sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Sobre pesos, desenhos infantis, prumo e o Natal


O fim do ano é, para alguns de nós, uma época pesada. Mais do que todos os compromissos, é o peso. Os pesos que acumulamos não apenas ao longo do ano, mas ao longo dos anos.

Não é o peso das contas, das noites de sono perdidas, do excesso de trabalho, do salário que poderia ser maior. Também não é sobre o mês de dezembro e a sua predisposição ao caos e ao desastre, com a confraternização da firma, o amigo-oculto dos amigos, o amigo-oculto da família, o amigo-oculto da turma de 1997, a festa de Natal, a festa de ano novo, as compras, o shopping lotado, as férias, o planejamento das férias. Não é nada disso.

Não é o peso do ano. É o peso dos anos. É o peso de quem foi, do que não foi, do que poderia ser, de quem deveria estar e não está. A virada do calendário traz a renovação e, com ela, vem a análise. Com a análise, as lembranças. O que nos leva ao tal peso.

É nesse ponto que está a origem daquele sentimento de tristeza diante do fim do ano. É disso que os que não estão por aí saltitando felizes como se fossem figurantes de um musical nessa época de festas falam.

Na verdade, não é bem tristeza. É uma melancolia que a gente sente pesando, ainda que nem sempre saiba explicar na hora. Não é ódio ao Natal ou ao Réveillon. Não é trauma por causa de um presente não recebido. Também não é o arroubo de rebeldia do jovem que resolveu desafiar as convenções sociais e não estar feliz nesta época do ano. Esse poderia discutir a concepção de Maria na mesa do jantar ou colocar uma camisa preta no dia 31.

O peso é outra coisa. É o peso legítimo da piada que não foi feita na mesa de jantar, na hora da ceia e que jamais será feita outra vez. Ao menos, não da mesma forma, com o mesmo tom. É o peso dos encontros que sempre parecem despedidas. É o sonho com o rosto que vai se apagando lentamente.

Como borrões. Sim, borrões na memória, no olhar perdido sentado na mesa imensa, ou minúscula, na rede pendurada na varanda no início da noite quente na casa da infância. Borrões das fotos apagadas pelo tempo. Ou pela umidade. Do papel manchado pela água, pelas gotas, derramada, derramadas, ou simplesmente a marca do copo suado.

O peso do fim do ano, das festas, é o peso das lembranças, coisas com as quais nem sempre é possível lidar. Ou sequer se quer lidar.

Acontece que peso pode ser também prumo. E as lembranças uma espécie de quilha sentimental, própria, original. Como pequenos desenhos feitos com as canetinhas do cérebro, como os desenhos infantis, meio tortos, com sóis sorridentes e árvores flutuantes.

E, como os desenhos infantis, são lindos em um contexto muito específico. Depois, viram um envelope guardado na prateleira, um volume que não deixa fechar a gaveta do armário. Um peso.

Até que um dia, sempre chega um dia, se vai, não há mais espaço pra ele. Ao menos, não para todos. E se salva um. Dois, três. Que vão para outros lugares, que são redistribuídos, reordenados, até redescobertos, reorganizados em meio ao caos, não só do ano.

Que possa ser assim com outros envelopes, pastas, com outros pesos. E talvez uma boa hora pra esse dia de faxina possa ser em dezembro.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Desesperança


Haviam começado o namoro há pouco tempo. Sorrisos, bicos, charmes e birras; Apelidos fofos e juras de amor.

Foi quando ele escreveu a carta de despedida, com a certeza de que a entregaria em breve. Sabia até os motivos da separação, tinha tudo anotado, explicado, em palavras friamente selecionadas.

