sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Convidado: Paulo Lencina

Vinte e três segundos



Sinto tudo rodar. O suor escorre na minha cara, faz os meus olhos arderem, lava o meu corpo-fechado no terreiro da dona Constância. Aqueço saltitando na ponta dos pés. Minha imagem se multiplica nos espelhos que uso para fazer o aquecimento. Fotógrafos, jornalistas e puxa-sacos de todo tipo se acotovelam na porta do vestiário. Nunca me senti tão sozinho. Vou fazer história com o meu cruzado de direita, passar o rodo no fulano, sentar ao lado dos três reis magos: Sugar Ray, Mohammed Ali, George Foreman. O treinador me chama num canto. Repete um montão de baboseiras: cuidado com a canhota do fulano, cuidado para o fulano não te acertar o baço, cuidado para o fulano não te imprensar nas cordas. Cuidado, cuidado, cuidado. Vixi, já enfrentei muita coisa nessa vida: miséria, Febem, meganha. Nunca tive refresco, mas estou aqui, de pé, para fazer o dito-cujo beijar a lona.
O Dão, auxiliar do treinador, observa tudo sem dizer uma palavra. De vez em quando, balança a cabeça em sinal de concordância e passa o pano sujo para tirar o suor da careca. Confio mais nele que no treinador. É um preto velho alagoano, ex-lutador, misto de gordo e forte. Não chegou a conhecer a glória, mas a desgraça volta e meia batia em sua porta. Perdeu quase tudo em cima dos ringues. Perdeu o baço, perdeu a metade dos dentes, perdeu por pontos para a vida. O nocaute técnico veio no fim da carreira: lutava em troca de comida. Até que topou com um conterrâneo de São Luís do Quitunde na subida da Augusta, que o convidou para participar dos telecatches da antiga TV Excelsior. Ganhou uma fantasia prateada, um camarim para dividir com mais oito marmanjos e o direito de distribuir sopapos de mentirinha em quem bem entendesse. Apesar do cachê minguado, estava feliz. Mas a alegria de pobre, sabe como é. Levou um pé na bunda sem mais nem menos. Aí arranjou essa boquinha de auxiliar do treinador. O Dão me viu passando uma descompostura num fulano e me levou para treinar num galpão na Barra Funda. Me deu casa (o próprio galpão), comida, respeito e muita sapecada nos treinamentos. É o pai que eu não tive.
O treinador não pára de fumar. A nuvem espessa formada à sua volta não consegue encobrir o seu nervosismo. Mais parece uma maria-fumaça ziguezagueando de um lado para outro. Ele nem sonhava que eu disputasse o Sul-americano. Decerto imaginou que eu fosse passar a vida toda batendo nos sacos de areia naqueles galpões sujos. Um cara narigudo aparece no vão da porta e avisa: é hora da carneação. A frase tem efeito imediato sobre o treinador, que arregala os olhos e acende um cigarro no outro. É um cagão mesmo. Isso só faz a minha confiança aumentar: vou guindar o fulano dentro da casa dele.
O Dão termina de enfaixar as minhas mãos. Sinto consistência nos punhos e raiva no coração. Calço as luvas e levanto a guarda à altura do rosto. Admiro as minhas mãos encobertas pelas luvas. Uma marretada dessas mói o maxilar de qualquer sujeito. O roupão de cetim vermelho cobre o meu dorso nu. O Dão vai à minha frente abrindo caminho. Ponho as mãos em seu ombro, cabeça protegida pelo capuz, vou pulando para não perder o aquecimento. Mal apareço e a torcida do cara me vaia. Passo pelas cordas, subo