quinta-feira, 31 de maio de 2007

Convidada: Rita Dahl (Finlândia)

in your starstruck eyes
crazy drunken people
walk hand
in hand and tear at

all those people
who touched
your applelike breasts
while you walked in the market-place

how cruel
the arched bridge of the temple
I stay in the middle of the market-place

to avoid the many hopeless
and uncaring sights
in the city
***

em seus brilhantes olhos
loucas pessoas bêbadas
andam de mãos
dadas e rasgam

todos aqueles
que tocaram
seus peitinhos de maça
enquanto você andava no mercado

quão cruel
a ponte arqueada do templo
Eu permaneço no meio do mercado

para evitar os tantos inúteis
e despreocupadas figuras
na cidade
(traduzido por Giovani Iemini)


Rita Dahl (n. 1971) é uma escritora e organizadora de volumes literários em
regime freelancer, de nacionalidade finlandesa. Formou-se em Ciências
Políticas e tem também uma licenciatura em Literatura Comparada. O seu
primeiro livro de poemas, Kun luulet olevasi yksin, foi publicado em 2004
(Loki-Kirjat), a que se seguiu Aforismien aika (PoEsia), na primavera de
2007. Foi também publicado, na mesma altura, o seu livro de viagens sobre
Portugal, Tuhansien Portaiden lumo - kulttuurikierroksia Portugalissa (Avain).

Foi responsável pela revista de poesia Tuli & Savu, em 2001 e também a
revista cultural Neliö (www.page.to/nelio), que teve um número especial
sobre Portugal, cuja versão impressa também esteve a cargo de Rita Dahl.

Também em 2007, Dahl vai publicar um retrato do poeta finlandês Jyrki
Pellinen (PoEsia) e está a preparar uma antologia de escritoras da Ásia
central e outras regiões do mundo (Like), que inclui também os discursos
oficiais e os textos de ficção apresentados no Encontro de Escritoras da
Ásia central. O evento é organizado pelo PEN CLUB da Finlândia, do qual Rita
Dahl é Vice-Presidente. Prepara ainda uma antologia de poesia portuguesa
contemporânea.

Seu blog.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

O FOLHETO DA FALSA FÁBULA (por Osvaldo)

- um trecho d’O debate das pedras -



(...)


Tod’alegria que reina na terra
Se deve a nobreza do artista
É o contador de mui causos
Do sertão é o romancista
Ligeira e bela é a poesia
Do trovador e cordelista
Desde menino eu m'arrecordo
De que meu avó poeta versava
Os mil causo d’antepassado
Tempo em qu'os minério falava
Corria o folheto feir'a feira
E a multidão se aglomerava:
.
Sou Almiro da Proença e Silva
Posto um avô de direção
Formado ‘stou em xilogravura
Sou é poeta da boa instrução
Criado na fé de minha família
Fiel em Jesus e São Bastião
.
Andava-a-trote o jegue-manco
Na redondeza du’a cratera
Quando avistei avexad'o encanto
O confabular de duas pedra
Uma severa em tom mui grave
Outra versava sobre as era:
.
Pedra primeira
Ora lhe digo:
Que na historia desta terra
Qu’houve uma Cobra arredia
E dizem qu’era besta fera
Cozia era seis homem corrido
E num sobrava nem as perna
.
Pedra segunda
Em verdade:
Sou qual oca mas não burra
E como pode da indivídua
Cozer seis homem em fissura?
Toda a boca é pequenina
Nem jibóia sem dentadura
.
Pedra primeira
num apreciso
De provar-lhe veracidade
Vosmecê pra escuridão
De tua parca cristandade
Pois canto o que o vento-me ressoa
Dos cantos da morosidade
.
Pedra segunda
Num padeça
Justa é pedra que se preza
E nem compensa a cantoria
É largá isso e corrê reza
É a lição que fala o Cristo:
Qu’é feliz quem se preserva
.
Pedra segunda
Pois dexêmo
É desta prosa sem valô
Num faço bem nem aproveito
Do que se prega o seu senhô
Pra pedra-casta é senhoria
Eu sou é poeta e cantadô
.
Pedra segunda
É ligeira
Mas canta sem a precisão
A trova sua é desmedida
E pinga é menos coesão
Num aprecio é meia verdade
A mim não convence é-não


(...)

E as freira toda estarrecida
Em se saber daquela feita
Um dois três quatro seis folheto
Que tem mui causo e muita treta
Corrid'a paróquia, praça-igreja:
‘Que coisa isto, é do capeta!”





.


A princípio, e a despeito da temática e estética lembrar o poema popular, gostaria de esclarecer que de longe este esboço se assemelha ao poema de Cordel. Não há um trato, um esmero no que pese à cesura, à metrificação que é uma das características deste gênero.
É u’a legítima homenagem ao poeta do povo, não mais.

.
Osvaldo

terça-feira, 29 de maio de 2007

Sacrifício


No ápice dos meus atos
Traído por um judas
Vi o meu mundo se fechar
E uma salvação no fundo do poço

Nos sons da minha destruição
Andei até o fim
Com a dor marcada no corpo
Pela libertação da minha alma

Atormentado por não entender
Subjugado por hipócritas
A obra desmoronou
Na eternização da minha história

segunda-feira, 28 de maio de 2007

FICÇÃO DO VERBO



Um arsenal de bazucas dispara sons ensurdecedores de choros causados por melancolias definhadas.

Observo, girando freneticamente em meu cavalinho cego em carrossel vazio
Oro,tento chorar,acaricio meu animal que não lembro que é falso.
Desengoço os ritmos, agrido os ares com beijos e sou atingida.

A ficção se torna tensa.
Um mar de música triste se entorna no meu corpo Fazendo alvoroço em cada vícera,em cada osso, nos nervos
Chupando o pescoço

O carrossel girou tão rápido que os cavalos se soltaram e foram morar na imaginação de uma criança anônima

O som rastreia e rasga meu corpo com maestria
Como numa cirurgia

Mais parecendo um concerto de gênio musical

É tudo tão perfeito que me esqueço de sentir dor

Me entretendo curiosa como um turista em um templo estrangeiro
Vendo os desenhos que vão se formando no meu corpo um a um

Símbolos aparecem e se apagam
com uma delicadeza vertiginosa

E é quente dentro da poça de sangue provocada por tal trabalho artístico de bisturis invisíveis

Os cavalos voltam,agora alados... unicórnios,com crianças alucinadas
montadas em seus flancos

Elas riem

Elas cantam

Elas gritam

Pedem ao bisturi mágico que me perfure mais

Talvez elas queiram fazer esculturas com meu sangue
Mamar ou pintar os chifres dos unicórnios

Não me zango

São crianças lindas

Terrivelmente lindas!
Com olhos que giram em espiral e mãos compridas e sedosas que passam sobre mim
Rapidamente....de forma lúdica

Elas sopram e todo mistério do mundo lhes escapa pela boca

Foram longe demais, coisa proibida,

uma consumação,ato profano,fantasia esquartejada.

Não houve outro resultado...

Caíram todas, uma a uma, lado a lado,mortas,cadavéricas.
Com os olhos costurados, as mãos atadas
E um símbolo no peito que significava:

" No principio era o verbo, no final a ousadia de desconstruir e criar a nova linguagem dos anjos sob a condição de sucumbir-se até o vale da morte.”

E desta forma,finalmente me foi permitido chorar
e foram com essas lágrimas que enterrei cada corpo infantil
Sonhei mesmo correndo perigo,com os mistérios e voltei ao carrossel já destruído

E em meio a pouca música torta e rouca que sobrava do brinquedo também me entreguei ao

cérebro sagrado e aflito...
(imagem:Basquiat)

domingo, 27 de maio de 2007

Do Desejo de Precipitar-se

Porventura será numa palavra vã
Que a Noite, do poeta a bela cortesã,
Dirá àquele que dorme um descanso sem medos
Como o Amor se revela em antigos segredos?

Envolta no negror de um estrelado véu
Virá a musa noturna, imperatriz do céu,
À cama do poeta, amante do perfeito,
Para dar-lhe um prazer satânico e suspeito.

De posse de um segredo escrito sem sinais
Ele beberá o mel que tanto suplicais;
E viajará então a uma cidade impura
Para sepultar lá a semente da ventura.

Mas todo dom exala o veneno do absinto
E até o poeta irá provar a dor que sinto:
Esse estranho licor que queima na garganta,
Como o vinho que mata, inspira e nos encanta.

Porque terás, infausto odiado e querido,
O mesmíssimo fado outorgado a Cupido:
Que toda flor que brota em meio à escuridão
É bastarda da mais infeliz decepção.

______________

Eduardo Borges [ rebellis ]
Originalmente publicado em http://revelia.blogspot.com.

sábado, 26 de maio de 2007

Imagine um dia de sol

Segunda-feira, vinte de maio. Recebo um e-mail da editora Andross recusando meus textos. O editor alegou que meus textos eram, por falta de palavra melhor, infantis demais para tal concurso. Manifestei minha insatisfação com outro e-mail. A resposta dada foi praticamente igual à outra. Em um primeiro momento eu não havia concordado com a opinião do editor, porém passei toda a noite pensando no que ele dissera. Acordei cedo na terça-feira. Já estava aceitando o veredicto do editor. E aceitei.

Escrevo de forma infantil? Talvez, mas qual o problema nisso? Que eu seja lido por velhos, jovens e principalmente crianças. O importante hoje para mim é ser lido. Que culpa tenho eu de escrever sobre a mente de uma criança, sobre o universo desconhecido que cada garotinho tem pela frente após se dar conta do mundo ao seu redor. Acompanhe comigo:

Imagine um dia de sol, um agradável dia de sol. Crianças vigiadas pelos pais brincam nos balanços e escorregadores do parque. Sentadas no banco de areia, duas outras crianças tentam fazer um castelo. Dois meninos. Há cavalinhos e soldados. Há também um pequeno balde servindo de molde para as torres. Conforme eu disse, é realmente um dia agradável. Poucas árvores. As mais altas têm um balanço maior; as mais baixas foram usadas para pendurar pneus.

Folhas secas, grama e crianças. Os dois meninos no banco de areia não se conhecem. Apenas os pais se falam vez ou outra no elevador do condomínio onde moram. O primeiro tem cabelos pretos e olhos castanhos, o segundo também tem cabelos pretos e olhos castanhos. Têm a mesma idade e fazem a mesma coisa: constroem um castelo de areia. As outras crianças do parque são mais agitadas. Pulam, correm; a maioria joga futebol.

