirtuado! –
sussurrou a entidade, ao pé do ouvido do rapaz, soltando uma gargalhada
malévola.
Após
essas palavras a entidade desapareceu e Rafael sentiu como se o seu
corpo houvesse desabado, no entanto, viu-se ainda de pé. Estava tão
atemorizado e preocupado em sair dali que não se deu conta de que seu
corpo físico de fato havia tombado, sem vida, sobre o asfalto frio e que
agora era somente seu espírito que, desesperadamente, tentava e,
continua tentando, escapar daquele cruzamento.
Como
foi dito anteriormente, todos estamos sujeitos a responder por nossas
ações. No dia 16 de novembro do ano de 1996, Rafael Lopes foi
encontrado, morto, numa encruzilhada do bairro onde morava e sua causa
mortis permanece desconhecida.
Atualmente,
os despojos mortais de Rafael estão enterrados no cemitério, Jardim da
Saudade, em Sulacap... quanto ao seu espírito... bom, até os dias de
hoje, ainda ouve-se relatos de pessoas que dizem escutar pedidos de
socorro ao passarem pela escura encruzilhada, de Jacarepaguá, onde tudo
aconteceu.
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2 comentários:
Querido não acompanho seu blog, mas será um prazer te seguir! Gostaria de saber do que trata seus textos, são de um livro, uma continuação... me explica melhor.
Uma linda e abençoada quarta-feira!
Beijinhos.
Lorena Viana
Olá Lorena!
É gratificante saber que se interessou pelo meu texto. Quanto as suas perguntas, informo que eles não fazem parte de livro e nem são continuação. Os contos apresentados em meu blog podem ser lidos e compreendidos isoladamente. Comecei a criar contos com o intuito de divulgar o meu trabalho ( O que, graças a Deus, vem dando certo. rs) Meu primeiro livro - A Lenda de Argaios - será lançado em breve e todas as informações referentes a isso serão apresentadas em meu blog.
Grande abraço e uma ótima quarta para você também.
Thiago Tavares.
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