Com essa polêmica envolvendo as obras de Machado de Assis, que serão reescritas com uma linguagem mais fácil, lembrei-me de uma história onde o personagem principal vem de outro craque da literartura brasileira, Lima Barreto.
Esse conto foi premiado em um concurso promovido pela Prefeitura Municipal de Barueri (SP), em 2010.
Pela ausência de grandes e heroicos personagens literários, eis que o velho
Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, foi resgatado em carne e osso pela nossa
egrégia Academia Brasileira de Letras, saindo de seu “triste fim” para quem
sabe um novo recomeço.
Não foram divulgados detalhes sobre o episódio, mas presume-se que a ABL
tenha tido a ajuda de um certo mago para trazer o clássico personagem de volta
à baila.
Policarpo ressurgiu de manhã, já estranhando de início o que via em volta. Nada mais
natural, pois Lima Barreto o colocara na cidade do Rio de Janeiro em fins do
século 19.
Saindo com um grupo de escritores para passear pelas ruas do seu Rio, não
gostou nada do que viu.
— Bando de gente maluca! Quase nos atropelam com essas carroças de metal
e sem animais! Como os cocheiros as controlam?
Enquanto se dirigiam para um parque, lugar mais tranquilo para conversar,
explicaram-lhe sobre o desenvolvimento automotivo no decorrer das últimas
décadas.
— A cidade está mais desenvolvida, não acha?
— Eu diria mais barulhenta e desorganizada. — respondeu, já perdendo o
humor.
— Caro Policarpo — continuou um jovem poeta, talentoso, mas carente de
bom senso — és dos personagens mais patriotas que o Brasil já conheceu. Poucos estudaram nossa pátria com tanto amor e
competência, não por acaso, tornou-se um clássico na literatura nacional. Por
isso te chamamos, para, quem sabe, ministrar um workshop para novos personagens...
— Um o que?? — perguntou Policarpo, estranhando aquele dialeto.
— Uma palestra, um curso. — respondeu outro.
— Bem... sabeis que o Brasil sempre foi minha paixão. O respeito à sua
natureza, a sua língua, a sua gente, sempre permearam minha conduta. Terei sim
prazer em orientar as novas gerações de personagens. Mas, por ora, encontro-me faminto.
Há alguma taberna próxima?
— Sim. — respondeu o jovem poeta —, mas hoje em dia chamam-se
restaurantes; ou fast-food, como
preferem outros.
— Fésti fud?? Que diabos é isto?
— É comida rápida, em
inglês. O pessoal daqui acha elegante a língua de Shakespeare.
— De fato, tem suas belezas. Mas, se não me levaram a sério na proposta
de se ensinar o tupi nas escolas, deveriam pelo menos preservar a língua de
Camões, também encantadora.
Por fim, resolveram levá-lo numa lanchonete, lugar geralmente mais calmo
na hora do almoço, já que Policarpo ainda estava visivelmente incomodado com a
enorme quantidade de gente nas ruas. O jovem poeta deu a ideia: levar o velho
personagem para lanchar em um shopping center.
Lá dentro, depois de passar em frente de lojas como Golden Joalheria,
Kings Coffee e Woodstock CDs, chegaram a praça de alimentação.
Apresentaram ao ufanista Policarpo... O Mc Donalds...
— Róti dóg, xis burguer... Que diabos de comida é essa, senhores?
— Não se preocupe, Policarpo, o nome pode ser estranho, mas o lanche não
é ruim.
— As sardinhas da Taberna do João me pareciam mais apetitosas. E pelo
menos dava para saber o que estávamos comendo...
Enfim, lancharam todos e uma hora depois estavam de volta à rua. Retornaram
para a sede da ABL, onde apresentaram Policarpo a um aparelho inexistente em
sua época, a televisão. Nada melhor para mostrá-lo de modo mais dinâmico o que
acontecia no país. Foi aí que tomou conhecimento das fraudes em licitações
públicas, do desvio de dinheiro, dos votos comprados...
— Bando de néscios, malta de bandidos, quadrilha de pândegos!! A mão da Lei será pesada sobre seus cornos!
Acharam por bem não alertá-lo que a mão pesada dos egrégios tribunais do
país tinha por hábito presentear os acusados – a maioria presa em flagrante,
com a mão na cumbuca, como diriam os antigos – com providenciais Habeas
Corpus...
— Que fazem com meu país, calhordas? — perguntou Policarpo, sem desgrudar
os já úmidos olhos da tela.
A notícia seguinte dava conta do desmatamento da Amazônia, da poluição
dos rios, e da suprema incompetência governamental não só em prevenir tais
problemas, como também em punir os responsáveis.
Depois do intervalo, chegou a vez do caos na saúde pública, das escolas
de lata...
— Calhordas, salteadores, biltres, abutres, sacripantas!!! — xingava
Policarpo, quase batendo na televisão.
Deram-lhe um calmante a base de farinha que não surtiu efeito. Por fim,
preferiram trancá-lo em uma sala, para que pudesse descansar um pouco. No
início da noite, mais calmo, Policarpo informou:
— Amigos, agradeço a honra de me considerarem como modelo, como exemplo,
mas prefiro retirar-me. Na verdade, caríssimos, não preciseis de personagens
clássicos ou de heróis míticos; preciseis de homens de carne e osso, de bom
senso, justos e preocupados com o próximo, que saibam dirigir o país com responsabilidade
e serenidade.
E foi-se o velho Quaresma, quem sabe passar uma quarentena no consultório
do seu estimado amigo Simão Bacamarte, o Alienista, de Machado de Assis.
Precisava desabafar um pouco...
“Há quantos anos vidas mais valiosas que a dele se vinham oferecendo,
sacrificando, e as cousas ficaram na mesma, a terra na mesma miséria, na mesma
opressão, na mesma tristeza.”
Triste Fim de Policarpo Quaresma