Os nossos pequenos construtores ainda estão com a mão na areia. Levantando torre por torre, muro por muro. Eles são tranqüilos, talvez os mais calmos de todo aquele parque. Terminaram cada qual seu castelo. Olharam-se por alguns instantes, mas logo procuraram desviar o olhar, coincidentemente para o mesmo local: a única árvore que mostrava indícios de um outono próximo. Uma folha se desprende e cai lentamente. Os meninos acompanham o movimento suave que aquela folha faz. A mãe do primeiro menino aparece para levá-lo embora. O segundo menino continua lá, observando a folha que agora toca o chão exatamente em cima de um pequena poça d’água, formando uma ponte para algumas formigas que passavam por ali seguirem caminho. O menino sorri. Percebe que aquilo não é comum.

Com o tempo esse menino aprende a observar. Procurar a mesma sensação que teve ao ver aquela folha cair interagindo com o trajeto das formigas. Quando aprendeu a ler e escrever, começou a anotar os pequenos detalhes dos seus dias. Não só as árvores e os bichos ele observava, mas também as pessoas. Os hábitos de cada um, as manias. Ainda há muito que se falar desse menino. Mas eu adianto a você, caro leitor, que o futuro desse menino (mais que um desejo meu) é se tornar escritor.

Há um abismo entre a coincidência e o destino.

sexta-feira, 25 de maio de 2007

O lixo da madame

O lixo da madame

Estava cansada da companhia vazia da televisão que, além de ser uma porcaria, ainda a fazia recordar-se do seu ex-marido; um malfadado diretor de núcleo da emissora nacional mais assistida.
Desligou com fúria o aparelho, desceu as escadas languidamente e tomou a rua. Parou em frente a uma cena usual, mas nunca antes observada: o lixeiro recolhia o lixo das luxuosas casas de Santa Teresa, bairro onde ela residia.
Ficou estarrecida. Nunca imaginou que um homem poderia conservar tamanha beleza dentro de vestes tão maltrapilhas e em função tão desfavorável ao Belo. De certo, era novo no local, pois conhecia os antigos lixeiros há décadas.
O sujeito era um negro alto, másculo, dono de um belo par de olhos esverdeados, portador de uma aparência de causar inveja a qualquer modelo internacional. Em outras palavras, um verdadeiro Deus africano.
De súbito, sentiu um arrepio percorre-lhe toda espinha e um leve fio de líquido lubrificante fez-se presente em meio a suas pernas. Como era bonito aquele homem!
No dia seguinte, Laura tomou os sacos de lixo das mãos da serviçal, que ficou sem entender absolutamente nada e parou em frente à lixeira de sua casa. Trajava uma leve camisola preta, que deixava todo seu corpo visível aos olhos de quem por ali passasse.
Bem mais tarde que de costume, o Homem apareceu para fazer a coleta e levou um susto ao deparar-se com aquela bela Dama, tão mal comportada a sua frente, mas entendeu muito bem os motivos de sua presença: conhecia plenamente o submundo das madames renegadas à própria sorte.
Tirou os dejetos das finas mãos da moça, passou o braço por sua cintura e, sem falar uma única palavra, levantou o fino pano, deparando-se com uma pele branca e cheirosa que sob a iluminação da rua ficava ainda mais reluzente. Vasculhou meticulosamente com os olhos cada parte daquele corpo e parou frente à bela cabeleira ruiva da vulva exposta.
Sem pressa, abaixou sua calça laranja e adentrou o corpo da fêmea com um cetro rijo e imenso, fazendo-a urrar feito uma loba no cio em plena rua, próxima a seus vizinhos, em frente a sua moradia, ocultado pelo sujo caminhão de lixo.
A bela dama gozou como jamais o fizera, como jamais imaginara em seus trinta anos de existência na Terra! Jogou fora naquele pênis ébano toda repressão de anos de um casamento de fachada.
Tais noites tornaram-se um hábito nas vidas do lixeiro e da madame, até que ela resolveu promovê-lo a motorista e companheiro de sua história. Desde que o conhecera, mudara completamente: agora se sentia plenamente amada, tal como sempre desejara. Andava feliz por Santa Teresa.
Mas os comentários não cessavam, nem mesmo a revolta alheia, principalmente a de seu enrustido ex-marido, que dias desses, lhe telefonou:
— Acaso, enlouqueceu Dona Laura? O que você pretende morando com o lixeiro da sua rua? Enxovalhar o meu nome e do nosso filho? Atirar nossa reputação na lama?
Ela ouvia a tudo calada, até que ele proferiu a sentença final:
— Sabe o que vou fazer? Vou à Justiça pedir a guarda de nosso filho, porque a mãe dele sempre teve um caso com o lixeiro e agora resolveu colocá-lo dentro de casa.
Então, não teve jeito, respondeu o que estava engasgado a meses:
— Faça isso e eu irei em rede nacional e ao juiz dizer que sendo assim, você também não poderá ter a guarda de nosso filho, pois você teve um caso com nosso jardineiro . A diferença é que você não assumiu! Acho melhor você pensar bem, ou do contrário, nosso filho será entregue a um orfanato!
Fez-se o silêncio do outro lado da linha, seguindo-se o barulho de ligação encerrada.
E até hoje ninguém entende como o ex-marido, humilhantemente trocado por um lixeiro, nunca esboçou qualquer reação, tendo em vista seu costumeiro temperamento vingativo. “São coisas da vida”, dizia ele, plenamente conformado com a situação.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

NATUREZA FERIDA

NATUREZA FERIDA

Gotículas cantam
Tristemente,
Pegadas grudam
No solo,
O calor te ruiu
Gravemente,
Agora,
Tenta alcançar
Teu pólo.

Não há tempo
Para despir,
Varal inundado,
Vestes a cair.

O vento
Intrigante,
Tirou
O arco-íris do ar;
Sei...
Estás ferida,

A poluição
Estonteante,
Sepultou
Um pedaço do mar;
Agora,
Tenta perturbar
Tua vida.

Autora: Lena Casas Novas

repercussão:
Desenvolvimento sustentável
Bar do Escritor
Manufatura

quarta-feira, 23 de maio de 2007

terça-feira, 22 de maio de 2007

Profissão Esperteza (Releitura de um conto de domínio popular “Sabedoria Antiga”)









-Os seios mais lindos que eu já vi! Dois melões suculentos! Tenho que abocanhá-los. É uma necessidade quase mortal. Nada mais importa. Preciso sentir o gosto! São enormes! Belos!
-Calma Rui. Verei o que posso fazer. Mas vai custar caro. Uns mil dólares.
-Pago o que for preciso.
-Ok. Eu volto a dar notícias.
Esperto e ardiloso, lá foi Roberto Tavares, advogado trambiqueiro, até a fazenda de Dona Cida, a dona dos famosos seios. Seu marido era o fazendeiro mais abastado da região, Ananias Barroso, de tradicional família de plantadores de batatas.
-Roberto! Que bons ventos o trazem? Entre. Eram amigos de longa data, quase parentes. Ficou hospedado alguns dias e na véspera de sua partida, pôs o plano em prática. Entrou sorrateiro no quarto da mulher e colocou pó de mico no sutien que estava pindurado na porta do armário.
No dia seguinte Seu Ananias acordou desesperado.
-Nunca vi doença assim. Ela coça os peitos desesperada, já estão em carne viva.
-Isso é Hepatite Varicelática de pele.
-Isso é grave?
-Não, se achar o remédio certo. Saliva de homem de meia idade virgem.
-Virgem? Minha Nossa Senhora! Valha-me Nosso Senhor!
-Calma. Eu conheço alguém assim.
-Conhece? Eu pago o que for preciso. Dinheiro não é problema.
E lá foi Roberto em busca do amigo.
De volta e com tudo planejado, entraram na porteira da fazenda.
-Eis o amigo de que lhe falei, Rui Santos.
-Minha mulher ta lá no quarto. Vou mandar buscar um copo para colher a saliva.
-Não! Tem que ter contato com a língua.
-O que?
-Não se preocupe. Cochichou em seu ouvido: Ele é viado.
-Coitado! Imagino o sacrifício que fará. Pago em dobro.
Rui entrou no quarto e teve a visão mais linda de toda sua vida: Dona Cida deitada, nua, coçando os seios. –Com licença Dona. Preciso iniciar o tratamento. Caiu de boca. Primeiro no direito, depois o esquerdo: Lambeu, chupou, abocanhou, mamou nos peitões, até se fartar. Foram duas horas de muito lambe-lambe. Já estava com as calças cheias de esperma.
Ia saindo quando a mulher disse:
-Doutor... Tem uma coçeirinha aqui ainda. Apontou para a vagina. Não deu noutra. Lambeu, lambeu... E quando sentiu que a mulher ia gozar, penetrou-a com seu mastro e se deliciou.
Antes de sair disse: - Não se preocupe. As particularidades do tratamento serão um segredo só nosso. Piscou e saiu.
Depois disso não quis mais contato com o amigo advogado.
-Mil dólares... Jamais! Trambiqueiro! O serviço fui eu que fiz, ora. Não atendia os telefonemas, não respondia os recados, nada.
Duas semanas mais tarde acordou no meio da noite, assustado. Três brutamontes invadiram sua casa, armados de rifles.
-O Sr. Ananias quer vê-lo.
-O que aconteceu? Dona Cida teve uma recaída?
-Venha conosco. E lá foi, rumo à fazenda. -Que bom. Eu já estava com saudades daqueles peitões. Pensou com seus botões.
Chegando à casa, foram logo entrando. Dona Cida os recebeu.
-Venha. Rápido. Foram para o quarto. Lá, deitado na cama, nu, coçando os testículos já vermelhos e inchados, o Senhor Ananias.
-Lambe logo moço... Isso dói pra caramba!
Os rifles apontados para sua cabeça e do outro lado da cama, Roberto, com um sorriso nos lábios...

.

