domingo, 9 de setembro de 2007

Jesus de Copacabana

Ernestina, sentimentos escravizados pela devoção ao cristianismo, com olhos marejados de lágrimas rogou a irmã.
— Pelo amor de Deus! O menino-jesus não!
— E como vamos pagar a conta de luz que vence amanhã mana? Com a sua fé no bonequinho?
Esta contenda vinha de anos. As dificuldades financeiras que as duas irmãs solteironas passavam as obrigava, vez por outra, a se desfazer das relíquias que a família acumulara durante décadas e agora dominavam os espaços do minúsculo conjugado que elas alugavam em Copacabana.
Desfizeram-se da prataria, bibelôs de louça, conjuntos de porcelana, até mesmo a cristaleira, herança da avó materna. Ernestina recebia estas perdas sem dizer um “ai”. Tal qual uma santa martirizada, aceitava o destino dado as peças que a irmã se desfazia para obter uns trocados. Mas deu para reclamar quando Raimunda decidiu vender um presépio com figuras em biscuit que todos os natais decorava um canto do conjugado e havia chegado ao Brasil no princípio do século XX, por intermédio dos seus ancestrais portugueses. “Não serve pra nada, só ocupa espaço”, costumava dizer a mais pragmática das irmãs. Ernestina abominava a idéia de vender imagens religiosas. Para ela, temente a deus até as entranhas, aquilo tinha cheiro sacrilégio, além de uma afronta a memória dos seus antepassados.
Inicialmente, Raimunda sacrificou os animais do presépio. Em seguida, os reis magos, vendidos em lote único a Agemiro Caldas, um antiquário da Rua Barata Ribeiro. Os olhos do homem reluziam em ganância após cada telefonema de Raimunda. O antiquário já possuía até um comprador para o presépio, mas o problema em ele não Ter em mãos todo o conjunto de peças. Aquelas imagens chegando em doses homeopáticas o irritavam profundamente. Podia fazer uma oferta pelo que sobrara, Maria, José, o menino e a manjedoura, porém, temia que a as irmãs julgassem baixa a sua proposta e todo o plano viesse por água abaixo. Agemiro Caldas assim, violentando sua cobiça, tentava exercer as virtudes da paciência e esperava.
Não precisou esperar muito para se apossar do casal bíblico. Uma dívida com a farmácia obrigou Raimunda a vender os pais do Cristo. Agemiro Caldas voltou saltitante para a loja. Desembrulhou os dois personagens e os colocou na prateleira onde estavam as outras peças do presépio estrategicamente arrumadas, vaquinhas, cordeirinhos, um jumento e os três reis magos. Um espaço vazio, no centro da cena, esperava pelo menino-jesus. “Agora só falta o garoto”, ruminou o comerciante, esfregando as mãos sorridente.
Meses depois, o dia tão aguardado chegou. Agemiro Caldas, após um telefonema, bateu a porta do apartamento das irmãs e encontrou nelas resquícios de que ali houvera uma discussão. Ernestina fungando, Raimunda com cara de poucos amigos. Deduziu que o clima entre as irmãs pesara em virtude da venda do menino-jesus.
— Bem... – disse sentando sem esperar convite – vamos ao que interessa. Dou 80 reais pela peça.
— De jeito nenhum. - Rosnou Raimunda. Ernestina apenas soluçava.
— Os tempos estão difíceis, tenho tido poucas vendas – desculpou-se.
— Trezentos reais ou Jesus não sai desta casa!
— Trezentos?!
— Só o menino. Sem a manjedoura.
— Caramba!
Negociaram durante meia hora e fecharam em 200 reais, manjedoura inclusa. A necessidade em pagar a conta de luz derrotara Raimunda. O antiquário deixou o apartamento com o pequeno Jesus metido dentro de um saco de supermercado, alegre como um porco na lama. No quitinete das irmãs, ficou um surdo ressentimento de Ernestina em relação a Raimunda.
Depois deste episódio, Ernestina adoeceu. Começou com uma tosse seca que não a largava. Em seguida, perdeu peso e disposição para o trabalho. Acabou na cama, voz fraca, mãos trêmulas. Raimunda gastou os 200 reais do menino-jesus e mais um pouco com remédios e médicos, mas Ernestina não melhorava. Entrevada na cama, um fiapo de voz na garganta, Ernestina se penitenciava a irmã:
— Estou sofrendo porque vendi Jesus. Sou uma Judas.