Nunca teve a chance de entregá-la.

sábado, 19 de dezembro de 2015

Sábias Palavras

Arnaldo chegava sempre cedo à faculdade devido ao horário do ônibus. Calouro em seu curso, além de uma pessoa tímida, Arnaldo se habituara a sentar em um banco que dava de frente para um matagal, dentro do próprio campus, para dar ‘aquele tempinho’ antes de sua aula iniciar. Por mais de uma vez, Arnaldo percebera um senhor próximo a ele, fumando calmamente um cigarro, com um semblante de tranquilidade. Arnaldo reparou também que este senhor sempre tinha o maior cuidado em apagar o cigarro e em colocar sua bituca numa pequena caixinha de fósforos. Mesmo parecendo uma pessoa extremamente afável, Arnaldo era muito reservado para puxar uma conversa, além de detestar o cheiro de cigarro.
Com o passar dos dias, Arnaldo foi gostando mais e mais de sentar naquele banquinho. Havia alguns universitários andando por ali, mas ninguém de sua turma. E, volta e meia, aquele senhor estava ali, mantendo o seu ritual tabagista. Arnaldo já havia pensado “Que vício maldito. Ainda bem que não gosto desta porcaria!”. Até que um dia, ao passar por Arnaldo, o senhor disse:
- Boa tarde, meu jovem. Tudo bem com você?
Arnaldo sentiu pelo calor que suas bochechas tinham avermelhado, mas respondeu brevemente:
- Sim, sim.
- Então, não pude deixar de reparar que você faz Administração de Empresas aqui na faculdade. É um curso prestigiado aqui, garoto.
- Sim. Fui o terceiro no vestibular em minha sala.
- Meus parabéns. Qual o seu nome, a propósito?
- Arnaldo, senhor.
- Deixa disso, não me chama de senhor não. Não tem necessidade disso.
- Como posso chama-lo?
- Caio, apenas Caio.
Após o primeiro encontro, a conversa entre os dois começou a fluir. Quase como um ritual, Arnaldo chegava meia hora antes de sua aula e encontrava o seu Caio lá, no mesmo lugar de sempre. Uma das primeiras perguntas feitas por Arnaldo foi esta:
- Seu Caio, por que o senhor sempre vem fumar aqui?
- Bem Arnaldo, venho até aqui pelo espaço verde que está a nossa frente. Venho também, pois, este é o único cigarro que fumo ao longo do dia. Como não gosto de deixar cheiro de nicotina em meu apartamento – e minha senhora, que não fuma, gosta menos ainda – venho até aqui para estar perto do verde, e para ver os jovens chegando neste ambiente universitário.
- Mas... hum...
- O quê? Pode perguntar, sem problemas...
- Já que o senhor só fuma um cigarro por dia, por que não para logo?
- Ótima pergunta, Arnaldo... Bem, já fui um fumante compulsivo por muitos anos, daqueles de fumar um maço e meio por dia. Claro que passei a ter problemas de saúde devido ao vício, e tive que parar.
- E o senhor voltou, então?
- Sim. Mas veja bem. Hoje, consigo ficar sem fumar. Nos finais de semana ou em minhas viagens, por exemplo, nunca fumo. Quando estou aqui na cidade, faço isso como um ritual. Mas faço de cabeça leve, sem me preocupar. Apenas pelo “prazer” em fumar. Acho muito prazeroso, quando se está de bem com a vida, fumar um cigarro para meditar. Fui criado vendo filmes clássicos dos anos 40, com Humphrey Bogart sempre carregando um cigarro no canto de sua boca. E as atrizes, todas elas belas, fumavam também. Hoje está provado por A mais B que o cigarro é muito maléfico à saúde. Como o álcool, as drogas, o sal e o açúcar também são. Não uso droga nenhuma, mas de vez em quando bebo um pouco. Também como sal, com bastante moderação, e gosto de doces, apesar de evita-los ao máximo. Procedo mais ou menos assim com o cigarro.
- Hum... – Arnaldo se despediu de Caio, e refletiu no que seu novo amigo lhe disse. Mesmo tendo uma opinião totalmente contrária ao tabagismo, Arnaldo entendeu o ponto de vista de Caio, e passou a compreender o porquê de ele fumar.
