domingo, 22 de novembro de 2015

Destino bipolar


Em alguns momentos, a sorte sorri para mim.

Mas, no momento seguinte, emburrada, franze o cenho, faz bico e me dá as costas.



quinta-feira, 19 de novembro de 2015

O Primeiro

José Hilário havia constituído um pequeno império para si. Na vida política há aproximadamente trinta anos, o atual senador da república não precisava mais trabalhar para viver. Mas seguia no poder, como muitos de seu tipo. Aquela sensação de poder o fazia sentir-se másculo, maiúsculo. Poderoso. Bem quisto por onde passava. Com uma infinidade de regalias, e com advogados do mais alto calibre trabalhando a seu favor, José Hilário iria provavelmente morrer na política – isso era o que ele mesmo pensava, o mesmo para quem o conhecia de perto.
Envolvido em vários escândalos ao longo de sua vida, alguns dos quais já de domínio público – como por exemplo, o das propinas, ou o do desvio de verbas ao longo de mandatos passados - o senador ainda assim podia contar com uma generosa multidão de eleitores em cada eleição, além de seus assessores treinados, que faziam tudo como o senador queria. Já com seus filhos legítimos "feitos na vida", mantendo um casamento de trinta e poucos anos só de fachada, o senador parecia naquela semana querer levar uma vida “mais normal”, sem a tradicional importunação de sempre. Tanto que, sua secretária sabia, seu braço direito também: “o senador José Hilário só tem algum horário em sua agenda para, talvez, semana que vem...”
Logo que chegou ao seu luxuoso apartamento, José Hilário desfez o nó em sua gravata, e preparou para si uma dose generosa de uísque escocês dezoito anos. Atravessou a ampla sala, passou o corredor e foi para a sua suíte, afim de tomar um demorado banho em sua jacuzzi. Não sem antes colocar ao som do home theater de seu quarto a sua coletânea de Frank Sinatra. Agora sim: um banho para deixar o senador pronto para, quem sabe mais tarde, uma de suas amantes novinhas. Olhou em seu Rolex, que mostrava apenas cinco horas da tarde. Quando o senador acionou o botão do controle que abria a cortina automática, com a vista envidraçada de uma Brasília ensolarada se anunciando, subitamente a cortina cessou o seu movimento, deixando apenas uma pequena fresta de sol à mostra. José Hilário estranhou e, ao pegar o controle remoto para repetir o processo, uma voz disse:
- Não adianta tentar.
Na hora José Hilário por pouco não deixou cair o copo que estava na outra mão. Seguido ao susto veio a excitação, e um tremor incontrolável que emanava do corpo do senador.
- O quê?!
- Aqui. – disse a voz.
José Hilário então viu, no canto esquerdo logo ao final da grande cortina, imerso entre sombras, um homem sentado ali em sua poltrona.
- É melhor sem claridade. A que tem assim já é suficiente para eu ver você. É só o que eu preciso...
José Hilário virou a cabeça para a porta, pensou em seu celular “onde estaria?” e julgou tratar-se de um assalto.
- Senta. Aí no canto da cama mesmo. E não tenta nada... – nesta hora José viu brilhar uma pistola automática, no punho do homem sentado; que, além de estar no ponto mais escuro do quarto, trajava roupa preta e o que parecia ser uma balaclava, dificultando ainda mais a tarefa de enxergar o seu rosto. Resignado, apenas obedeceu.
- OK. Você tem o controle da situação. Eu vou te dar tudo o que eu puder de dinheiro. – José virou um gole grande de seu copo de uísque, tentando com isso diminuir a tremedeira. Pensou fingir-se de morto, fingir um enfarte, algo do gênero. Tudo muito rápido. Até seu pensamento ser interrompido pela voz do homem:
- Não estou aqui pelo dinheiro. Estou aqui por você.
- O quê? Como? Quem te mandou? Quem quer me matar? Não pode, isso é coisa do PSDB? Não... Ei, eu te pago o dobro do que te pagaram! – José tentava ganhar tempo e pensar em algo, algo que o livrasse desta situação. Sim, algum rival político havia arquitetado o seu assassinato! Só podia ser.
- Não quero seu dinheiro.
- Como não? Posso te deixar muito rico!
- EI, SILÊNCIO!!! – o homem que seguia sentado empunhando sua pistola gritara pela primeira vez.
- Desculpe, eu...