Vendo que a irmã só piorava e se convencendo de que a venda do menino-jesus fora realmente a causadora daquela doença, Raimunda telefonou para o antiquário tentando reaver a peça. Agemiro Caldas, sabedor do estado de saúde de Ernestina e desejoso em tirar vantagem da situação, jogou duro:
— Lamento Dona Raimunda. Estou cobrando 600 reais.
— Pelo Presépio? – espantou-se.
— Pelo menino.
Não adiantaram as súplicas de Raimunda nem a alegada doença de Ernestina. Agemiro Caldas argumentou que não conseguira vender o presépio, que o comprador roera a corda na hora de fechar negócio e que ele tinha que reaver de uma forma ou de outra o dinheiro empatado naquelas peças. Que este era o negócio dele: comprar barato e vender caro. Até frases de economistas famosos ele citou para justificar sua usura. Raimunda desligou o telefone sem despedir-se. Olhou para a irmã, moribunda e sendo consumida pela paixão por um ídolo de biscuit e entrementes tomou sua decisão.
O pequeno antiquário localizado na Rua Barata Ribeiro, esquina com a Paula Freitas, já estava fechando as portas quando dois pivetes invadiram o estabelecimento. Agemiro Caldas, que por avareza não possuía empregados, estava sozinho. Apesar de não reagir, levou uma estocada na perna esquerda. Aos policiais um trêmulo comerciante, perna enfaixada em gaze avermelhada pelo sangue, relatou que os pequenos assaltantes haviam roubado apenas peças miúdas, mas algumas de alto valor no mercado, entre elas, peças de aparelhos da Companhia das Índias e figuras de um presépio de biscuit.
Na Praça do Lido, às onze horas do noite, sob um calor incomum para um outono, deu-se o insólito encontro.
— Trouxeram?
— Tá aqui Dona – disse um dos meninos, abrindo o saco de estopa onde estava o produto do assalto.
Raimunda procurou afoitamente pelo Jesus de Biscuit. Um sorriso iluminou seu rosto quando achou o que procurava. Lá estava ele, liliputiano, olhar cândido e barroco, branquinho feito cera, cabelos loiros pintados em tinta dourada. Apertou a imagem no peito e perguntou.
— Deram a facada que eu mandei?
— Na perna, como a senhora mandou. O coroa ficou bolado – falou, às risadas, o menor dos dois
— Podem ficar com o resto das peças e tá aqui os 50 reais combinados. Agora se mandem. Eu nunca vi vocês na minha vida, entenderam?
— Deixa com a gente Dona.
Mal chegou ao conjugado, Raimunda foi ao encontro da irmã. Ernestina jazia na cama. tinhas feições alvas como um zumbi de filme B. Um hálito de morte empestava o local . A irmã entregou a ela o menino-jesus. Ela segurou com força a imagem em uma das mãos. Seus olhos se encheram de lágrimas. Encarou a figura tomada pela emoção. Ofegante, tirou do peito suas últimas forças e falou.
— Agora eu posso ir em paz.
O enterro foi concorrido. Não se sabia que Ernestina conhecia tanta gente. Capela lotada, parecia que todos os velhinhos de Copacabana vieram se despedir da simpática anciã. Havia muitas velas, pouco choro e uma coroa de flores. Entre os presentes, Agemiro Caldas, mancando em virtude da facada, contemplou o corpo de Ernestina no caixão. Raimunda suspirou aliviada depois que o antiquário se afastou sem perceber que a defunta segurava, fechada em uma das mãos, o menino-jesus de biscuit.

7 comentários:

Marco Ermida Martire disse...

Ah, lembro sim deste conto, finalista do Contos do Rio! Muito bom! Original e divertido. Parabéns pro Lameque!

[barba] Uonderias disse...

jesus of suburbian!

Anônimo disse...

Nossa, muito bom. Evolvente, divertido, surpreendente e os motivos para o roubo são perfeitamente aceitáveis, até me emocionei.
:)

MPadilha disse...

Lama, depois de muito transtorno consegui, to aqui. Muito bom, aliás, só podia ser, pois é seu. Adorei.Beijos

Anônimo disse...

ótimos personagens, mto bem construídos. Isso é q é estruturar um conto.

Anônimo disse...

Beleza, Lama. Carioquíssimo. Estou antevendo a compra pela Globo.
Abração.

Deveras disse...

Também já conhecia este conto de outros carnavais...

Muito ducarai.

ficanapaz, Grande Lama!