Com o passar dos dias, os bate-papos foram ficando cada vez melhores, e Arnaldo também começou a se abrir mais para Caio e também a perguntar a opinião deste senhor, que parecia saber muito sobre a vida. Com pouca experiência prática na vida, e deparando-se com a correria cotidiana moderna, Arnaldo pensava para si um futuro um pouco melhor que o de seu pai e de sua mãe – ambos trabalhadores dedicados, honestos, mas que pouco fizeram ou conheceram da vida, pois do tanto de dinheiro que acumularam, investiram nele, Arnaldo. Seria isto mesmo que Arnaldo queria da vida?
- Seu Caio, sei lá... Às vezes penso em fazer diferente... Ir para fora do Brasil, viajar por outros países... Mas me parece um sonho distante... Muito aventureiro, sei lá. Não sei se tenho esse perfil...
- Arnaldo, você é bem novo, não? Quantos anos você tem, dezessete, dezoito?
- Fiz dezoito no mês passado.
- Sim... Vejamos. Você pode votar desde os dezesseis. Pode dirigir também; e já está na Faculdade, sinal de que escolheu o seu curso, certo?
- Sim. Tinha dúvidas entre Administração e Ciências da Computação até me decidir.
- Pois, todas estas coisas que você já pode fazer dependem de sua decisão – só o tempo dirá se estas decisões foram certas ou erradas. Para algumas coisas, temos de decidir muito jovens como, por exemplo, escolher o futuro profissional. Muitos ainda não têm certeza do que querem fazer da vida. Quanto a votar, a definição de maioridade não passa de puro oportunismo dos governantes deste país; já dirigir, esta me parece a decisão mais acertada de todas, apesar de que o jovem deve ter muita prudência ao assumir o volante, uma vez que sua vida e a de outros está em jogo. A propósito, não tenho um carro há mais de quinze anos...
Neste momento, um pensamento ligeiro passou pela cabeça de Arnaldo: seria seu Caio um senhor de limitados recursos, talvez apenas sobrevivendo com uma ninharia de aposentadoria do INSS? Mas ele andava bem trajado, tinha classe ao falar...
-... Não que eu não goste de automóveis – completou Caio - Acho-os, na verdade, cada vez mais lindos e modernos.
- O senhor não tem mais condições de dirigir?
- Aparentemente, tenho totais condições. É uma opção de vida mesmo.
- De vida? – Arnaldo parecia não entender, pois ele, agora que dependia de ônibus para ir para cima e para baixo, queria muito ter um carro.
- Sim, de vida, Arnaldo. Isso tem muito a ver com “tomada de decisões” na vida. Meu caso foi que, ao me aposentar, após trinta e poucos anos de trabalho, passei a dar valor a outras coisas da vida; como viajar, por exemplo.
- O senhor já viajou muito?
- Mês que vem estaremos, eu e minha senhora, conhecendo nosso sexagésimo país.
- Puxa... – Arnaldo ficara boquiaberto.
- Como eu ia lhe dizendo, perto da aposentadoria tive alguns problemas de saúde que me ajudaram a refletir na vida que eu levava. Não era, nunca foi uma vida ruim, mas eu apenas a levava: do trabalho para a casa, de casa para o trabalho. Sustentei e dei estudo para três filhos, melhorava a nossa casa aos poucos, a cada três ou quatro anos saía da concessionária com um carro zero... mas não aproveitava a vida. Como neste momento, agora: vendo a natureza, respirando, meditando. Fazendo novos amigos para bater um papo. Não. Eu apenas me dedicava ao trabalho e ao conforto de meus familiares, pois me considerava o provedor, aquela coisa já ultrapassada de que o homem tem de prover os recursos para sua família, etc...
- Sua esposa nunca trabalhou?
- Por minha insistência, não. Que cabeça a minha... Isto quase acabou com a nossa relação, tempos atrás.
