Chegada a hora do acerto de contas, ele pergunta para um dos capatazes se ainda pode fazer um último pedido.
- Tá doido? Que merda é essa de ultimo pedido?
- É só uma ligação... Nessa hora riram absurdamente na cara dele.
- É óbvio que não vou dizer nada, se disser, vocês tomam o celular ou me matam mesmo. De qualquer maneira uma hora alguém vai desconfiar.
Falou tudo isso com tamanha seriedade e frieza que de certa maneira conseguiu atingir os assassinos.
Bruno que já quase morrera uma vez e também sofreu várias outras situações quase tão graves como esta, olhava para Miguel sem conseguir acreditar que ele estava pedindo uma coisa daquelas. A expressão de Bruno transparecia com clareza o quão estava perplexo perante esta atitude de Miguel, os assassinos também observaram isso, o que contribuiu ainda mais para que pensassem no caso.
- Porra! De toda sujeirada que eu já fiz na vida, nunca tinha passado por uma dessa. Disse um deles.
- Vai, deixa o cara então fazer essa merda de ligação, depois a gente passa os dois.
Miguel pegou o celular e sua mão tremia. Uma lista de pessoas começou a surgir na sua cabeça: pensou em Juliana, havia terminado com ela não tinha nem dois meses, sentia ainda algo muito forte por ela, mas mesmo assim não foi o suficiente para que ligasse. Pensou em João Paulo um grande amigo seu e que ele já não via há um bom tempo, mas foi uma das pessoas que mudou sua vida: fora ele que apresentou a literatura de verdade pra Miguel o que influenciou bastante a seguir sua carreira de escritor. Pensou também em Yasmin, ainda mantinha um contato com ela, mas bem esporádico. Assim como João Paulo ela mudou os rumos da vida de Miguel, mas de uma maneira diferente. Na verdade ela salvou a vida de Miguel algumas vezes, quando ele esteve mais próximo do precipício, incrivelmente ela sempre estava lá para puxá-lo de volta. Lembrou-se de Romero um amigo seu, homem de extrema sobriedade com quem Miguel trocava correspondências frequentemente, não só sobre sua carreira literária, mas também sobre sua militância política, sobre a paixão de ambos pela música, sobre diversas questões, o assunto entre eles corria fácil. Fred que hoje em dia vagava pelas ruas de São Paulo com seu trompete mágico, encantando as pessoas nos bares por onde passava.
A quantidade de pessoas nessa lista deixou-o confuso. Afinal, pra quem ligar? Se continuasse divagando muito em seus pensamentos os assassinos logo perderiam a paciência e não teria ligação nenhuma. Algo então invadiu subitamente a cabeça de Miguel, um sentimento perdido, na verdade, que há muito tempo estava adormecido e que naquele momento renasceu com uma força inacreditável. A imagem de Bianca veio nítida e clara na sua cabeça. Era a última imagem que ele guardara dela, afinal, já tinha um bom tempo que não a via. Sua pele clara e rosada, o seu grande e contagiante sorriso ornado por lábios de um vermelho bem vivo. Os seus olhos verdes muito brilhantes. E os seus cabelos, era o que mais agradava. Eles eram compridos, o que deixava os cachos loiros bem destacados que caíam sobre os ombros em grande volume.
Seus olhos umedeceram-se. Não teve mais dúvidas. Colocou sobre o seu número e apertou para que a ligação chamasse. Torcia desesperadamente para que ainda fosse o mesmo número, o que era bem improvável, já deveria ter passado uns dez anos da última vez que conseguiu falar naquele número. Ao menos o celular chamou, isso já era um bom sinal, tocou uma primeira vez, uma segunda, uma terceira. À medida que o celular ia tocando Miguel ia ficando mais nervoso, mesmo que ainda fosse o mesmo número, depois de tanto tempo quando ela olhasse que era ele, acharia um absurdo atender.
No sexto toque, quando Miguel já estava pra desistir ela atendeu.
- Alô? Atendeu num tom desconfiado e ao mesmo tempo curioso.
- Bianca? Sabia que era ela, mas queria ter a total certeza.
- Sim, sou eu.
- Oi, tudo bem é o Miguel. Nesse momento ficou pensando na possibilidade de que Bianca não reconhecesse a sua voz, mas ficava mais preocupado ainda em pensar como explicaria quem ele era.
Bruno olhava boquiaberto para Miguel, a maneira como estava agindo, nem parecia que os dois estavam a um passo da morte. E as preocupações de Miguel se confirmaram.
- Miguel? Que Miguel?
Decidiu tentar sair desse embaraço falando seu nome completo e falando que "era o Miguel, dos tempos da faculdade, lembra?".
- Ah! Oi Miguel. Tudo bem? O espanto dela era evidente, mas transparecia que desde o princípio sabia quem era.
Esclarecidas as coisas, parece que ficou mais difícil para Miguel responder. As lágrimas já caíam fácil dos seus olhos e o nó feito na sua garganta parecia impossível de ser desatado. Mas entre pausas e respirações profundas, tentando disfarçar o seu tom de voz, prosseguiu:
- Então Bianca, to ligando pra saber só como você tá mesmo? Tá tudo bem? O que você tem feito? Tá trabalhando no que?