Me Morte

segunda-feira, 21 de maio de 2007

Felácio

O bimotor passou num rasante sobre o pasto. O piloto sentiu um frio na barriga, o prazer do risco. Estava com 58 anos, rico, casado, com filhos e netos. Ficou de saco cheio e resolveu esvaziá-lo curtindo seus prazeres mais secretos. A aviação era um deles.
- Tá gostando? - Perguntou Guilherme, do banco do co-piloto.
- Sim... - Fechou levemente os olhos. A sensação de voar se confundia com o prazer de estar ali, livre, fazendo o que gostava, finalmente sentindo-se autêntico.
Um solavanco. Abriu os olhos. Havia batido no topo de uma moita de bambu. O avião descontrolado ia se esborrachar no chão. Avistou uma estrada e embicou para lá.
Ainda teve a presença de espírito de tirar a boca do amante de seu pau antes de invadir a pista e espatifar a aeronave no asfalto. Seria humilhante se descobrissem que o acidente foi causado por um boquete aéreo.
***
Mariângela viu, de longe, o avião trombar com a moita de bambu. Apertou-se contra o banco do carro depois de conferir o cinto de segurança. Notou que o motorista não percebera a queda iminente.
O barulho e a bagunça causada pela queda do bimotor na pista contrária assustou o piloto. A carona, traiçoeiramente, gritou desesperada e puxou o volante. O carro desgovernou-se e trombou de frente contra o portão de uma casa.
Recobrando-se ligeira, Mariângela conferiu no pescoço do motorista se havia pulsação. Ele batera a cabeça violentamente no volante. Aquela foi a última vez que deu carona a desconhecidas.
Ela baixou a calça do sujeito e ali mesmo abocanhou o bilau. Sugou com força enquanto massageava o saco. Punhetou o pau uns segundos e de repente: porra. O morto gozou! A mulher engoliu tudo murmurando um cântico gótico. Seria a melhor de suas bruxarias, a mais potente.
- O néctar masculino de um morto recente! - Anunciou, imaginando se aquelas gotinhas de esperma realmente lhe dariam uma voz magicamente sedutora.
***
Ele levantou-se da cama coçando a bunda. A esposa viu a cena e imaginou por que se casara. Quando ele se virou e ela notou que ele ainda acordava excitado todos os dias mesmo aos 41 anos, lembrou-se do motivo.
- Você dormiu armado ou tá feliz em acordar ao meu lado? - gemeu, lânguida.
- É apenas tesão de mijo, esposa tarada! - Ele ria.
- Veremos. - Ela puxou a intumescência da cueca para si, descobriu o presente e aqueceu o falo do amado na boca suave e molhada. Deu umas lambidelas, umedeceu o membro e iniciou um trabalho violento. Sugou e masturbou com vontade. Enfiava até a garganta, depois voltava e chupava a cabeça enquanto massageava a base.
O marido, satisfeito, tinha ímpetos de prazer quase doloridos. Parecia que talvez virasse ao avesso através do pau.
- Ai, querida. - Afagou os cabelos da amada. - Assim você me mata! - Olhou o relógio. - Eu já devia estar saindo pro trabalho no portão de casa.
Um estrondo. Ela mordiscou de susto. Foram para a frente da casa enrolados no lençol. Um carro havia se estourado contra o portão.

domingo, 20 de maio de 2007

Convidada: Dóris Fleury, a escrevinhadora

TRADE
Explorei várias possibilidades. Explorei mulheres, crianças, deficientes físicos. Até um cachorro coloquei no trottoir do Bois de Boulogne. Neste negócio, aliás, maximizei meus lucros. Uma veterinária apaixonou-se por ele e comprou-o por milhares de euros. Ela se chamava Marianne. Linda, clara, implacável. Não estava interessada em seres humanos.
Eu estava. Trafiquei gente de todos os continentes, viajei para garantir a segurança de minhas cargas, investi em preferências exóticas. Nichos de mercado. Comércio, tudo é comércio. Entre uma negociação e outra, ligava para a mulher dos meus sonhos:
- Tudo que você quiser. Vai ficar milionária. Juro. Monto um bordel para você. Cobro só cinco por cento...
Ouvia seu riso do outro lado da linha. Cristal e pérolas. Ela. A mais bela mulher do universo. Commoditie rara, quase inexistente: caviar de Beluga, Chateâuneuf du Pape, Ferrari vermelha. Morando de favor na quitinete da irmã. Na primeira vez em que a vi, fazia feira. Comprava brócolis, se bem me lembro. O vendedor gaguejava, tentava dizer alguma coisa, enfiar o brócolis no saquinho. O brócolis caía e ela ria esse mesmo riso que ouço agora.
Tão deslumbrado quanto o vendedor, computei milhares em minha cabeça. Uma mulher com esse tipo de beleza você não bota num lupanar vagabundo da Eslovênia, num inferninho à-toa da Boca do Lixo. Nem um bar de luxo, freqüentado por universitárias deslumbrantes, era digno dela.
Talvez um fechado bordel de magnatas que eu conhecia em Londres... não, nem mesmo isso.
Fui atrás dela, nervoso, suando. Dei-lhe meu cartão. Expliquei francamente meu negócio: quem sou eu para mentir para essa mulher? Ela sorriu. Me vi bilionário.
Nove da noite num bar de Istambul. Espero um vendedor de heroína. Vou comprar uma grande quantidade, espero que me faça abatimento. Não estou interessado no tráfico de drogas: a mercadoria é destinada aos meus funcionários de ambos os sexos. A heroína garante trabalhadores silenciosos e dóceis, sem reivindicações nem idéias de fuga.
Ligo para ela:
- Quanto você quer? Diga uma quantia.
Outra risada, ao fundo a novela das seis. Ah, sim! devem ser seis horas na quitinete da sua irmã, na metrópole suja de Terceiro Mundo onde ela mora. Uma cidade apinhada e vulgar, que não fez nada para merecer esta divindade.
E o pior é que ela está contente nesse fim de mundo... Mas tenho uma fórmula pronta para tirá-la desse buraco. Um cliente por semana, no máximo, pagando fortunas, quantidades obscenas.
- Estou fazendo um cachecol pro meu sobrinho.
- Cachecol? De que cor?
- Era amarelo, mas agora a lã acabou... Ainda tem um restinho de vermelho. Vermelho e amarelo fica bonito, você não acha?
- Trabalhando para mim, você poderia comprar todos os cachecóis do mundo.
- Não estou interessada. Quer que te faça um gorro?
Vivia sem tostão, fazia uma faxina de vez em quando. Não ligava para dinheiro. Gostava da vida doméstica, de crianças e de cozinha. Cansei de lhe prometer um apartamento em Paris. Ela, nem aí.
- Você tem namorado, é isso?
- Não.
De madrugada, enquanto me livrava do corpo do traficante, liguei de novo para ela.
- Olhe. Você não precisaria fazer nada de esquisito. Sexo normal, comum. Só uma vez por semana, já te expliquei. E as minhas taxas...
- Não quero. E olhe, estou com sono. Já coloquei meu pijama, vou estender o colchonete no chão.
- Uma deusa como você, dormindo no colchonete!
- Não tem importância, eu não ligo...
- Pelo menos tem um bom travesseiro?
Ela me assegurou que sim, e voltei a me ocupar do traficante. Tentou me passar a perna na transação. Quanto à heroína, a essa altura, já tinha sido despachada para os vários países onde tenho negócios, segura nos estômagos de minhas mulheres. Algumas estavam apaixonadas, outras tinham sido ameaçadas. Outras ainda estavam apaixonadas e ameaçadas. A melhor combinação, pela minha experiência.
Outro telefonema. Dessa vez estou em frente ao meu computador, dirigindo meu negócio de pedofilia online. Não me interesso por crianças; apenas as vendo.
- Este seu sobrinho. Com o dinheiro que você ganharia, ele não precisaria dessa escolinha vagabunda onde você o leva. Poderia ir estudar na Suíça.
Pausa. Ouço o ruído dos carros na rua, ela leva o moleque pela mão:
- Ele seria feliz na Suíça?
- Todo mundo é feliz na Suíça!
(Mentira. Já estive lá, e quase morri de tédio).
- Não acredito. Vou desligar.
- Não, não desligue! – com um clique, mando uma garotinha de dez anos para um bordel na Tailândia. – Por favor, não desligue. Até agora, fiz as propostas. Agora, você faz. Me diga...
- Dizer o quê? Artur, cuidado com o carro!
- Em que condições aceitaria vender esse corpo maravilhoso. Peça o que quiser. O céu. A lua. As estrelas. Você escolhe os clientes. Impõe todas as condições. Eu baixo minha porcentagem. Me ligue quando estiver pronta.
Uma pausa. Desligou? Não:
- Vou pensar no caso. Um dia te ligo.
Pensei que estava me enrolando, que nunca ligaria. E de fato, vários meses se passaram antes que visse o seu nome no visor de meu celular. Atendi imediatamente:
- É você, minha deusa?
- Eu mesma. Pensei na sua proposta.
- Pensou? Radzik, enfie a cabeça desse desgraçado na água!
- Sim, pensei. Vou aceitar. Mas tenho minhas condições.
Enquanto eu, distraidamente, observava a cabeça do policial sérvio entrar e sair da água, ela me disse o que queria.
Escolheu o dia.
A hora.
O preço.
As condições.
E o cliente.
Só consegui impor o lugar. Dois dias depois, eu a esperava no Hotel Crillon de Paris. Na hora marcada, ela surgiu à minha frente. Sorriu para mim, e o hotel se iluminou até os últimos andares.
- Trouxe o pagamento? – perguntou.
- Claro que sim – respondi, engasgado de emoção. Tirei do bolso um pacotinho de lã amarela, e lhe entreguei os novelos.
- Então vamos para o quarto – disse, me pegando pela mão. Atravessei o saguão junto com ela, seguido pelos olhares de inveja assassina de outros homens, que nunca dormiriam com ela.
Eles não podiam pagá-la.


Dóris Fleury
Visite minha página, A Escrevinhadora:
www.escrevinhadora.com.br

E também o blog Turma da Groselha:
www.aturmadagroselha.blogspot.com

sábado, 19 de maio de 2007

Até que ponto, excluindo, não somos nós os excluídos?

Eram caninos, podia-se observar por suas longas presas cintilando na noite deserta. O pêlo sem algum cuidado ainda brilhava a luz fraca de um poste, talvez o único com uma lâmpada naquele beco.
Natália não pensava em nada quando cruzou o caminho de ambos, compenetrados em restos na lata de lixo. O que a perturbou foi o forte cheiro de carniça e a sujeira a qual acabou por tropeçar. Ajeitou-se após a quase queda e percebeu que as coisas não estavam boas e alguns nomes de santos não a livrariam do que estava por acontecer.
Deu dois passos para trás e sem compreender a linguagem dos animais fez sinal com as mãos a demonstrar que não queria encrenca.
Os olhos vermelhos, aguçaram. Havia um brilho, misto de fome e desejo a exaltar as penumbras de uma madrugada antes comum aos nossos monstros.
Atacada pensou o fim sua primeira companhia. Deveria ser breve, ela não lutaria. O destino quando bate a porta não espera que o atendam.
A língua quente de um dos animais percorria suas pernas enquanto as patas de outro roçavam suas nádegas. Dentes rasgavam suas vestes e farejavam-na em sua intimidade.
Personagem de ódio e prazer, o corpo, lentamente cedeu a um canto da calçada fria e suja, quando Natália compreendeu qual dimensão a morte pode atingir entre o espaço chamado vida e aquilo que deixamos escapulir. Ela era a caça no covil dos ardilosos lupinos.
De olhos fechados sentia a feracidade com que a lambiam dando atenção ao seu sexo como se ali estivesse o alimento que buscavam. Salivavam, urravam, penetravam-na como se ela fosse a fêmea pela qual aguardavam para aquela noite de lua cheia.
Ela esperava ser devorada, não literalmente saboreada.
Luzes e sirenes ao longe, despertaram a atenção dos animais que a soltaram com um semblante de gozo e susto. De pé, urinaram sobre seu corpo estendido na rua e sumiram na escuridão.
__ Moça, o que faz aqui assim? – perguntou um dos policiais.
Tudo estava muito confuso, Natália, debaixo de seus quarenta e sete anos não tinha pudor ou demonstrava a menor evidência de quem havia sido violentada pelos supostos lobisomens.
Um sorriso cobriu sua face escondida pelos longos cabelos loiros e uma voz fraca sussurrou:
__ Para quem a vida toda acreditou em contos de fadas, ser personagem de uma lenda é melhor do que pizza sob encomenda.
Levaram-na para o hospício local. Apresentação?
__ Mais uma vítima da nova geração a qual contribuímos para que prolifere.
O homem é aquilo que plantamos para que ele colha.
Ao praticarmos nossos hediondos atos em surdina, lobisomens são possíveis à medida que esquecemos que outros da mesma raça lutam pela simples sobrevivência.
E a fome, seja essa de comida, cultura ou sexo será saciada de uma forma ou de outra pela prole que insistimos em alimentar com a nossa ignorância ao fecharmos os olhos à exclusão do homem de seu próprio meio.