- Me desculpe... – disse Arnaldo um tanto constrangido.
- Que é isso, não se desculpe não. Isto serviu para eu mudar de opinião, e hoje levamos uma vida maravilhosa. Ela, a propósito, dá aulas de piano em nosso apartamento todas as tardes, e é muito feliz com isso.
- E os sessenta países?
- Ah, despertei sua curiosidade então, Arnaldo... Bom, isso é bom. Para você que pensa em sair mundão afora, a único conselho que lhe dou é: ouça o seu coração, em primeiro lugar. Veja bem, estou lhe dando este conselho antes mesmo de te dizer das maravilhas que cada viagem me proporcionou, das inúmeras pessoas diferentes que conheci, que conversei, que fiz amizade. Por quê? Pois, especialmente quando se é novo, a gente dá muita importância para o que os outros nos dizem. Geralmente, crescemos condicionados pelos modelos de pensamento que nossos pais, ou que pessoas ao nosso redor nos dão. Comigo foi assim, com minha esposa também... Meus filhos tinham princípios iguaizinhos aos meus e de minha companheira... Mas você precisa, num momento como este, estando junto da natureza, podendo ouvir o som dos pássaros, escutando a água de um riacho correr por entre as pedras, neste momento em que a buzina dos carros e ônibus não desviam a sua atenção, nem as mensagens em seu smartphone te chamam o tempo todo – é nesta hora que você deve tentar ouvir a voz do seu coração. Aí você tem de ser você mesmo Arnaldo, quem você é, e pensar no que você gosta, na sua própria vida e se perguntar: que vida eu quero para mim? O que eu gosto de fazer? O que eu realmente gosto de fazer?
- Entendo...- Arnaldo ouvia Caio de olhos bem abertos.
- Foi me questionando que decidi por viajar, no mínimo, quatro vezes por ano. Sabe que só fui refletir e meditar sobre isso dentro de um quarto de hospital, quando sofri um princípio de enfarte alguns anos atrás. Ainda bem que não era a minha hora, pois se fosse, não teria tido esta chance de começar a conhecer este mundo maravilhoso em que vivemos.
- Uau... Me conte mais... Sobre os países que você foi, ou, sei lá, qual deles você mais gostou... – Arnaldo estava nitidamente impressionado.
- Antes de nossa próxima viagem, vou lhe mostrar minhas caixas de sapato.
- Como assim? – nessa Arnaldo boiou.
- Não vou lhe vender sapatos, não se preocupe não. É que costumamos guardar nossas fotos em caixas de sapatos antigas; prefiro falar e lhe mostrar as fotos de onde estive, para lhe dar ideias de onde poderá, quem sabe, ir também.
- Mas como você vai trazer estas caixas para o campus?
- Não vou. Você é meu convidado para ir até a minha casa, tomar um bom café passado por minha senhora, dona Matilde, e ver minhas fotos. Isto é, claro, se você puder e se quiser, meu jovem.
Arnaldo aceitou o convite de bate-pronto. Então eles marcaram uma data, que seria já na próxima semana, haja vista que Caio e sua esposa Matilde iriam conhecer o deserto da Namíbia, na África, em questão de duas semanas. Arnaldo se sentia motivado de uma maneira diferente, sentindo ao mesmo tempo um friozinho na barriga, mas uma sensação boa, de paz e tranquilidade que o fazia, por momentos, esquecer da pressão do dia-a-dia, do novo trabalho como estagiário, de pegar o busão lotado todo santo dia, dos trabalhos maçantes de faculdade. Repentinamente, parecia que a sua vida tinha outro valor quando ele aplicava estes pensamentos (ou seriam ensinamentos?) a ela. Até onde isto iria, Arnaldo ainda não sabia. Talvez naquelas velhas caixas de sapato, daquele velho senhor que gostava de fumar um cigarrinho ao fim da tarde, estivesse o começo de uma vida nova para Arnaldo, repleta de emoções, aventuras e descobertas por vir...