Tudo isso realmente parecia muito estranho para ela. E também percebeu que a voz dele estava diferente.
- Ué, comigo tá tudo bem. Eu to com minha própria escola de inglês agora, tá dando bem certo as coisas lá. Mas tá tudo bem com você? Sei lá, depois de tanto tempo você ligando assim, to achando sua voz estranha também.
Com isso, ela o colocou em xeque. Os assassinos já olhavam impacientes para ele, apesar de só ter passado uns três minutos de conversa. Estavam preocupados e atentos no que podia falar.
Mais uma vez Miguel respirou fundo e continuou sem saber aonde queria chegar.
- Tá sim Bianca, só quero conversar um pouco mesmo. E o Augusto, como que ele tá? Augusto era um grande amigo dos dois na época de faculdade, que depois do rompimento deles, ficou bem próximo de Bianca tendo uma forte amizade com ela, não passou muito tempo para que casassem.
- Ele tá bem, tá dando aula no Rio, dae ele vem todo final de semana pra cá.
- Nossa deve ser complicado essa coisa de distância, mas o que importa é que vocês estão fazendo o que gostam. Mas eu lembro que a Silvia fazia o mesmo com o marido dela e dava super certo. Silvia foi a orientadora dos dois na faculdade.
Bianca já não sabia nem mais o que responder e tentou engatar uma pergunta padrão:
- Mas e você como está? O que tá fazendo da vida?
Nesse mesmo instante os jagunços já haviam perdido a paciência, e com um gesto de cabeça mostraram pra Miguel que queriam que ele encerrasse a ligação. Nessa hora ele percebeu que era "tudo ou nada", sentia que as palavras que iria falar daqui pra frente tinham que ser muito precisas. Deu a respiração mais profunda que pode e engoliu seco, o choro cessou e incrivelmente parecia estar calmo agora.
- Bianca, apesar de tudo, apesar de tudo mesmo, na verdade eu só te liguei pra te dizer que eu nunca deixei de te amar. Eu sei que você não deve tar entendendo nada disso e já deve estar achando ridículo, mas é muito sério isso Bianca. Nesse momento o choro voltou descontrolado ao rosto de Miguel, mas ele prosseguiu firme. Podia ouvir a respiração séria no outro lado da linha que ouvia atentamente tudo o que tinha a dizer.
- Pra mim hoje é muito claro, que era só uma questão de paciência e carinho, mas quando eu me arrependi já era tarde demais e com razão. Mas não importa Bianca, eu amo muito você e também amo o Augusto, também nunca deixei de amar ele. É muito bom ver que vocês dois justamente tiveram paciência e ainda estão juntos, tomara que tudo dê certo pra vocês, tomara mesmo, de verdade. Fica bem Bianca, eu só te peço uma coisa...
Nessa hora ela respondeu num "quê Miguel?" bem apertado, já estava chorando também, parecia que de algum modo sentia que algo estava pra acontecer.
- Tenta esquecer toda mágoa, tudo de ruim que eu fiz, tenta lembrar só das coisas boas, das nossas brincadeiras e coisas bestas que a gente falava, tenta lembrar disso por mim. O que eu mais sinto falta na verdade é da sua risada Bianca, eu lamento demais saber que eu não vou ouvir ela agora. TE AMO MUITO BIANCA, TCHAU.
E desligou o telefone sem esperar a resposta que poderia vir do outro lado. A conversa deveria ter durado no máximo uns dez minutos. Não sabia se estava aliviado ou mais tenso depois da conversa, mas naquele momento não havia espaço para tensão. Olhou a sua volta, Bruno chorava mais do que ele e ficou surpreendido ao olhar para os assassinos. Um estava chorando um pouco também e o outro com os olhos avermelhados. Justamente esse último falou:
- Ajoelha os dois!
Bruno fechou os olhos e ajoelhou, mas Miguel continuou estático fitando os dois. Isso os deixava mais nervosos ainda, depois de toda aquela conversa no telefone o mínimo que esperavam é que os dois se rendessem por completo no momento final, ficarem de joelhos representava isso.
Miguel olhou então para o céu mais uma vez, estava de um azul claro sem nuvem alguma, por isso mesmo trazia aquela sensação de imensidão e de quão pequenos os seres humanos são dentro daquela redoma. Nesse mesmo céu conseguiu ainda visualizar uma imagem: Bianca rindo, dando gargalhadas, ficando extremamente vermelha de tanto rir das cócegas que ele fazia nela. Então sorriu largamente e ouviu um estouro, provavelmente nem chegou a ouvir por completo.
publicado originalmente em: http://ilusoesliterarias.blogspot.com.br/2013/11/acerto-de-contas.html
5 comentários:
Por favor diminua a letra um pouco que o texto ficou cortado, não está dando para ler.
Abraços
Ok, farei isso
Pronto
Irei ler. Grato.
Muito bom o texto! Faz a gente refletir: "quem eu iria querer ligar se tivesse nessa situação?"...
A vida passa toda na mente!
Bom mesmo!
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