Eliane Alcântara.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

O ESPÍRITO DO JAGUAR

A estalagem “Porco do mato” tem esse nome por dois motivos: primeiro, é suja e fica no meio da floresta amazônica, em algum ponto entre o Brasil e a Bolívia; segundo, seu proprietário é grande, sujo e violento – exatamente como um porco-do-mato. Aliás, ele responde orgulhosamente pela alcunha de “Grande Porco”.
A chuva torrencial vence parcialmente sua batalha secular contra o calor dos trópicos e o véu da noite envolve a selva. Algumas dezenas de homens – garimpeiros, seringueiros e pequenos traficantes – entretêm-se com bebidas, cigarros e conversa fiada.
O ruído da chuva aumenta quando a porta da estalagem é vagarosamente aberta e um homem de pequena estatura entra, trajando peles e ostentando uma espessa barba grisalha. Apesar da aparente idade avançada, o visitante caminha com a leveza e a elegância de um garoto. Senta-se lentamente a uma mesa e acena para o estalajadeiro. Este se aproxima, com seus costumeiros maus modos, e pergunta:
– Tem dinheiro, forasteiro?
– Não! – responde o homem – Mas estou disposto a pagar com trabalho.
– Não preciso de ajuda.
– Então, posso contar uma história.
– E o que garante que é uma boa história?
– Se não gostar, poderá me espancar.
O dono da estalagem sorri, perverso. As dúzias de homens presentes fazem chacota.
– Pois bem. Então conte a história.
– Primeiro, traga-me uma garrafa.
Ao sinal do “Grande Porco”, uma jovem negra traz uma garrafa de aguardente e um copo. O velho observa a bela garota e seus olhos ficam marejados de lágrimas. Enche o copo, bebe um grande gole e começa:

“Há incontáveis gerações, quando as ilhas flutuantes finalmente se uniram formando a América Central, homens, animais e deuses caminhavam lado a lado. A nova ponte entre as Américas gerou mudanças de toda sorte, mas o maior impacto foi o encontro de espécies, até então desconhecidas entre si.
Nessa época viveu Wan’sel, um grande leão-da-montanha, poderoso líder de seu bando – sim, porque naqueles dias os grandes felinos andavam em bandos. Wan’sel tinha um grande harém com as mais belas e saudáveis felinas do norte. Seus descendentes chegavam às centenas e ele era muito feliz.
Porém, havia coisas que o intrigavam. Ele notava que os homens adoravam os deuses, apesar de serem idênticos entre si. Se havia alguma diferença entre as divindades e os humanos, o grande puma não a notava.
Certo dia, ele percebeu que havia todo um novo mundo para ser explorado, e seus olhos verdes brilharam com a expectativa de aventura.
Enfim, Wan’sel resolveu explorar a nova terra criada pelas ilhas errantes e enveredou-se em uma longa jornada pela América Central. Caminhou meses a fio vendo seres que nunca havia visto. Caçou animais estranhos – e saborosos – e bebeu de rios maiores que as estepes do norte.
Assim foi, até que uma noite ele a viu. Uma felina, sem dúvida, mas sua beleza era indescritível. O luar refletia em sua pelagem negra, enquanto ela lambia suas patas, com uma sensualidade profana.
Sorrateiro, Wan’sel aproximou-se da bela pantera negra e perguntou:
– Quem é você?
– Juna’ili – ela respondeu.
– Por que você tem sobre si o véu da noite?
– Por que você porta o brilho do sol?
E se aproximaram e se amaram. Pela manhã, Wan’sel despertou e não encontrou Juna’ili. Frustrado, ele continuou sua jornada.
Certo dia, encontrou uma grande aldeia de homens e ficou ao longe, observando horrorizado como aqueles macacos pelados sacrificavam barbaramente animais aos seus deuses. Ele não conseguia entender como a morte de uma criatura poderia servir para alguma coisa, além de aplacar a fome do matador. Em meio à fumaça e aos toques frenéticos do tambor, Wan’sel viu sua doce Juna’ili sendo carregada, amarrada pelas patas a um pau. Era óbvio que estava sendo preparada para o sacrifício em favor dos deuses dos homens, que observavam satisfeitos os atos de covardia de seus seguidores.
Num ímpeto que supera o instinto e a razão – chamado amor – Wan’sel invadiu a aldeia e avançou sobre os algozes de sua amada. No primeiro instante, tomados de surpresa, humanos e deuses caíram por terra, vitimados pelas furiosas presas e garras do leão-da-montanha. Wan’sel conseguiu, com seus dentes, libertar Juna’ili e ambos travaram uma feroz batalha contra os humanos e seus deuses.
Porém, a superioridade numérica e o uso de armas logo mudaram o rumo dos acontecimentos e tanto Wan’sel como Juna’ili foram dominados. Em meio a seus mortos, os homens gritavam para seus deuses mesquinhos como iriam vingar os seus, imolando os felinos.
– Sabia que não era possível vencer – disse Juna’ili – Por que deu sua vida para me salvar?
– Não lhe dei nada que já não fosse seu – respondeu Wan’sel.
– Eu também tenho algo seu – a pantera olhou para o abdome, já proeminente.
Numa explosão de fúria, Wan’sel libertou-se e atacou seus captores. Mas foi em vão. Inúmeras lanças e flechas o atingiram e ele caiu, moribundo.
Juna’ili rosnou enlouquecida, enquanto era levada até o lado de Wan’sel, já quase sem vida. Num gesto que pretendia ser cruel, ela seria sacrificada ao lado dele. Os homens levantaram suas lanças e os deuses abriram um largo sorriso perverso.
De súbito, os céus gritaram na língua primal do trovão e a figura gigantesca de Tupã se fez presente. Abraçada a ele, a linda Jaci trazia lagos de lágrimas nos olhos.
– Malditos! – vociferou Tupã.
A um gesto seu, homens e deuses foram incinerados instantaneamente. Jaci tomou Wan’sel nas mãos e o acariciou.
– Por quê? – perguntou o puma.
– Não sabemos – respondeu Jaci.
– Mas vocês são deuses...
– Somos bem mais que isso. Mas as ações dos homens são um mistério para nós.
– Onde está Juna’ili?
A negra pantera aproximou-se, lambendo carinhosamente os olhos de Wan’sel. Suplicou:
– Não parta. Quero que você viva.
– Sabe que não é possível.
– Quero ir com você.
– Sabe que não é possível.
– Mas eu preciso estar eternamente com você.
Tupã interompeu:
– Isso é possível. Se tu quiseres e tiveres coragem.
Juna’ili acenou com a cabeça, concordando.
Tupã levantou o braço e pegou uma estrela do céu. Retirou do útero de Juna’ili um felino pelado. Do puma, ele extraiu o pêlo dourado e cobriu o pequeno rebento. Os buracos das flechas ele preencheu com pedaços retirados da pantera. Como não poderiam suportar as agruras, Wan’sel e Juna’ili morreram. Suas almas foram unidas à estrela e devolvidas ao céu, onde brilham eternamente.
Tendo nas mãos o pequeno filhote pintado, Tupã sentenciou:
– Tu, criatura, és o primeiro de tua espécie. Serás belo, forte e feroz como teus pais e tua semente predominará sobre tuas fêmeas. Porém, a cada dez anos, caminharás entre os homens como um deles, na tentativa de entender a razão de sua loucura. Um dia haverá muitos de tua espécie, mas teu espírito será apenas um”.
O profundo silêncio da estalagem “Porco do Mato” sobressai-se à própria tempestade. O velho continua:
– Então, até os dias de hoje, o espírito do jaguar caminha entre nós, a cada dez anos, tentando entender como pode haver criaturas tão estúpidas como os humanos.
O dono da estalagem grita, pegando forte o forasteiro pelo braço:
– Chama-me de estúpido?
A resposta do velho tem a forma de longos dentes pontiagudos, e um rosnado ameaçador parte de sua garganta. Imediatamente ele o larga, como quem larga um ferro em brasa.
O homem velho se levanta e caminha até a porta. Antes de sair, volta-se para a platéia silenciosa e diz:
– Hoje, tanto os pumas quanto as panteras não andam mais em bandos. Todos os leões-da-montanha procuram, solitários, por sua Juna’ili e todas as panteras negras aguardam, ansiosas, por seu Wan’sel.
A porta é fechada quando o velho ganha a escuridão úmida da noite.
Vencendo o torpor que os dominava, um pequeno grupo de homens corre para fora. Tudo o que podem ver são as marcas de patas felinas banhadas pela chuva.

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quinta-feira, 17 de maio de 2007

Eu, o Amor e a Solidão (Parte II)

Parte I em: http://bardoescritor.blogspot.com/2007/03/eu-o-amor-e-solido.html


Passaram-se vários meses desde aquela visita inusitada. Toda noite, na minha cama, antes de fechar os olhos, eu pensava no Amor, na sua feição benévola e seu sorriso pacífico. Essas idéias eram-me estranhas, pois eu convivia nada menos do que com a Solidão.


Ela era bonita, tinha uma bela face, um corpo bem contornado, mas era mesquinha, egoísta e vulgar. Na verdade, não gostava dela, mas o engraçado é que eu não me imaginava na sua ausência. O que eu poderia fazer sem a Solidão? Provavelmente enlouquecer-me-ia, na convivência eterna com o vazio.


Mas os dias foram passando e minhas ilusões de um novo encontro com o Amor diminuindo progressivamente. De quando em quando acontecia de não pensar nele. Já me parecia uma realidade distante, inalcançável. Mas eu ainda escutava sua própria voz falando que iria voltar, que não desistiria de mim e, por alguma esperança irracional, eu acreditava.