- CALA A BOCA!
Nisso, José Hilário começou a meio que choramingar, esboçando palavras ininteligíveis, olhando para o seu carpete, e ainda pensando o que ele poderia fazer para defender-se do tal assassino – que, por sua vez, acabara de ajustar um silenciador na ponta de sua arma. Quando José olhou, de canto de olho para o homem, ouviu:
- Olhe para mim agora.
- Desculpe... quem é você?
- Eu sou um representante do EEPR. O senhor conhece?
- EEPR? Hum, é um partido, meu filho? Ai, meu Deus, estou tendo um sopro no meu coração... você já tá me matando fazendo isso, por favor...
- O EEPR, seu José, é a sigla para “Esquadrão de Extermínio Pró Revolução”. Se o senhor nunca ouviu falar, é porque eu e demais membros conseguimos fazer um bom trabalho até aqui.
- O que você quer dizer? É-é um gru-grupo armado? – seu José já gaguejava. Só essa hora o político deu-se por conta que havia um pouco de uísque com a água do gelo em seu copo, o que ele virou sem titubear. “Sim, o copo!” pensou “um arremesso certeiro, em sua cabeça. Aí corro pro botão de alarme, ou me atiro ali, antes que ele comece a atirar...”
- E você, seu José, entre tantos outros, é um dos que vão pagar pelos crimes cometidos ao longo de seus mandatos. Há uma lista, bem grande, e você é o primeiro deles a ir daqui pruma melhor. No seu caso, espero que pruma pior.
- Eu sou ino-no-cente! M-meu advogado pro-provou que...
Nessa hora o homem baixou um pouco a mira da pistola, e acertou o joelho de seu José, que na hora caiu da beira da cama, perdendo sua suposta arma de defesa – o copo, que caiu pro outro lado, na cama. Seu José gritou de dor.
- Aaaiiiiiiii... aiaiaiaiai...
- Eu poderia ficar aqui vociferando contra o senhor, lhe dizendo tudo o que muito brasileiro tem preso na garganta, seu José Hilário, senador da República e tal. Mas não.
- Por favor, vamos conversar... Ai, ai... – José tinha a voz trêmula. O sangue vermelho escuro inundava uma respeitosa área do carpete, outrora claro, do quarto do senador.
- Não somos um grupo de papo. Nada do que eu falar agora vai mudar seu destino, seu José. Esse é o nosso objetivo. É isso. Usar tudo o que eu e meus companheiros aprendemos através de treinamentos, para chegar assim, de surpresa, e por um fim a tudo. E ver o que vai acontecer depois que completarmos nossos alvos. Simples assim.
Nessa hora, seu José, contorcendo-se de dor, tocou sua mão num pé do sapato que havia tirado segundos antes de tudo o que estava acontecendo. Em posição ruim, de bruços, com dois dedos trêmulos, segurou seu sapato para uma medida desesperada, buscando algo diferente, que num improvável milagre o salvasse.
- O senhor tem uma bomba nesse sapato? – perguntou o homem, que seguia sentado no sofá, ofuscado pela escuridão.
– Pois, se não tiver, devo-lhe dizer que sua hora chegou.
- Não, não... eu te-tenho diamantes! Eu... te entrego outros políticos, pe-peixes maiores que eu, eu...
- Seu José, hoje venho em nome do EEPR cumprir minha missão perante o grupo e, especialmente, dizer ao senhor... dizer a você... que eu sou o seu pesadelo. O seu inferno que chegou antes da hora. Você não tem voz nem vez comigo. Eu vou finalizar minha missão, desejando que você sinta dor, muita dor nesses últimos minutos...
- Ahhh, nãããooooo...
Nessa hora, outro tiro atingiu a barriga de José Hilário. Ao som de Frank Sinatra, com o silencioso abafando em muito o volume dos tiros da pistola, José já cuspia sangue em seu carpete. Sua visão já ia ficando turva. Aí, finalmente o homem se levantou, e deu dois passos à frente, deixando um pouco da claridade mostrar seus olhos e nariz. Era um homem grande, de porte. Mas José já não atinava direito. Na busca por alguma coisa que o salvasse, já havia perdido muito sangue, pela barriga, boca e joelho. O homem só baixou a mira, e com um tiro certeiro estourou o crânio de José Hilário.
Guardou sua pistola, e para não pisar na poça de sangue que recém se formara à sua frente, desviou dela, andando sobre a cama king size; deu ainda um chutinho no copo de uísque vazio que se encontrava lá, para deixar o quarto do agora defunto ex-senador, José Hilário.