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Mondrique

Durante a execução do seu número, Mondrique mal se permitia disfarçar a tensão. Ela estava lá, a congestionar-lhe as feições, perturbando sua performance no picadeiro. Havia errado um truque, mas o respeitável público daquela cidade interiorana perdida no mapa brasileiro parecia alheio à apresentação e não notou seu equívoco quando um coelho saiu sorrateiramente da manga de seu smoking no lugar de um baralho com 52 cartas. Coelhos saem da cartola, resmungou o mágico enquanto mirava sua partner, Reginalda, também tensa em virtude dos acontecimentos que em poucas horas iriam se concretizar. Enfiada em um sumário maiô coberto de paetês, Reginalda fazia caras e bocas mal ensaiadas para o pequeno público que fora prestigiar o Gran Circo Continental na falta de melhor entretenimento naquela cloaca de mundo onde viviam.
Não era bem verdade que os espectadores da última noite em que o Gran Circo Continental se apresentaria estavam totalmente displicentes em relação ao espetáculo. Havia alguém, o delegado da cidade, que aplaudia freneticamente cada trejeito de Reginalda. Também pudera. Ela aceitara o convite para permanecer na cidade, tornando-se amante clandestina do agente da lei com casa, comida e um par de trepadas semanais tão logo o circo baixasse suas lonas. Mondrique estava desgostoso. Jurara amor eterno à Reginalda e não esperava tão sórdida traição. Como descobrira? Mais do que mágico, Mondrique era dotado de poderes sobrenaturais e a arte da adivinhação era somente mais um deles.
Poderia fulminar o casal adúltero por intermédio do seu olhar de seca pimenteira. Já havia experimentado em certa ocasião, não com pimenteiras e sim com um vira-lata que ousara avançar em sua canela numa madrugada perdida no tempo quando fora esticar as mesmas depois de uma apresentação em outra cidade. O pobre cãozinho trincou os dentes, estrebuchou e literalmente caiu duro em questão de segundos. O próprio Mondrique espantou-se com tamanho poder e com o tempo aprendeu a controlá-lo e, sobretudo, não o utilizar em contendas ou descontentamentos. E era esse agora o caso.
Maldita clarividência, pensou enquanto agradecia ao público com uma mesura. Despossuído dela sofreria tão somente o momento da perda e não a certeza ansiosa da véspera. De pouca serventia era aquele talento, visto que raras vezes algo de bom para a sua vida ele previra.
Um super homem que ocultava seus super poderes para melhor viver entre os pobres mortais, assim se sentia Mondrique. O povo preferiria as mágicas inocentes. Caso levantasse um cadáver, que pandemônio não causaria! Seria considerado um deus, ou um diabo. Em qualquer dos casos, certamente desgostos e aborrecimentos teria ele aos borbotões.
O pequeno trailer que divida com Reginalda possuía dupla função de dormitório do casal e camarim. Noites de amores ardentes e preparativos para o espetáculo onde Juvêncio se transformava no grande Mondrique, maior mágico do planeta, nas palavras do mestre de cerimônia do circo, aquele apertado trailer havia testemunhado. O nome de fantasia fora chupado e adulterado de um mágico das histórias em quadrinhos ianques. De início sabia que Reginalda por ele nutria um amor sincero, afinal, Mondrique tudo descobria de sentimentos humanos. Um aperto de mão, um abraço, um simples toque em um fio de cabelo ou a intimidade do coito, o mínimo contato corporal e lá estava o mágico roubando os segredos alheios. Com o tempo, aquela faculdade de Mondrique revelou  o tédio da amada, indiferença, desprezo, até culminar pelo interesse de Reginalda pelo delegado e seu projeto de lhe abandonar. Ao menos algum plano para eliminá-lo ou algo parecido Mondrique não captara nos cada vez mais escassos contatos corporais com a futura ex-mulher. Revolta e conformismo acabaram por se digladiar dentro de suas ideias. Que ela fosse, ou melhor: ficasse na cidade.
Quando ele entrou no trailer, Reginalda já lá se encontrava. Retirava a maquiagem. Ela se assustou como uma criança pega em travessura.
– Fez as malas? – ele perguntou.
– Que malas? A gente leva tudo dentro do vagão mesmo – gaguejou a partner sem conseguir disfarçar a surpresa.