Era início de noite, a Lua ainda estava no começo do seu caminho na estrada fixa do céu. Poucas nuvens e várias estrelas emitiam uma luz necessária para que os seres não vivessem na mais completa escuridão externa, pois já bastava escuridão em si mesmos.


Novamente eu estava com a Solidão, que se encontrava somente com as roupas íntimas sentada no sofá. A luz na sala era mínima, dando um tom sombrio ao aposento. Fui à cozinha pegar um vinho na geladeira, servi-me numa taça. Quando cheguei à sala, ela olhou-me em tom de censura e falou:


- Cadê meu copo, meu amor? – e sorriu.


- Não fale esse nome assim, pois ele não se encontra aqui. – respondi secamente e fui servir o vinho para minha eterna conviva.


“Nem nunca se encontrará”, pensei comigo mesmo enquanto via aquele líquido rubro sair da boca da garrafa e encontrar refúgio no fundo da taça.


Quando a entreguei e ela tomou seu primeiro gole, eu sentei-me no sofá ao lado e fiquei mudo, olhando-a, sentindo o ódio ferver pelas minhas entranhas misturado com um agradecimento estranho.


Mas a porta abriu-se. Meus olhos arderam ao entrar em contato com tanta luz que emitia aquele ser que entrava sem ser convidado em minha casa. Vi que a Solidão havia se assustado, provavelmente reconhecia o convidado.


Uma idéia improvável passou pela minha cabeça, a que seria o Amor. Mas era impossível. Na última visita, o Amor apresentava-se de uma forma bastante simples, com roupas normais e até mesmo velhas.


- Sim, sou o Amor. – respondeu como se tivesse adivinhado meus pensamentos.


Ergui-me imediatamente. Não conseguia distinguir formas nele, apenas era um corpo que emanava muita luz. Na sala, parecia que era meio-dia.


- Que vieste fazer aqui? – perguntou ofensivamente a Solidão, lutando pelo que julgava ser dela.


- Já sabes. Vim pegar o que é meu. – respondeu.


- Não podes. – ela falou.


Senti um desespero no tom de sua voz, como se não acreditasse nas próprias palavras que falava, como se fosse apenas um artifício vulgar para tentar manter-se na sua posição.


- Tu bem o sabes que posso. – o Amor falou, confirmando minhas previsões.


- E então? – perguntei receoso.


- Então que outrora eu te prometi que viria buscar-te. Aqui estou. Está na hora de uma nova vida, uma vida que ainda não tiveste, que ainda não viveste. As aspirações divinas se completaram, tua convivência com a Solidão está encerrada.


- O que?! Então esse sofrimento era proposital?


- Claro, meu jovem. Todos têm de viver por algum tempo com a Solidão para darem valor ao Amor. O que seria o Amor sem a Solidão? Nós somos inimigos, mas fazemos parte da mesma essência.


- E vice-versa! - a Solidão interrompeu, como se quisesse tomar a parte do seu quinhão.


Bendisse e maldisse os deuses, igualmente.


- Vem agora, jovem.


Dei meus primeiros passos em direção ao Amor. Estava de pé, esperando-me, e ergueu-me as mãos. Segurei-as. Pareciam desprovidas de matéria. Eram só feitas de luz, sem nenhuma matéria. No entanto, por alguma energia, eu sentia-me preso a ele, muito mais do que outrora me sentia à Solidão.


Já na porta, tornei-me e olhei para ela. Vi um pouco de desespero nos seus olhos.


- Adeus e obrigado pela companhia. – falei.


Saí e deixei a Solidão sozinha.


Mas não por muito tempo, logo ela seguiria a ordem natural do mundo e serviria de companhia para mais um solitário infeliz.


E não seria eu.



André Espínola

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Morto por engano


-Esse resultado é impossível, totalmente improvável!- disse-me, enquanto eu o olhava atônito. Em seguida localizou os números de telefones constantes na folha e eu ouvi o som de teclas sendo pressionadas.
-Alô, é do laboratório? Aqui é o doutor Carlos, do Serviço Municipal de Saúde.
Por favor, queria checar o resultado de hemograma de um paciente meu.
E após a conversa meramente técnica, voltou-se para mim e exclamou.
-Está tudo bem rapaz, esfrie a cabeça!- E me abriu um largo sorriso. Sinceramente? Eu não poderia imaginar que atrás daquela frieza houvesse alguém humano e, aquela impressão de descaso me abandonou completamente.

E eu saí do pequeno consultório e era muito bom me sentir assim. Era fantástica a sensação que o sufocante calor do sol de 41 graus exercia em meu corpo e, ao atravessar a rua, solto no meio do nada e ainda um tanto desconsertado escutei o assustador som de uma brusca freada e ouvi a voz de mulher, uma senhora de meia idade, que ao volante do veículo gesticulava nervosamente. E mais assustada do que raivosa ela me xingava , me chamava de louco e que eu não dava o menor valor pra vida. Ah! Como estava enganada! pensei. Ela tivera a sua chance e errara. E eu me lembro que essa história de horror havia começado três dias antes, exatamente num 23 de dezembro, por volta das 16 horas.

Havia saído do laboratório e acabara de chegar em casa. Por por mera curiosidade abri o envelope e verifiquei os resultados e, na contagem dos glóbulos brancos fiquei surpreso, já que valor encontrado superava em muitas vezes o valor de referência. E isso, no momento me assustou e a perplexidade tinha um motivo; a leucemia. Eu sempre me interessara por assuntos ligados a medicina, portando havia lidos alguns livros, principalmente os tratavam de cancer, leucemia e alguns outros. E aquilo me preocupou, já que o leucêmico apresenta uma contagem absurdamente alta de glóbulos brancos, fora o fato que os sintomas que vinha desenvolvendo eram bem parecidos aos decorrentes daquela doença. E isso me apavorava, já que a probabilidade de se encontrar medula que seja compatível com a sua, se dá numa proporção menor de uma por mil, ainda mais que o banco de doadores de medula era praticamente inexistente e isso, infelizmente, gerava mortes prematuras. Portanto, se eu fosse portador da doença, significava que minhas chances eram praticamente inexistentes. Nervoso , tentei ligar pro médico do posto de saúde que me havia solicitado o exame. Disquei algumas vezes e na insistência acabei conseguindo. Ao atender, ouvi o alarido, um misto de vozes e lamúrias daquelas pessoas fodidas que como eu nada tinham a fazer, a não ser estar ali mendigando um mínimo de cuidados com o seu ser. A atendente, friamente, disse-me que não podia transferir a ligação para o doutor e que ele estava muito ocupado com outros pacientes mas, acho que fui tão convincente ao choramingar ao telefone que ela não viu outra alternativa a não ser passar a ligação. Ainda a escutei relatando ao doutor quem eu era e o estado em que me encontrava.
-Sim, o que foi? A sua perguntada me pareceu desinteressada.
- Alô, doutor! estou apavorado pois o resultado do meu hemograma apresentou uma contagen absurda nos glóbulos brancos
E após, discorri sobre o valor constatado e ele então argumentou algo que me fez ficar mais angustiado. Me perguntou se eu tinha por hábito manter relações relações sexuais sem o uso da camisinha. Evidente que a insinuação sugeriu a Aids e, eu não usava preservativos pois aquilo me brochava. Mas, a sua dúvida surtiu em mim uma mudança devastadora e, em fração de minutos, deixei de me sentir um leucêmico e me transformei no mais mortal dos aidéticos.
Na época eu estava morando com uma dona. Rita era o nome dela e eu a conhecera na noite, numa espelunca, uma boate no Centro de São Paulo, onde ela era a crooner de um pavoroso conjunto que só tocava boleros. Um pouco mais de conversa e ele se descartou rapidamente de mim e sem que tivesse tempo para comentar os demais valores já que ele alegava que seu turno estava praticamente no fim.
- Sim doutor, está certo! O senhor só volta a consultar no dia 26 à tarde. Está certo. Estarei aí então.- E dito isto desligamos.
Após aqueles momentos angustiantes, tudo pareceu perder o sentido e eu me encontrava perplexo. Fui na cozinha, abri o armário e peguei a garrafa de vodca e enchi o copo.
-Caralho! Será que vou morrer? – eu balbuciava.
E cada vez mais puto da vida, com a minha vida, diga-se de passagem, eu ficava me questionando, andando de um lado pra outro.
-Vagabunda! Só pode ter sido essa vagabunda que me passou a doença! Foi ela sim!
E isso me tornava cabreiro, fodido, um desgraçado querendo se agarrar a qualquer coisa mas que sabia que não havia nada a se apegar. E assim foi durante o resto da tarde, emborcando bebida e estourando meus miolos com dúvidas. Ah, se ela estivesse aqui, nem que fosse pra rir da minha desgraça mas, ela não estava e nem pra isso me servia. E eu estava ansiosos, aguardando a sua volta já que ela fora visitar a sua mae que estava internada no asilo municipal e onde foi levar uns pacotes de bolachas, salgadinhos e uma meia dúzia de maças vermelhas que tanto a velha gostava.
-Cadela! Como pode fazer isso comigo? –
Já era o final tarde quando ouvi o barulho de passos no corredor e o som da chave sendo penetrada no buraco da fechadura. Nós morávamos no 1o andar de uma pensão próxima do Teatro Municipal. Era um prédio antigo, três andares e mal conservado mas o que nosso dinheiro podia pagar.E do quarto, cheirado a mofo, paredes imundas e repleto de roupas entulhadas tínhamos o acesso a outros dois pequenos cômodos; cozinha e banheiro. Tão logo a porta se abriu eu voei pra cima dela.
-Vadia! Você me passou a doença! Você me matou!! Eu gritava, tentando agarrar o seu pescoço. E ouvia o ranger de portas se abrindo no corredor e eram alguns moradores assustados com aquela gritaria toda.
-O que vocês estão xeretando, cambada de idiotas! eu e o álcool berrávamos para eles.
E a Rita, completamente assustada, não sabendo do que se tratava tentava se defender como podia e foi aí que eu senti suas unhas me penetrando o braço e a dor foi intensa.
-Do que você está falando? Está maluco homem? – E me empurrou com força e eu caí sentado no sofá, todo esburacado por brasas de cigarro. Eu já não tinha forças nem dicernimento pra pensar ou tentar qualquer coisa, já que me encontrava razoavelmente embriagado. E só apontava para a folha de papel que calmamente zombava de mim, bem ali na mesinha de centro.
-Você me matou! Você me matou! Por que fez isso comigo?
E então ela pegou o resultado e foi me perguntando o que significava aquilo. E eu, atordoado, um tanto sem coordenação, insistia que ela havia me transmitido a Aids. E a Rita, lia e relia os números da folha e não entendia absolutamente nada mas, a pressão que eu exercia era tanta que ela se desesperou.
-Então nós vamos morrer mozinho? me perguntava, com os olhos já borrados por um filete negro, molhado, que descia pela face, ultrapassava o nariz e morria no canto dos seus lábios. Provavelmente o rimel, pensei.
-Vamos sim, sua vadia! é isso que dá ficar trepando com todo mundo! E limpa essa porra de olho! - eu praguejava
Naquele fim de tarde e início de noite não tivemos vontade de fazer absolutamente nada. Não comemos, não rimos,não conversamos e, só bebemos. Bebemos tudo o que havia e pudesse ser bebido. Por volta da meia noite, tropeçando um por cima do outro, resolvemos dormir.
-Ah mozinho! Será que não existe a possibilidade de haver algum engano? Era ela tentando nos animar.
Eu nada respondi e olhei naquele rosto bonito, nas suas feições cansadas e senti o desejo de possuí-la. Então minha boca cravou na sua e eu senti o seu gosto misturado ao do álcool, enquanto suas mãos ágeis tentavam me desabotoar as calças. Me afoguei no seu abraço, no seu corpo e no resto do seu perfume e, então a penetrei. Penetrei fundo, forte, numa dança desesperada de dois demônios lamentando o perdão que nunca viria e, esse desejo infâme, insano, aliado a amargura nos fez gozar ao mesmo tempo. Tudo terminado, silenciosamente cada um virou pro seu canto e nada mais falamos. Um pouco mais, vencida pelos efeitos do álcool e do cansaço, ela adormeceu.
Eu, evidente, não conseguia dormir e entao pensei na vida. Relembrei das coisas que tive, das que deixei de ter, dos meus erros, dos meus acertos. Lembrei da única filha. Tata, uma linda princesa de 4 anos que deixara junto com a mãe, numa cidadezinha de interior. Me recordei da última vez que estivemos juntos e que nesse dia ela estava feliz, dentro daqueles olhinhos negros, tão vivos, que brilhavam como raios e que não me abandonavam por um minuto. E revivendo, eu podia sentir o amor daquela pequena princesa se esvaindo dentro de mim. E, revivia esse momento como se fosse um magnífico quadro , pincelado por mãos de um Picasso, e o que me fazia acreditar que ainda havia algo de sublime ante tanta desilusão. E ela sorria e no seu jeitinho de menina prodígio, me implorava.
-Ah papai, me leva na praia? A Tata quer ir na praia, papai!
E eu ali, agora, lamentava pelo futuro que não poderia lhe dar, do amor que não poderia compartilhar e, o mais triste, talvez, nem a praia eu tivesse tempo ou condições de leva-la. Acompanhado desses sentimentos tristes e ruins acabei adormecendo. Aqueles dias, em que pese o Natal, não nos trouxeram alegria alguma e, eu já desistira de culpar a Rita e, toda vez que nos olhavamos, só havia tristeza, e era que se nos dissessemos " Pô! você até que era um sujeito legal" e, talvez fosse eu que já estivesse doente e, nesse caso, teria sido eu a contaminá-la. Bom, isso não fazia a menor diferença agora e, só estávamos ali, juntos, compartilhando essa expectativa, calados e unidos. No início da tarde do dia 26 lá estava eu no posto de saúde e aguardei pacienciosamente a minha vez dentre aquela multidão de miseráveis.
E então me chamaram e entrei na saleta do doutor. Ele leu o exame e expressou a sua opinião e, logo depois, ligou para o laboratório e, chegaram a conclusão que o resultado do meu exame era normal e o erro se dera pelo fato do rapaz, responsável pela transcrição, haver invertido umas das linhas o que comprometera totalmente o resultado.
E foi assim que saí de lá. Então eu ouvi a freada e a mulher me xingava enquanto eu lhe dava as costas e seguia em frente e dobrava algumas ruas até chegar a ponto de ônibus e tudo me pareceu estar bem. E eu olhava as pessoas e as achava interessantes. E eu olhava cada rosto, feliz, infeliz, e imaginava quantos problemas haveriam de ter em cada alma daquelas. E o ônibus chegou e no esforço eu consegui entrar e, lá dentro, amassado como folha de papel prestes a ir pro cesto de lixo eu me lembrei da minha princesa e sorri comigo mesmo. As pessoas me olhavam curiosas e o riso, inicialmente tímido foi se tornando sonoro e indiscreto.
-Papai, vamos à praia?
-Vamos sim Tata! E vamos comprar uma bola colorida e um balde com pazinha e muitas estrelinhas para você brincar na areia.
E eu deixava a imaginação fluir e, mesmo ali, espremido, socado, era como se eu pudesse sentir a brisa do oceano me acariciar o rosto. Era como estivesse exalando os aromas do mar e vivenciando o mesmo habitat de todas aquelas exóticas e fantásticas criaturas.
E a sensação era ótima e me senti vivo,outra vez.