no tablado, dou uma volta inteira com os braços erguidos. As luzes escurecem a minha vista. Puta merda, gringo acha que tudo na vida é bróduei. Ainda mais os argentinos. Eles se acham a última coca-cola gelada do deserto. Tiro o roupão, exibo o meu corpo crivado de músculos. Chego a brilhar. Nenhuma pelanca sobrando. Olho para mim mesmo cheio de orgulho. Bato com as duas mãos no meu peito e grito coisas sem sentido. A minha provocação é respondida imediatamente. Vaias, vaias, vaias. O barulho é ensurdecedor. Eles vão ter de engolir os uivos; o fulano, os dentes.
O Dão coloca o banquinho no córner. Me manda sentar. Ele segura a minha cabeça com ambas as mãos, encosta nossas testas. Sinto o seu hálito de café e cigarro. A voz pausada dá conselhos enquanto as suas mãos grossas desferem tapinhas na minha cara.
“Prepara com a canhota e detona com a direita”, ensina, caçando com as pupilas negras possíveis reações no meu rosto. “Faz o gringo sambar. Só não fica parado na frente dele, senão você vira mingau”.
A pálpebra do seu olho esquerdo não pára tremelicar. Efeito colateral dos diretos de direita que recebeu no meio da cara.
“É bater e rodar, bater e rodar, me entende. Não deixa o cara diminuir o espaço”.
Cada alerta correspondia a um tapinha.
O juiz se aproxima, segura o meu queixo com uma das mãos e manda o tirar o excesso de vaselina do meu rosto. O Dão sorri e obedece imediatamente. Mal o cara dá as costas, ele volta a emplastrar o meu supercílio. Malandragem, malandragens. Só sabe quem gastou a vida em cima dos ringues.
O juiz chama os lutadores para o centro do tablado. Coloca frente a frente eu e o fulano. Por alguns instantes, cada um experimenta os seus medos no outro: sangue nos olhos.. Blablablá, blablablá, blablablá. Vou soltar o braço no fulano. Blablablá, blablablá, blábláblá. Vou fazer o fulano gramar. Blablablá, blablablá, blábláblá. Vou ganhar do fulano na casa dele. Blablablá, blablablá, blábláblá. O fulano vai aprender que a rapadura é docinha, mas não é mole, não. Blablablá, blablablá, blablablá: esse juiz fala mais que taxista numa corrida daqui para Itaquera. Depois faz um sinal com as mãos para cada um ir para o seu canto. Uma boazuda dá a volta no ringue segurando a placa do primeiro assalto. Sinto um puta frio na barriga.
Soa o gongo. O cara vem bufando para cima de mim. Acompanho o seu cerco pelo vão da minha guarda, dou dois passos para trás, sinto as cordas comprimirem as minhas costas.
“Faz o gringo sambar”, a voz do Dão lateja na minha cabeça.
Faço um pêndulo, gingo, deixo o fulano a ver navios: fui criado no samba. O dito-cujo não dá refresco. Quer se aproveitar do fato de lutar em casa. Não perde por esperar. Giro no sentido horário. Inverto a passada. Volto ao sentido inicial: o olho do cara posto em cima de mim. Negaceio com a cabeça para um lado e para outro. Tento encaixar a minha canhota, que explode na guarda do fulano. Na seqüência, solto a direita. O cara dá um passo para trás, ela passa no vazio. No contragolpe, ele acerta uma direita na ponta do meu queixo. Durei só vinte e três segundos. Escuridão.
“Bora acordar, chegou o dia da grande decisão do sul-americano, bora acordar”, diz o Dão, ensaiando um sorriso com os poucos dentes que lhe restam na boca. Abro os olhos sonolentos. Sinto tudo rodar.