– As malas que o puto do delegado passará aqui para pegá-las ou você iria fugir escondida feito um rato que se esgueira pelos esgotos?
Quando Reginalda se foi, Mondrique decidiu que mulher alguma valeria o sacrifício de seu amor. Nunca mais se apegaria a rabos de saia, rachas ou jogos de seduções femininas. Para ele, bastavam agora as quengas das casas de tolerâncias instaladas nos arredores das cidades por onde o Gran Circo Continental aportasse. Haveria até dividendos: a cada toque recebido ou dado em uma mulher da vida já saberia de antemão o que ela pensava a seu respeito. Muitas vezes, interrompia o encontro ou perceber que por ele algumas damas de bordéis sentiam asco enquanto fingidamente gemiam espremidas entre o corpanzil do mágico e os lençóis fedendo a amores clandestinos. Pagava a cafetina e voltava para o seu trailer sem mais explicações. Nessas ocasiões, tornava a resmungar: maldita clarividência.
Certa ocasião, quando o circo estava armado em um lugarejo perdido no sertão nordestino, algo inusitado ocorreu. Mondrique, após o espetáculo onde se utilizou de maneira sutil dos seus reais dotes de levitação, com certo cuidado para que parecesse um mero truque de ilusionismo, sentiu necessidade de uma mulher para se aconchegar. Como sempre, perguntou de forma discreta a algum homem das cercanias onde estava instalada a zona da cidade. Informações tomadas, rumou para o casarão na outra margem do rio. Puteiro das antigas, com ares de cabaré, shows de moças quase peladas rebolando no palco e uísque de má qualidade servido. Nem bem havia se alojado atrás de uma mesa solitária, uma ruiva de vestido curto exibindo coxões alvos e colo sardento explodindo pelo decote acentuado, sentou sem cerimônia ao seu lado.
– Bebe o quê, meu lindo?
– Para mim, uma água tônica. A moça pode pedir o que desejar.
Água tônica naquele tipo de estabelecimento não havia. Contentou-se com um refrigerante. A ruivona, quase um metro e oitenta de carnes bem distribuídas pela silhueta, lhe pareceu simpática, além de sexualmente atraente. Gastaram alguns minutos em conversa pra lá de fiada e Mondrique pagou as bebidas enquanto combinava os honorários por uma hora de serviços na horizontalidade de uma cama. Subiram uma escada em caracol para o segundo andar do prostíbulo onde ficavam os quartos. A ruiva ia à frente, com o traseiro quase esbarrando nas ventas do mágico. No corredor, ela pegou na mão sinistra de Mondrique para guiá-lo até um dos cômodos. Estranheza correu por todo o seu corpo. Não divisou nada após o contato. Que intenções teria aquela mulher? Sua vidência findara? Haveria alguma interferência, um ruído na comunicação parapsicológica? Maldita clarividência que o abandonara, pensou.
Dentro do quarto semelhante a uma cela de convento pela pobreza dos móveis e cabine de navio pela economia de espaço, quis saber a graça da ruiva:
– Gigi.
Toda puta provinciana se chamava Gigi.
– De guerra? – perguntou Mondrique tocando-a de leve na ânsia de descortinar sua verdadeira identidade. Nenhum sinal telepático.
– Claro, lindo. O da pia batismal eu digo só para aquele que me tirar da vida – zombou enquanto mostrava os dentes alvos como o corpo que revelava à medida que o vestido escorria até o chão.
Diante da monumental voluptuosidade que se apresentava à sua frente, Mondrique esqueceu por um tempo as inseguranças dos poderes extra-sensoriais perdidos e se perdeu nos labirintos de Gigi, que dele fez gato, sapato, barba, cabelo e bigode, deixando-o extasiado.
Enquanto o Gran Circo Continental permanecia naquele rincão no fim do mundo, Mondrique quase que diariamente visitava Gigi nos seus aposentos de luxúria. Ela se mostrou receptiva ao mágico, tratando-o com carinho, ternura e muito sexo. Após cada ato consumado, dia após dia, o mágico tentava, através de abraços, beijos e chamegos, conseguir extrair da meretriz algo que revelasse seus verdadeiros sentimentos. O afeto que Gigi demonstrava antes e depois dos entrelaçamentos mundanos eram reais? Maldita dúvida que me assola, resmungava Mondrique.