terça-feira, 15 de maio de 2007

O susto do gato (Por Matheus Costa)


Os pensamentos flutuavam enquanto ela trancava a porta e saia ligeiramente atrasada para encontrar um bonitinho, mas ainda sem pressa. Mal e mal pensava – eram as idéias que despontavam dos fiapos de sensação. Digo, aquela texturinha saliente na porta, como houvera acontecido? “É a ótica do ouvido”, se dizia e ouvia e repetia, na mesma entonação intelectual a qual escutara noite atrás em um bar café. Não entendera o sentido, mas, impiedosa, a frase deixara-lhe os dentes: martelava-lhe a cuca ali, logo assim que a mente descansou. Happy Hour dos neurônios – riu debochada e seguiu para o elevador.

Mas, não sem antes passar pelo corredor, quando reparou numa garoa fina e saiu do transe.

– Chuva de novo, merda! Espremeu os olhinhos de jabuticaba para confirmar as gotas, mas não houve tempo – no plano de fundo havia um prédio, no prédio havia janelas e em uma delas havia um gato branco –: abstraiu-se novamente.

Um espírito de porco foi o que a conduziu ao devaneio outra vez. Já nem se lembrava do atraso, só queria levantar o gato dali. Queria pois queria, não era ato de salvação, era desejo latente de cruzar a vida do bicho e, quem sabe, causar certa mudança – pura crise de Amelie Poulain. Maldade não era, mas bondade tão pouco podia ser: era o sétimo andar – um fôlego pra cada andar, se é que ele ainda tinha os sete. E se o bichano caísse dali? Ela que não se passasse por desavisada – sei bem que ela ponderou a cena.

Mordiscou e sugou o lábio de baixo, dando um estalinho de desfecho. Aí, puxou os cabelos para trás e olhou para os lados: ninguém a vista, ela podia se divertir. Fitou o gato sentado e parado e ainda sem movimento, paralisou-se também, como uma serpente que se prepara ao bote, e – RÁ! –, gritou abrindo os braços e as pernas em um pulo pra frente. Como diz o outro, nem um piu do gato, que a fitava de volta. E nem se soubesse piar, o atrevido continuava insosso. Reconstitui-se a mulher, fez que não fez nada e, em um girinho, viu que não viram o que ela havia tentado fazer.

Safado, disse quem dos dois sabia dizer, e não se deu por vencida. Fingiu que pegava algo no chão e tomou fôlego e um pouco de distância para tacar. Bicharia é tudo igual e, ora, se a técnica funcionava com pombos, não havia razão para esse bichinho caseiro negá-la. Em gestos largos, projetou a mão esquerda para frente na linha dos seios e a direita para trás e para o alto, ambos os punhos cerrados. Apontou o pé esquerdo para frente e, num raio de movimento, jogou nada no gatinho. Nada obteve, nem esboço de reação do ferrenho animal que nada entendia.

Ah, mas agora a revolta pululava e que se danasse o gatinho que lhe esperava no encontro marcado. Ela faria aquele felino sair da janela, causasse o que causasse, custasse o que custasse. Tomou de mãos trêmulas a chave do apartamento e a meteu na fechadura quase errando de mira, tão nervosa estava. Abriu a porta no empurrão e seguiu em direção ao quarto, deixando escancaradas as portas e a bagunça por onde passava.

Procurava uma bolinha, um pedregulho, uma flecha, um tijolo, mas uma meia de frio enrolada lhe coube bem entre os dedos. Pegou três de uma vez, sabia que força e mira não combinavam bem e que, se dependesse da paciência para voltar e buscar mais, atirava-se ela mesma no infeliz. Nunca alguém havia sido tão indiferente com ela e jamais alguém voltaria a ser. Voltou sem fechar as portas que havia aberto na busca da arma e alinhou a munição uniformemente na sacada: verde musgo, preta e marrom – cores de guerra.
Fez piedade da primeira bala. Atirou-a próximo à janela, de propósito, num surto de receio que lhe deu de machucar aquele pacífico ser. Bola bateu, caiu e quicou, enquanto o gato a olhava paralisado, sem entender o porquê daquilo. Ela, tiritando de raiva, desistiu de dar chance: pegou a bola verde musgo e, sem rodeio, acertou-lhe de uma pedrada só – TUM! E foi assim que acabou o júbilo do bicho branco, que bateu com a cabeça no vidro da janela e voltou para frente, despencando sete andares com a falta de expressão característica dos gatos de pelúcia.


Matheus Costa

.

segunda-feira, 14 de maio de 2007

Um tiro para cima

É tropeçando que as coisas vão andando
Rimas férteis em solo duro e sombrio
Oram por um vento que para outro solo as levem
E vai passando o tempo, e vai passando o brio

Mas ainda assim, com elas vai o sonho
E com o sonho, a esperança de seguir
Tropeço, tropeço, sopra o vento
Sonho, se sou sultão, tu és vizir

Me grita, então, a este ouvido surdo
As ondas sonoras do bater mudo do meu coração
Se eu sou turco, tu serás o curdo
Que me trará o fogo da ira de viver

E como fogo, eu consumirei tudo
E por causa de ti, sonho, eu serei o mais glutão
Sultão morto neste sonho louco e turvo
Me consumirei até não mais ser.

Não mais sendo, serei só sonho
Sonho sonhado, gasto como amor
E não terá vento que sopre a ira deste fogo
Já me consumi, e não mais sou

Sultão
Glutão
Bufão
Fim.

domingo, 13 de maio de 2007

Após jantar com os urubus (Foto de Kevin Carter)


Por Anderson H.

mortos engasgam
com as areias da fome.

"tossem costelas secas
em imagens vivas de horror
e osso a osso elevam rangidos...
(lamentos tribais sem tambor)"

comovidos,
anjinhos de escura cor,
olhos saltados,
pernas finas
e cabeças agigantadas pós barroco,
aparecem embalados nas súplicas.

cada baque oco
arrasta um abutre;
morte com odor - carnes pútridas,
um se desfaz - outro se nutre.

enquanto isso as pirâmides dormem
o sono dos faraós
e o vento deflagra
a verdade quente e magra
pelo continente.

um prato de comida,
parado à minha frente,
muito maior que a fome,
determina que a tevê
seja desligada
e que a raça humana
mude de nome
após jantar com os urubus.