*****Olá a todos leitores e leitoras que visitam o Bar do Escritor! Esta história tem continuação, e quem quiser conhecê-la, a partir da próxima semana você poderá ler sua continuação no Wattpad. É só entrar lá e me seguir! Obrigado*****

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Pagliaccio

Trata-se de uma deslavada inverdade que eu deteste palhaços. Um equívoco, desconhecimento dos fatos. Gosto inclusive de assistir suas estripulias em programas de televisão e é constante pegar-me em estridentes gargalhadas ao interagir com eles da plateia de um espetáculo circense. Nada contra estes respeitáveis artistas, dignos, a despeito da cara pintada e roupas coloridas. A imprensa exagera a esse respeito. Apenas não quero fazer parte do seu mundo, ser um deles, tenho lá os meus motivos.
Meu incômodo em relação a palhaços iniciou-se no dia em que a Tia Sônia, casmurra professora da turma do jardim de infância, resolveu dividir entre seus pequenos alunos os papéis que cada um desempenharia na festa de encerramento do ano letivo. Eu queira por demais representar um sapo no número musical ambientado em uma floresta, porém, Tia Sônia, mais sorumbática do que nunca, decidiu colocar-me no grupo dos Palhacinhos Dengosos. Reclamei com uma surpreendente polidez para os meus parcos cinco anos e como não consegui convencê-la, terminei por resignar-me, achando que ao explicar o caso à minha mãe tudo ficaria resolvido.
Mamãe já se acostumara com o meu comportamento maduro para a idade. Ela acreditava ser eu um “espírito antigo” desde que fora consultar um pai-de-santo para livrar-me de uma bronquite que nenhum médico da Terra conseguia curar. O pai-de-santo, incorporado por uma entidade que afirmava se chamar “Doutor Marcolini”, médico italiano que habitara Veneza no ápice da Renascença, ao dar de cara comigo abriu um largo sorriso e exclamou.
—  Oh! Você por aqui? Que grande alegria! – e virando para minha mãe disse: — Este já sabe de tudo. Deixe-o tomar as rédeas de sua própria vida. É um espírito muito antigo… Muito antigo…
E receitou um preparado à base de xarope de ameixa e uma série de ervas que em dois tempos deu por encerrada a persistente bronquite que me acompanhava.
Sendo espírito antigo, mamãe deduziu que eu trazia de outras vidas aquele comportamento adulto que eventualmente desabrochava, como no episódio do palhaço. Seria comum na minha idade espernear, armar um berreiro, mas qual? De dentro de minha roupinha vermelha do jardim de infância, tão somente dizia que não queria fazer “papel de palhaço na frente de todo mundo”. Preocupada, a mãe foi ter com a professora.
— Não posso mudar o Marquinhos de grupo agora, Dona Veridiana – protestou a casmurra – Como as outras crianças reagirão? Além do mais, os coleguinhas dele estão adorando a ideia de se fantasiarem de palhaços. Não entendo porque só o seu filho está com esta história. Vamos fazer o seguinte: o Marquinhos ensaia e a senhora diz que ele não vai se apresentar. No dia, lá no teatro, vestido de Palhacinho Dengoso, eu tenho certeza de que ele vai adorar e se divertir como todos os outros. E a senhora vai ficar orgulhosa com os aplausos.
Tia Sônia apelou ainda para o conceito de disciplina e que seria bom para o menino aprender desde cedo que na vida nem sempre podemos fazer tudo o que desejamos.
Mamãe achava que deveria seguir as orientações do “Doutor Marcolini” e deixar-me “tomar as rédeas da própria vida”, mas preferiu não se confrontar com Tia Sônia, lembrando-se que meses atrás eu já havia entrado em contenda com minha primeira mestra ao teimar em não tocar “coquinhos” na banda mirim da escola. Sentia-me ridículo batendo duas meias-esferas de casca de coco seco e sempre que o ensaio se iniciava, pegava na caixa de instrumentos um triângulo de aço. Diante da minha firmeza em não ser um mero tocador de coco, Tia Sônia na oportunidade se deixou dominar pela insubordinação de um moleque de cinco anos, mas desta vez seria diferente. Uma maçã podre dentro de uma caixa poderia contaminar todos os frutos e para tia Sônia não perder o leme de sua turma, eu seria um palhaço.