E ele foi se apaixonando pela marafona do interior, quebrando a promessa que fizera quando da deserção de Reginalda. Com medo de que o dono do circo resolvesse encurtar a temporada na cidade em razão das baixas bilheterias, decidiu usar seus poderes ocultos e incrementar cada vez mais seu número, visando atrair público e manter o picadeiro montado por aquelas bandas.
Foi um tempo em que o Gran Circo Continental vivenciou apresentações memoráveis, desde a já manjada levitação de objetos, alguns dias depois trocados por voluntários que se aventuravam ao sobrevoo sobre a plateia quase esbarrando no alto da lona circense, passando por um extraordinário espetáculo de luzes e fogos que jorravam das mãos energizadas de Mondrique, este tomando as devidas precauções para não ferir um membro da plateia mais entusiasmado.  O ponto alto foi quando ele deu de fazer adivinhações. Desta forma, descobriu que seus poderes telepáticos só com Gigi não funcionavam. Maldito mistério, lamentou.
O circo entupia de gente na esperança de conhecer um futuro melhor após o mágico tocar-lhe as mãos. Contudo, Mondrique assevera que só o passado revelava. O futuro a Deus pertence, repetia prevenido em não se meter em complicações acerca das fofocas locais. Atendia no máximo a meia dúzia de curiosos, revelando nomes de família, doenças de infância, fatos marcantes em suas existências. Do passado, escondia com habilidade qualquer fato embaraçoso daqueles que se dispunham a tomar parte no número.
A fama do mágico correu toda a região e claro que a outra margem do rio não poderia escapar das notícias que um prestidigitador estava fazendo proezas no cirquinho mambembe que por ali aportara. Gigi, que já sabia onde e no que Mondrique labutava, foi em seu dia de folga, acompanhada por um cortejo de quengas, prestigiar o sucesso de seu cliente preferencial. Sentou-se na primeira fila ombreada por suas colegas de profissão, para o escândalo da sociedade local. Mondrique ficou encantado com a visita e no final da apresentação, materializou um ramalhete de flores que ofertou à amada. Ele tinha planos.
– Quer casar comigo, Gigi?
– Tenho que ir com o circo, lindo?
– Na cidade eu fico, mas terás que largar a saliência.
– Aceito então.
Alugaram uma casinha do outro lado da margem do rio. Mondrique dava consultas, passado, presente e futuro. Até pequenas curas fazia. Tudo a preços módicos, mas o suficiente para levarem uma vida confortável. Com o tempo, caravanas começaram a chegar à porta da casa, no intuito de consultarem o vidente agora famoso. Hotéis, restaurantes e lojas de lembrancinhas alavancaram o comércio da região. Até o puteiro onde Gigi trabalhara se beneficiou com o fluxo de turistas. Mondrique tinha alguns aborrecimentos vez por outra. Em inúmeras ocasiões foi preso pela prática de curandeirismo e solto após alguns dias, voltava ao seu ofício de médium. Gigi na verdade se chamava Laurinda. Isso Mondrique, agora rebatizado de Irmão Juvêncio, não adivinhara. Ela mesma, cumprindo promessa, revelara o nome ao marido. O que nunca Juvêncio descobriu foi que Laurinda também possuía os dotes da clarividência. De alguma maneira o contato corporal entre aqueles seres embaralhou o dom do esposo enquanto o dela se manteve intacto. Abominava utilizá-lo. Durante toda infância, de bruxa era chamada pela família e vizinhança. Assim, quando Juvêncio a tocou na noite em que se conheceram, ela já sabia o final dessa história.


Um Ato de Solidariedade


poupe-me da extrema-unção
e de seus planos funerários;
e poupe-se ainda
de pôr algumas moedas
nos meus olhos
para um barqueiro atarefado.

- não sirvo
para tais sacramentos -

mas quando a hora chegar,
basta-me levar ao Monte Kailash
e entregar-me aos urubus
que rapinam presos à Roda
do Samsara.

- e meu corpo será para eles
tal qual um banquete iluminado -

André Espínola

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Eternos milésimos de segundo

Naquela fotografia
                      Ficamos estáticos
                                                 Esperando o mágico
                                                                                  Momento da eternidade
                                                                                   Quando na realidade
                                                 Ele é um pássaro
                      Que tão sarcástico
Nunca pousaria.