Anderson H.

sábado, 12 de maio de 2007

Ser Humano

Ser Humano
(pelo medíocre Anaconda de Deus)

Mais de 6,6 Bilhões de seres que habitam esse planeta se dizem humanos, mas será que eles são mesmo o que dizem ser?

Vamos ver segundo o dicionário Aurélio a palavra humano, significa: 1.relativo ao homem 2.humanitário, que por sua vez significa: adj. Que ama os seus semelhantes; Humano.

Diga-me agora se estes mesmos seres, têm o direito de ser dizer humanos quando eles próprio se DESTROEM, não se AJUDAM, pior que isso eles se JULGAM uns melhores que os outros, uns mais certo que os outros.
Isso é ser humano? Isso é ser humanitário?


E pior ainda eu escrevendo isso, percebi que eu não faço nada pra ser mais humano, porra, eu nasci eu to aqui e apenas penso em mim, como posso evoluir para ser humano, sem ser humano??
E você já pensou nisso??
Você ser humano??????

Anaconda de Deus

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Sabão por Barro

De água e sabão
Se compõe a ilusão do dia
E com uma varinha mágica
Sopro diversos mundos.

Hermeticamente redondos
Planam pelo espaço
Os persigo
Criando uma órbita
Em que o centro sou eu

Nos perenes segundos
Da minha onipotência
Projeto maravilhado
Minha cara
Na frágil substância

E se dissolve...

Minha imagem e semelhança
Big-bangueando no alheio
Relembrando que há mais
Que vontades apocalípticas.

quinta-feira, 10 de maio de 2007

Convidada: Maria Alzira Brum Lemos

O GATO NA CAIXA

Um de nós foi embora. O domingo é eterno, todas as palavras já foram ditas e eu grito. Procuro dentro um objeto perdido. Maldito objeto. Desde um ponto de vista estou morta. O domingo é eterno, todas as palavras estão por dizer e eu estou muda. Procuro dentro um sujeito perdido. Maldito sujeito. De repente o acaso de uma canção fala em mim a alegria de uma dor normal. O outro nome de um de nós é sentido. Maldito sentido. Desde um ponto de vista estou viva neste domingo eterno e banal.
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A autora escreve no blog La Outra.

"O texto faz referência à Mecânica Quântica, ao chamado "Gato de Schroedinger". O gato está meio vivo e meio morto."

quarta-feira, 9 de maio de 2007

Pastel de Vento


Os fenômenos emergentes da fronteira imaginária que delimitam emoção e razão nos levam a considerar todas as alternativas e subalternativas referentes a este paradigma. Segundo Paul Freeman, tais acontecimentos derivam de fatores extras sensoriais e não corroborariam de um método altamente qualificado e posterior a todos os estudos intrisicamente desapegados ao sistema de múltiplas variantes e constâncias.

Pesquisas comprovam que todo este maniqueísmo ultra-reflexivo referente aos auspícios osculados do simulacro em nada pavimentará os caminhos que levam a discernir a similaridade do que é verdadeiramente falacioso. A dialética enfronhada em casos semânticos nos leva ainda a crer que, passadas várias gerações, a postura emblemática de nossos delatores permanece inadvertidamente alterada.

Para finalizar, desejo ressaltar que o cruzamento de dados horizontalmente canalizados pelo método bifurcativo desenvolvido pelo Dr. Willian Lark em nada afetará as pesquisas já publicadas, pois Lark desconsiderou o fator extraprimordial da causa preludiana ao fenômeno associativo em questão.

Os três incompreensíveis parágrafos iniciais deste artiguelho nada mais são do que um amontoado de frases sem sentido, travestidas em um discurso inteligente. Um exercício na arte de ser verborrágico, de enfeitar o pavão literário, com palavras bonitas, difíceis e, em contrapartida, muito pouco ou nada dizer. Sugiro então o devido cuidado com os discursos empolados. Seu conteúdo em geral é tão encorpado quanto um pastel de vento, daqueles onde se morde muita massa e saboreia-se quase nenhum recheio.

Em tempo: Paul Freeman e Dr. Willian Lark são figuras fictícias.

terça-feira, 8 de maio de 2007

conto infantil

- Papai, o que é um canibal?
- Canibal é uma pessoa que come outra.


tic tac tic tac t


- Papai, Zezinho me disse que a estória da cegonha é tudo mentira.
- É?
- É.
- E a da sementinha? Ele falou alguma coisa?
- Falou não.
- Então, tá.


tic tac tic tac ti


- Papai?
- O que é?!?!?!
- Você e a mamãe...
- Ai, meu deus...
- Você é canibal?

segunda-feira, 7 de maio de 2007

APENAS MAIS UMA ESTÓRIA ROMÂNTICA



Em um desses "agitos" da madrugada, Jéssica já sentia que havia se excedido na bebida. Afinal, misturara um sem-fim de drinks, de cores variadas, de taças variadas, de várias bebidas. Na verdade, ela sabia apenas que bebera muito. O que bebera...? Só um médico legista poderia decifrar.
A alquimia multi colorida já iniciava as suas conseqüências. O estômago parecia uma lava-roupas manca. Dando voltas e pulinhos, não necessariamente nesta ordem. Inevitável foi à ida ao banheiro, onde grande parte do que constava de sua boleta-de-consumo, foi embora contribuir com a poluição de rios e mares pelo mundo afora.
Sua cabeça rodava, e ela se perguntava o porquê daquilo...
Na mesma hora, Arlindo terminava uma dissertação, que defenderia ao final do Doutorado, onde sustentava a tese de que havia dicotomia entre "Amores necessários X Amores contingentes". Filósofo iniciante engendrou-se na complexa relação entre Simone e Sartre, buscando, quiçá, entender-se.
Ele conhecera Jéssica, coincidentemente, ao tempo em que estas mesmas idéias lhe haviam arrebatado a mente. A confusa explicação de amor racional "saltou" das páginas amareladas da biblioteca, indo parar bem em meio àquele encontro nos corredores da Universidade. Ele vinha de um lado, carregado de livros e cópias. Ela vinha do outro, carregada de convites da Festa Universitária, que aconteceria dentro de poucos dias.
Claro que dois corpos caminhando em um mesmo sentido, sob direção contrária, sempre se encontram. A Física Clássica chama isso de interseção de vetores. E , eles se encontraram...
Jéssica, num movimento automático, deu a Arlindo um sorriso de dentes perfeitos, acompanhado do gesto clássico de uma "Casual Promoter", oferecendo um dos inúmeros convites "encalhados" da tal festinha. Arlindo, por sua vez, inapto a receber o papelzinho, já que tinha as mãos irrecorrivelmente ocupadas, pediu que lhe fosse colocado, o convite, no bolso de sua camisa, coerente e convenientemente costurada no lado esquerdo. E, como numa dessas cenas típicas do Cinema do Norte, agradeceram ao mesmo tempo, no mesmo instante em que cada par de olhos encontrou o outro. Um frêmito percorreu cada um deles.
Nos dias que se seguiram, eles não pensavam em outra coisa. E, por conta de não terem trocado nº de telefones, não puderam, sequer, saber se um e se o outro iria, mesmo, ao evento.
Torturaram-se por dias. E, ambos, apareceram pontualmente na entrada do Salão, caprichados em roupas, perfumes e brilho.
A festa...? Normal. Como, aliás, toda festa desse tipo. Jéssica, inclusive, ganhou o ursinho-de-pelúcia sorteado no fim.
Voltaram juntos. De mãos dadas. Uma radiola, de um dos botecos da rua, tocava "As time Goes by". A neblina baixa ajudava a cena. Beijaram-se. Dois pares de mãos percorríam cada corpo. A volúpia crescia, na mesma intensidade em que o desejo de um, e do outro, fazia com que suas consciências se anestesiassem. E, assim, no meio da rua, bailaram a dança do acasalamento do Louva-Deus. Transaram ali mesmo. E, incontroláveis, pouco se importaram com os olhares assustados dos que passavam por ali. Arlindo parecia possuído por uma fome inabalável, de tal forma, que não percebia as mordidas que Jéssica lhe desferia, arrancando nacos de suas bochechas e orelhas. Sangue, suor e saliva misturavam-se. E, ao se aproximarem do orgasmo, misturavam sons que ora pareciam de dor, ora de prazer.
Gozaram. No mesmo instante em que eram algemados pelos policiais, chamados pela platéia , que , embora fizesse caras e bocas de reprovação, exultava intimamente com cada instante observado.
Arlindo foi direto para a Emergência do Hospital, muito ferido pelas mordidas desferidas. Jéssica aguardou-o no Distrito, detida.
A lesão corporal não foi lavrada. Arlindo não tinha interesse na queixa. "Assinaram" um Atentado Violento ao Pudor, coisa que, facilmente, seria resolvida com a doação de algumas Cestas-Básicas.
Voltaram juntos. E foram dormir. Separados. Cada um em sua casa.
Nunca mais se viram.
Jéssica casou-se com um próspero Empresário. Foi morar na área nobre da cidade, bem distante do Campus Universitário. Saía, eventualmente com as amigas; caçava emoções em surdina. Como ontem, mesmo. Aquele porre. Lembram...?
Arlindo casou-se também. Professor, preferira morar nas adjacências da Universidade, onde além das aulas, ficava perto de suas alunas, recém ingressas no curso de Filosofia. Escrevia suas impressões, logo após experimentá-las in loco.
E assim, ambos, viveram felizes para sempre. Amando necessariamente seus pares, mesmo nas contingências de seus desejos.
E assim terminou mais uma estória romântica; humana. Uma estória de bichos humanos; primos-irmãos de todos os outro bichos do Planeta. Uma estória comum. Sem final feliz. Sem finalidade alguma, além de me lembrar de Sartre e Simone. Ou de Simone e Sartre... Por que não...?



