Sebastião era como muitos brasileiros país afora. De origem muito humilde, teve de trabalhar muito cedo para ajudar no sustento da família. Com onze irmãos (que poderiam ser catorze, caso três deles não tivessem falecido prematuramente), Sebastião já havia trabalhado mais na adolescência do que muitos outros numa vida inteira.
Mas Bastião, como era carinhosamente chamado por todos que o conheciam, não carregava nenhuma mágoa de sua vida sofrida; pelo contrário, estampava sempre um semblante alegre, com um belo sorriso em seu rosto já enrugado, na sua pele curtida pelo sol forte do dia a dia.
Bastião havia construído sua família. Seis filhos, todos adultos e vivendo suas próprias vidas. Bastião também contabilizava 18 netos; apesar de ele nunca saber ao certo se eram dezoito, ou dezessete, ou dezenove, Bastião nutria um carinho imenso por todos eles, mesmo que alguns estivessem morando longe do avô. “É um Brasilzão muito grande, e meus filhos correm atrás do trabalho onde ele está” dizia Bastião que, a propósito, nunca havia saído do próprio estado onde nasceu.
Mas Bastião via seu país, ou uma parte dele, pela tela da TV. Como a recepção de sinal só permitia que Bastião assistisse a um canal com nitidez, era este um mesmo que ele assistia. Bastião gostava de se deitar após mais um árduo dia de trabalho e de ver TV ao lado de sua velha companheira, dona Zezinha, que passava os dias em casa costurando para as vizinhas da comunidade onde moravam, no intuito de ajudar no apertado orçamento familiar.
Dona Zezinha chegou a frequentar a escola por um tempinho quando criança, o que a fez aprender, mesmo que com certa dificuldade, a ler; já Bastião permaneceu analfabeto até os 40 anos de idade, quando uma de suas filhas, Zulmira, teve a paciência para ensinar o pai a ler.
Bastião pegava exemplares de jornais que seus patrões assinavam e lia somente as manchetes. “Não leio letra miúda. Não consigo” dizia Bastião, que apesar do gritante problema de visão, nunca havia consultado um especialista. Fato era que pouco dinheiro sobrava para Bastião procurar um oftalmologista; seus modestos vencimentos eram inferiores a um salário mínimo.
Por isso mesmo Bastião recebia donativos com imensa alegria, desde restos de comida até roupas usadas. Cada peça de roupa recebida, dona Zezinha costurava e adaptava para o marido usar. Bastião sequer lembrava quando havia comprado uma roupa nova pela última vez. “Acho que faz uns trinta, quarenta anos” calculava ele.
Bastião também nunca havia dirigido qualquer tipo de veículo automotor. Seu meio de transporte era a sua velha e enferrujada bicicleta, que segundo ele “nunca me deu pobrema”. Bastião pedalava pelo caótico trânsito da cidade sem se importar com os outros; ia e vinha assoviando melodias das músicas mais conhecidas de Luiz Gonzaga, sorrindo e pensando na vida.
Bastião também gostava de ano de eleição, por dois motivos: primeiro, sempre um político visitava sua comunidade e trazia cestas básicas ou até alimentos mais refinados para as famílias, apenas em troca de votos; e segundo, porque Bastião realmente se sentia importante ao poder ajudar na escolha dos governantes. A única coisa que Bastião lamentava é que os candidatos só iam uma vez a cada quatro anos até a comunidade. Ele achava pouco, mas pensava “eles tem muito que fazer lá em Brasília. Esse negócio de lei é complicado”.
Mas Bastião já não era mais um moleque. Sentia dores fortes nas costas, nos braços, no peito. Aguentava o dor calado, sem reclamar, sem faltar ao trabalho diário. Dona Zezinha percebeu que o marido estava fraquejando e insistiu para que este fosse ao SUS para ver o que acontecia. Bastião foi. E agendou uma consulta para seis meses daquela data. Certo dia, Bastião sentiu-se muito tonto, e pela primeira vez na vida, deixou o trabalho para ir ao posto de saúde. Teve forças para pedalar até a unidade mais próxima e, chegando lá, sentou numa poltrona para aguardar a sua vez de ser chamado. Isso não era nem dez horas da manhã. Quando o ponteiro do relógio anunciou quatro horas da tarde, a enfermeira de plantão gritou “Sebastião! Se-bas-ti-ão!”.
Aí uma senhora percebeu um senhor dormindo, com a cabeça abaixada, na poltrona ao seu lado. Cutucou o braço dele e perguntou “O senhor é o Sebastião?”. Não obteve resposta. A enfermeira se aproximou, pegou no pulso do homem e não viu batimento algum. Tarde demais. As pessoas ao redor se assustaram. Houve um princípio de tumulto, com algumas pessoas chamando o SUS e seu staff de “assassinos”, “carniceiros”.
Aos 65 anos de idade, Bastião morreu sentado na fila de atendimento. Seu semblante era de alegria, apesar da imensa dor que ele vinha sentindo. Sem saber que doença tinha, mas certo de que havia cumprido a sua missão na terra da melhor maneira que pode – dentro das condições que a sua família e, em especial, que o seu país havia lhe proporcionado.
4 comentários:
Nada de especial na ideia central do texto, mas bem escrito.
Legal, bom texto.
Discordo do comentário acima, uma vez que seu texto sensibilizou-me, quando me entristeceu a trajetória de vida do Bastião e, ao mesmo tempo, em que me emocionou este "brasileiro" que lutou digna e bravamente... Ótimo seu texto, André, bem escrito, detalha e descreve a vida do povão que, na sua maioria, nasce, vive e morre no anonimato, na miséria degradante e ignorância... Parabéns!
Depois que escrevi o comentário pensei um pouquinho sobre como isso seria interpretado.
O que quis dizer é que o tema é recorrente.
Não me sensibilizou, mas nem por isso achei um mau texto, dentro da proposta ele é muito bem elaborado.
E acho que o autor sabe disso e que também viu seu objetivo cumprido.
Infelizmente, existem muitos "Bastiões" nesse Brasil afora...
O texto resume a triste realidade vivida por uma grande parte de brasileiros que vivem às cegas, sem conhecer seus direitos e fazer uso deles, por conta de um governo insensível...
Governo esse que mascara a pobreza com bolsas-família, fazendo acreditar que isto já é o suficiente para famílias tão sofridas. Devo dizer que, por experiência própria, durante minha atuação como assistente social, conheci vários "bastiões e Zezinhas" que não tinham acesso à moradia, escola, alimentação e saúde, mas se contentavam com o Bolsa Família, pois o governo é "bom" e "pensa no povo" (palavras deles)...
Ora, o que falta a essa gente é a GARANTIA desses direitos! Se tiverem acesso aos direitos básicos (moradia, escola, alimentação e saúde), muito provavelmente, "Bastiões" não morreriam em fila de SUS...
É o meu pensamento.
Parabéns pelo texto!
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