Os primeiros ensaios revelaram que, mesmo sentindo-me desconfortável, eu era o melhor entre os oito Palhacinhos Dengosos selecionados. Ao som da música tema…
O Palhacinho Dengoso,
Dá três pulinhos assim!
O Palhacinho Dengoso,
Vira os olhinhos assim!
…lá estava eu, virando os meus olhinhos infantis com aplicação espartana, dando três pulinhos e cambalhotas com maestria de um palhaço profissional. Tia Sônia, encantada, decidiu que eu me apresentaria na primeira fila, no centro do palco. Desconfiado, afirmei só estar ensaiando e não iria participar do espetáculo. A professora, livrando-se momentaneamente da sua natureza carrancuda, afagou meus cabelos ruivos e disse:
— Como quiser, meu anjo. Você não vai participar…
A traição rondava a minha própria casa, invadia os corredores, transitava pelos cômodos até chegar ao quarto da minha irmã Natália, dez anos mais velha do que eu e cúmplice do plano de mamãe e Tia Sônia em fazerem de mim um palhaço. Foi de Natália a ideia de comprar uns dois metros de uma imitação de cetim branco com motivos em forma de losangos vermelhos e verdes. Pano não muito caro, contudo de efeito arrebatador. “Maninho vai brilhar no meio daqueles remelentos” – declarava triunfante.
Certo dia, ao chegar do colégio, deparei-me com mamãe e Natália num frenético trabalho de preparo da minha vestimenta de palhaço. Em meio aos seus gritos de entusiasmo diante da obra-prima que julgavam confeccionar, pude, pela primeira vez, ver aquela roupa que iria perseguir-me em pesadelos por anos. Era um simples macacão, parecido com os dos pilotos de corrida, porém com losangos verdes e vermelhos espalhados por todo o seu espaço, tendo o branco como cor predominante ao fundo. As mangas, compridas, eram acompanhadas em toda a sua extensão por uma fileira de guizos que tilintavam enquanto as duas davam os últimos retoques na fantasia. Surpreendidas pela minha chegada, ainda tentaram esconder a roupa. Magoado, resmunguei:
— Já disse que eu não vou me vestir de palhaço!
— Mas a roupa não é para você, Marquinhos,  —  mentiu mamãe. É para o Rogério. A mãe dele não sabe costurar e pediu para eu fazer.
— O Marquinhos tem o mesmo tamanho do Rogério, mãe. Vamos medir a fantasia nele para ver como fica? — perguntou Natália.
E sem que me dessem oportunidade, mediram em mim a roupa que eu ainda guardava pálidas esperanças em realmente pertencer ao Rogério.
No dia da apresentação, um calor infernal assombrou a cidade. Dirigimo-nos, os três, para o teatro onde seria o espetáculo. No táxi eu ainda protestei, dizendo mais uma vez que não iria participar. Mamãe, sorrindo, tranquilizou-me, afirmando que só iríamos assistir, mas a bolsa que minha irmã levava no colo pelo volume denunciava que eu não teria escapatória.
Dentro do camarim, várias crianças eram aprontadas por suas mães, cuidando de suas fantasias como escudeiros zelavam pelas armaduras dos seus cavaleiros. Sem opor resistência, deixei-me vestir e ser maquiado. Na cabeça, recebi uma peruca improvisada com uma meia feminina cujos cabelos em lã vermelha só aumentaram o calor. Nos lábios, um batom que tornou imprestável o sabor do refrigerante a mim oferecido minutos antes da apresentação. Estava vencido, domado, obrigado pela primeira vez em minha curta existência a fazer algo que eu não desejava.
Fomos chamados ao palco. Palmas nos receberam. As cortinas foram abertas. Resignado, encarei o público. Temia a vergonha de me expor diante daqueles desconhecidos, ser ridicularizado pela minha condição, ainda que temporária, de palhaço. Porém, aquele bando de pais e parentes que compunham a audiência pareceu-me amistoso, quase encorajador. Mamãe e maninha, sentadas na primeira fila, aplaudiram freneticamente a nossa entrada.
Um tanto encabulado, corri os olhos pelos meus sete companheiros de jornada. Todos pareciam deslumbrados com a oportunidade de estarem ali. Por um momento pensei ser apenas eu a criatura destoante da atmosfera de alegria a envolver o teatro. De súbito, a introdução da melodia já tão íntima explodiu nos alto-falantes.