Foto in Simone e Sartre passeando em Copacabana, no Rio de Janeiro, em setembro de 1960

domingo, 6 de maio de 2007

A traição

Com a faca na mão ela soltava seus desaforos, dizia aos berros:
_ Ainda mato aquele infeliz, desde que veio morar aqui o desgraçado me trai, um dia hei de cortar seu pescoço e vou ficar olhando o infeliz se debater, ah se vou!
Enfurecida, começou a amolar a faca.
_Como é que consegue fugir para casa da vizinha sem que eu perceba? Ai, que ódio, é hoje que Teteu me paga, hoje irá pagar por todos os insultos que tenho que ouvir, as risadinhas de canto de boca que tenho que suportar, sem falar das reclamações do marido da vizinha. Bem que eu podia deixá-lo morrer nas mãos do Álvaro, bem que ele merecia o prazer de o matar.
Falava consigo enquanto separava os ingredientes para o jantar, descascou uma cebola, duas, e pôs se a picá-las, começou a chorar compulsivamente, não sabia se por Teteu ou pelas cebolas que faziam arder os olhos.
_Trato-te tão bem dando tudo de melhor, tenho cuidados, e até carinho por você, e ainda assim vai para a casa da vizinha, não vou me conformar, te conheço desde pequeno, não deveria se comportar assim!
Saiu para o quintal, com a dita faca, que brilhava de tão afiada, o galo já estava debaixo do balaio, mas Helena não sabia mais se queria matá-lo, era desobediente, trazia-lhe aborrecimentos, mas ainda assim tinha carinho pelo bicho. Com piedade cortou-lhe o pescoço e o serviu ao molho pardo no jantar.



Se quiser ouvir o texto, clique aqui:
http://recantodasletras.uol.com.br/audio.php?cod=3434


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sábado, 5 de maio de 2007

Paris

Minha tarefa diária de apontar todos os lápis é das mais importantes. Apesar do moderno apontador, faço questão de mostrar a arte, esculpindo as pontas com meu canivete vermelho. Estes lápis têm a majestosa função de escrever petições, redigir ofícios, anotar depoimentos, limpar orelhas e rascunhar despachos.
Minha segunda tarefa é a distribuição do jornal sobre a escrivaninha do meu chefe.
Os jornais devem chegar donzelos. Intactos. Responsável que sou, sempre chego antes do chefe pelo menos umas duas ou três horas para dar conta dos meus árduos deveres. Nesta quarta-feira, pelo menos a manchete do jornal li. E mais um pouquinho. Lá no caderno de turismo anunciavam passagens para Paris. Mon Diê. Doze vezes, e ainda assim tá caro!
Paris é como uma virgem na flor da idade. Sonho passear por todos seus cantos. Cheirar suas flores, atravessar suas pontes, caminhar nos seus jardins, sentir as bolhas do champanhe no céu da boca.
Se existe algum lugar com classe, esse lugar tem nome: Paris. Não é necessário subir na torre Eiffel para ficar junto das nuvens e sonhar.
Mona Lisa? Tenho hora marcada com você, seu sorriso é minha alegria. Saímos juntos para um café na calçada coberta com as folhas douradas. Crepe Suzete, baguete, La Fayette, cotonete. O som, ah, o som magnífico: camembér, trotoá, voalá, peti puá. Croassã, chantili, rende vu. Mais um pouco de açúcar, Mona? Na mesa vizinha Voltaire, Sartre, um cavalo branco e Napoleão, na outra o baixinho Lautrec, La Deneuve, Manet e Robespierre. Bonsuá! Saio de braços dados. Todos me cumprimentam. Não é por mim, é por minha encantadora companhia que seduz através do seu olhar emblemático e sorriso enigmático. Ela ajeita o véu, empunha a sombrinha e entramos na charrete. Sem nenhuma palavra margeamos o Sena. O chofer muda a estação do rádio: La vie en rose. Piaf. Ne me quitte pas. Os sinos da catedral de Notre Dame badalam dez vezes.
– Bom jur!
– Que droga, von Silva! Quantas vezes preciso te dizer que odeio quando mexem ou dormem no meu jornal?!
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Imagem da capa do livro, ainda não publicado, que contêm crônicas do von Silva.

sexta-feira, 4 de maio de 2007

Fábula do Fim do Mundo

As eras do planeta Terra se passaram. O homem, principal criatura que o habitava, conseguiu levar sua civilização ao ápice do conhecimento: viagens a outros mundos, aparelhos que transmitiam sons e imagens, por milhares de quilômetros, veículos de terra, mar e ar, encurtavam distâncias, diminuíam o tamanho do mundo. As doenças acabaram; foram debeladas pelo avanço da ciência. Os homens criaram outros homens, à sua imagem e semelhança: de carne e osso, filhos eram escolhidos de acordo com o gosto dos pais; de metal, os empregados e serviçais da humanidade, até uma mulher virtual (para prever o tempo) vivia constantemente a informar como estaria a atmosfera. Plantas e animais extintos foram recriados graças aos estudos aprofundados da genética molecular, a recuperação de biosferas inteiras vinha sendo efetuada há décadas e os resultados estavam começando a surgir... Até a fragilíssima camada de ozônio vinha se fortalecendo ano a ano. Parecia que o Éden perdido fora reencontrado.
Parecia. Entretanto, outros avanços tinham sido feitos. O poder de matar ainda era controlado pelos homens. Ainda existiam países. Ainda haviam ódios. Então, quando estavam quase trazendo de volta o paraíso terrestre, as portas do inferno foram novamente abertas. Continentes inteiros foram dizimados... A luta foi curta, porém sanguinária. O fogo choveu do céu e em duas semanas não havia mais guerra... como também não havia mais países...
Mas houveram sobreviventes. Contra todos terríveis prognósticos calculados pelos velhos senhores da guerra, algumas vidas não foram ceifadas. Ainda restava um lugar intocado. Recomeçar era possível. Ao se darem conta disto, os remanescentes partiram para lá. Era uma ilha fluvial, a maior do planeta, situada quase no centro de um antigo país abaixo da marca que simbolicamente cortava o mundo em norte e sul.
O último barco apressava-se para sair. Estavam lá os que havia logrado chegar até ali, fugindo da fome e das doenças. Para que o embarque fosse autorizado, deveriam estar sãos e fortes. Para futura harmonia, também deveriam estar equivalentes a quantidade de homens e mulheres. Deveriam estar em pares. Sete pares. Seriam os novos povoadores do planeta, os recriadores da vida.
Mas ainda algo a resolver: estavam em quinze pessoas. Sete mulheres, oito homens. Os últimos, acatando o que haviam acordado previamente, lançaram a sorte para saber quem seguiria em frente. Na escolha final, sobraram dois: um rapaz simples, que não sabia muito ainda da vida e um experiente cientista, versado na maioria das ciências conhecidas, qual seria o condenado. Ao ver que lhe restava como adversário somente aquele simplório, o estudioso tomou a dianteira seguindo para o barco, sendo barrado. Indignado reclamou:
- Como ousam tentar barrar alguém como eu ? Conhecedor das antigas ciências, que domina esses conhecimentos em grau maior que qualquer um de vocês ! Não vêem a falta que meu intelecto fará à nova comunidade ?
- É justamente por isso – Explicou o recém empossado chefe da expedição – que você será preterido pelo rapaz... Tens um conhecimento muito maior que o nosso... mas um conhecimento do mundo antigo. Foram estes conhecimentos que nos trouxeram até este ponto. Precisamos reaprender. Juntos, para criarmos um mundo diferente daquele que conhecíamos... Precisamos redescobrir o saber, mas somente o saber que cria, não o que destrói... Adeus.
O cientista observou o barco zarpar... Sentou-se e fez mentalmente os cálculos de quantos dias agüentaria antes de morrer de inanição...

quinta-feira, 3 de maio de 2007

Zé colméia

Quando o destino é servir, pouco importa a quem. Talvez seja algum tipo de sabedoria da natureza, algum know-how ou filosofia disfarçada em atavismo, que faça com que abelhas criadas em diferentes colméias não se insurjam quando postas a servir nova rainha.

Operárias, rainha. Classificações ou analogias que, embora talvez fora de contexto quanto ao que procuram qualificar, são ainda assim reveladoras da mentalidade do ente classificador. Pois sabendo-se que no mundo humano pouquíssimas pessoas reconheceriam majestade em uma criatura que vivesse enclausurada nas profundezas de uma inexpugnável fortaleza, fabricando “produtos” para usufruto alheio – antes enxergando-o como um escravo ou prisioneiro – também o alegre flaneur que pousa de flor em flor a comer e divertir-se, dificilmente combinaria com a imagem que usualmente se faz de um operário.

Ocorre que, para cada “rainha” de colméia, existem milhões de operárias, e isto, por si só, é – no entender de grande parcela do operariado e realeza humanos – distinção suficiente para torná-las em seres “especiais” e “únicos”, ainda que tais termos sejam, a rigor, aplicáveis a tudo que exista no universo da forma como tradicionalmente tem sido concebido em laboratórios, escolas, salas de edição e repartições públicas ao redor do globo.

Em outras palavras, pouco importa se é mérito, sorte, favorecimento social ou herança genética o que alça um indivíduo à sua posição exclusiva dentro do sistema, ou quanta infelicidade o exercício desta lhe cause. O único fator a ser considerado é a quantidade bruta e palpável daqueles aos quais se distingue.

Talvez por instintos ancestrais irreprimíveis, talvez por complexas associações subconscientes ou subliminares com as representações que temos sobre as substâncias minerais às quais atribuímos valor de troca e “brilho próprio”, o fato é que nossa época é pródiga na mimese e síntese de tudo o que aparente possuir um mínimo de real magnificência.

E assim se escolhem e nomeiam os ídolos, sejam eles do futebol, rock, baixinhos, iêiêiê, brega, da cocada preta, branca ou boa...


Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves

quarta-feira, 2 de maio de 2007

Diálogo Insano ( Releitura de Desalmada e Dissimulada) (fotos de Felipe Pereira)

.
Sou lenta.
Aprecio melhor assim
O odor das rosas,
Dos amores, de ti.
.
-Sinto o cheiro de coito
Como animal no cio,
Um misto prazer e frio,
Em meio aos lençóis.
.
Sou lenta de sexo
Pois me convém,
Lentamente, abusar de ti,
Do que é meu.
.
-Me visto de porra
Como mera violentada,
Mas o vestígio no lábio flagra
O meu prazer em te sugar.
.
Vou lenta
Por teus pensamentos,
Roubo teus momentos,
Que já não são teus.
.
-Brigo com teus pelos
Misturados à libido,
Essência alucinógena,

Que me tira os sentidos.






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Violenta e violada,
Tua amante e namorada
Vou lentamente a ti,
Para que me percebas.
.
-Já sinto teu membro,
Em minha língua, preso
E mesmo em sono,
Quero te devorar...
.
Lenta e sorrateira aprisiono-te
E tu sorri, servo e feliz,
Apaixonado e senhor
De minha devassidão.
.
-Sigo assim, abusada...
Sem direito a pausa,
Tomando teus suores,
Engasgada em teus pudores...
.
Na mente amor, na saliva
Um mar de clara de ovo.
Se morrer, partirei feliz,
Pois tive de ti, paixão e insanidade
Que na eternidade, me levaram ao gozo...
.
-Dissimulada, depravada e safada,
Mas, tua dona e muito amada...


.Me Morte