O Palhacinho Dengoso, dá três pulinhos assim!
Desviei os olhos da plateia e procurei executar a coreografia ensaiada da melhor maneira possível. O calor por debaixo da vestimenta incomodava, as gostas de suor banhavam o meu rosto e misturavam-se com as rodelas de ruge que circundavam as bochechas. Uma sensação de total abandono me consumia.
O Palhacinho Dengoso, vira os olhinhos assim!
Esta era a parte do número que eu mais detestava. Tínhamos que nos posicionar de frente para o público, pôr as mãos nos joelhos e ao mesmo tempo arregalar nossos olhos e revirá-los. Tia Sônia havia ensaiado aquele momento até a nossa quase exaustão.  Creio que nossa atuação deva ter causado um efeito arrebatador a julgar o “oh” de entusiasmo emitido pelo público. Percebi, em um canto do palco, Tia Sônia com uma expressão de alegria construída no semblante costumeiramente tão sisudo. Em vez de me sentir recompensado, desejei que os minutos corressem, e que tudo aquilo se encaminhasse para o fim.
O Palhacinho Dengoso, dá piruetas assim!
Meus guizos emitiram um estridente som, fruto das minhas piruetas, executadas com maestria. Deus! Como eu queria ir embora!
Por um momento tudo pareceu distante. Já não era eu que ali estava. Meus pensamentos cavalgavam no cérebro desconexos, enquanto o corpo, vazio de emoções, executava o mecânico bailar. Vieram à minha mente as figuras de mamãe e Natália. “Traidoras”, rosnei. O desejo de chorar apoderou-se de mim, contudo, finou-se, sendo substituído por uma poderosa sensação de alívio ao perceber que a apresentação terminara.
Foi então que algo surpreendente aconteceu, moldando para sempre os rumos da minha existência.
Aplausos pipocaram de várias partes do auditório. Longe de serem polidos, levavam consigo a marca do entusiasmo verdadeiro. A plateia havia amado nossa apresentação. Agradecemos com o conhecido aceno que os artistas fazem ao final do espetáculo, mãos dadas, reverência conjunta. A cortina cerrou-se e o público continuou sua manifestação de agrado. Surpreso, eu e meus colegas presenciamos as cortinas serem reabertas e os espectadores levantando-se para aplaudirem de pé! Sugiram os primeiros pedidos de “bis”, que pouco a pouco cambiaram para o desejo quase unânime da plateia. Os acordes de “O Palhacinho Dengoso” foram novamente executados e, quando dei por mim, já estávamos em plena encenação do nosso número sob palmas frenéticas. E eu estava adorando tudo aquilo!
Décadas consumidas por estas lembranças de infância, sentado diante do espelho do meu camarim, chego a rir refletindo sobre as ironias da vida. Não fosse o Palhacinho Dengoso, meu début nos palcos, eu hoje não seria o aclamado cantor lírico Marcos Marcolini, tenor brasileiro de sucesso na Europa. O sobrenome artístico eu tomei emprestado do espírito que mamãe consultara. Em idas posteriores ao centro de umbanda, o próprio Doutor Marcolini revelara ter sido eu um cantor de operetas, seu contemporâneo em Veneza. Afirmava ele que estivéramos juntos “na experiência da carne”. Segundo o médico do outro mundo, eu voltara com o encargo de brilhar através da arte, incumbência que fracassara na vida anterior. Já Marcolini se viu obrigado a dar consultas por séculos até o resgate de suas dívidas contraídas em outras existências. Ainda que duvidasse das crendices cultivadas por mamãe, não desmerecia a boa vontade do médium pelo qual o doutor renascentista se manifestava e considerei justo homenageá-lo usando seu nome.
Apenas um detalhe intrigava os amantes da ópera e a crítica especializada: por que o grande Marcos Marcolini nunca havia interpretado Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo? Diante da dúvida, eu sorria sempre que tal questão brotava em alguma entrevista e, brincando, dizia não estar à altura de representar o personagem imortalizado pelo mito Enrico Caruso para, em seguida, invariavelmente brindar o meu interlocutor com um tostão da famosa ária: “No! Pagliaccio non son, se il viso è pallido, è di vergogna…”

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Gravatas


Não gostava de gravatas. Saía pela manhã cheirando a café, cigarro e mofo, suas baratas e ratos de estimação ficavam na porta, acenando, enquanto passava o ônibus com alguns tripulantes engravatados. Seu olho esquerdo tremia freneticamente ao vê-los de relance, preferia ficar em pé, estático, os dentes acirrados e as mãos suando, geladas. Ficava a planejar numa forma de pôr um fim naquilo tudo. Todos os dias.

Já não enxergava mais as pessoas, eram tudo gravatas. No trabalho, mais gravatas. Gravatas tomando café, coçando o saco, contando piadas, peidando. Gravatas trabalhando na grande máquina sanguessuga, chupando a alma dos pobres diabos que chegavam se arrastando, suplicando menos taxas e juros.

Na rua, gravatas berrando ao telefone, xingando umas às outras, gravatas enfileiradas esperando seu McLanche Feliz, assistindo a um imbecil qualquer na TV, outras em transe, rodeando uma gravata com bíblia na mão.

Não gostava de gravatas. Precisava acabar com aquilo.

Certo dia chegou em casa, atirando a pasta na cama e afrouxando o gola da camisa. Pegou a garrafa e começou a mamar seu bíter, ele queria evitar as palavras de seu falecido pai, mas elas marretavam cada vez mais forte em sua cabeça: "- Filho, espero ainda estar vivo para vê-lo homem, com um bom emprego, de terno e gravata. Um homem sem gravata não deve ser levado a sério. Mulher, traga-me o torresmo!".

Então foi até o fundo do guarda-roupa e a retirou de dentro da caixa de uma sandália da Azaléia. Estava intacta, vermelho-sangue, hipnotizante: a gravata que roubara de seu pai quando este descansava no caixão. Colocou-a, e imediatamente sentiu seu sangue fluir, ferver, pulsando nas veias; sente algo com um soco no estômago e começa a ficar sem ar, debruça-se na mesa e aos poucos vai aliviando, a cada inspiração e expiração. E então se sente bem. Melhor do que nunca.

Sai de casa como se um véu tivesse sido retirado de sua cabeça, tudo é muito claro e já não enxerga somente gravatas. Consegue ver os rostos, analisa-os, sente-se feliz. Uma alegria como há muito não sentia. Passeia sem rumo pela cidade até anoitecer. Então chega em casa e tudo é diferente, senta-se no sofá, a paz reina em sua cabeça. Dorme profundamente.

No dia seguinte foi encontrado morto, dizem que se enforcou com a gravata, que havia ultrapassado a pele de seu pescoço, mas ainda assim sorria. Um sorriso satisfeito de alguém que talvez tenha levado a sério demais o nó da gravata.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

O Outro



Sou outro, outra vez
refletido em um rosto que não reconheço
não sei onde me encontro
não sei qual é o preço
da sanidade que não controlo
da ingenuidade que me consola
da concordância com o mundo
ou da revolta que ainda guardo
há na mente tantos quartos !
Tantas lembranças, tantos fardos
mas vou à luta novamente
erguendo-me da lona
onde atirado estava
no fundo da minha vala
que cavei para me defender
dos assaltos ao coração
da covardia e da traição
da minha própria condenação !
sem defesa e sem juiz
me acuso continuamente
por teimar em ser feliz
por sorrir serenamente
enquanto o caos me consumia
levando os socos ainda sorria
fingindo ser tão poderoso
inatingível e inalcançável

Era outro eu que se valia
da bravura e covardia
que dissimuladamente exibia
Estóico !
era o brado que retumbava
por qualquer lugar que eu passava
Heróico !
feitos meus que não contei
que nem mesmo acreditei
terem sido obras minhas...

Mas isso é passado de um outro
que guardo longe dos olhares
e me acompanha aos lugares
sem ser visto por ninguém...

Mesmo comigo ele insiste
quer provar que ainda existe

quer provar que é alguém