são paulo, março, dois mil e sete.




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quinta-feira, 30 de agosto de 2007

SE VENS DO LIMBO, INTACTA...por Muryel


Se vens do Limbo, intacta
Reverbera-me Salmos
Os bravios, ó Sereia
(Re) Inspira-me teus alvos

Sê bem vinda, Sirena
Depurada, sonora
Q'em teus cânticos lime
Meus lampejos e trovas

Qual Ligeia, a cristalina
Traz serrana os ardores
Das cantigas serenas
Da nau, da seda, Açores

Cuidar terei mi'a fonte
Ao propor-te (en)cantar
Desventuras, amores
Qual Dinamene ao mar .

.
Muryel
(foto de Herbert James Draper - Ulysses and the Sirens (1909))

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

País



No meu país

Nas entranhas do meu corpo

Me assusto nas curvas

Dos meus pensamentos

No mapa da minha pele

Desenho cada pedaço do meu ser

Cada parada

Um pensamento, um silêncio

Cada caminhada

Uma descoberta do que sou

Nos meus pontos

Sou o o paraíso ou inferno

Amo ou odeio

Vivo ou morro

No meus país

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Simbiose do poente





Coagulado o pensamento tinge


a paisagem cor de carmim


em sangue filhote de navalha




Entre o desmaio e a febre


Ensaio palavras canibais


Imploro:lobotomias,injeções,ópio


Ou qualque outro procedimento radical


que me aborte de mim mesma




Desejo que os pedaços voem estéreis


e brilhantes confundíveis com as estrelas


Decadentes elas transbordam pedidos proibidos


Vomitam víceras passionais


Peço agúa pois já não aguento mais tanta porrada


Mas o hematoma tem minha cor preferida


E assim mais uma vez


Dou minha cara a tapa!




Quis ser amarrada á outro corpo


para compreender o mistério da simbiose


Mas cometi o crime


Da delícia do torpor


e da fragmentação da psicose




Adeus,adeus


Vou parir mais uma prece


Adeus vou voar em labirintos


que minha alma teme e desconhece




A revelação sucedeu-se em uma madrugada histérica


Eu velava meu próprio corpo


aos pés de confortos desorientados


Naquele momento descobri


Que eu não sou eu


Não sou uma


Não sou outra


Nem coisa alguma




O corpo coberto de espinhos


E as rosas doentes flutuando por cima deste


Choravam o milagre da libertação


Eu fazia coro com elas


Chorando por não ser um grito na relva


Ou uma gota de orvalho congelada


Por cavoucar a terra procurando tesouros


e cabeças inchadas de sonhos


até as unhas sangrarem




Por se eclipse


metamorfose


petrificação


vazio e miragem




Por ser o sonho de ser
em um poente do avesso

domingo, 26 de agosto de 2007

Ele & Ela

Ela caiu. Deslizou pela superfície macia e foi parar ao chão depois de uma queda de aproximadamente um metro e setenta. Ele não sabia explicar aquilo. O que teria causado isso? Que motivos levaram-na a cair? Talvez a resposta estivesse em seus pensamentos mais obscuros, os que ele mesmo negava.

Tudo acabou sedimentando a tal ponto que ela caiu: as desilusões, as mágoas, todas foram se acumulando e assim ela se deu a cair. O filme triste a que ele assistiu também fora responsável. Sem contar a solidão, a saudade, o medo, a amargura, a insegurança. Porém nunca lhe ocorrera que ela viesse a cair novamente, não agora que ele jurava de “pé junto” que estava bem. Seria possível que ele até soubesse o real motivo de tudo aquilo, mas não admitiria jamais, nem para si mesmo.

Houve um tempo em que ela caia todos os dias, em certas ocasiões mais de uma vez. Há muito cansou de vê-la. Não havia motivo para espanto - acabou percebendo - mais cedo ou mais tarde ela teria que ir ao chão de novo.

Acabou tentando lembrar os meios que a faziam cair com freqüência. Começou pelo óbvio, as sensações que lhe incomodavam. A aflição, o desconforto, o desprazer, até mesmo a dúvida. Muitas músicas também a faziam cair – recordou-se. Cenas nos jornais, nas ruas, no colégio. Foram vários os momentos que ele a viu, é impossível citar todos.

Antes de dormir pensou mais um pouco, lembrou que também ela caíra em momentos alegres. Sim. Por que só agora ele havia notado? Ela só pode ter caído por isso: alegria. Quando constatou que era verdade viu seus olhos brilhando de felicidade no espelho. Foi então que ela caiu. Deslizou pela superfície macia e foi parar ao chão depois de uma queda de aproximadamente um metro e setenta. Ele, um simples garoto. Ela, uma não mais triste e amarga lágrima.



*sei que alguns gostariam de ler mais sobre o Carteiro, mas não me encontro em minha casa
não tenho meus textos aqui
sinto muito

sábado, 25 de agosto de 2007

GREEN EYES

green eyes


Sentou-se desolada no chão sujo da grande avenida, antes tumultuada pelos transeuntes, e desatou a chorar; chorou de soluçar, evoluindo para um pranto descontrolado e um alarido descomunal, enquanto a chuva molhava seu corpo apático.

Comparava sua vida àquela famosa avenida, onde repousava seu corpo junto ao meio-fio; a minutos atrás, a mais disputada e movimentada, agora, a mais solitária e erma.

Lembrava-se dele com a alma aos frangalhos, sentia seu cheiro, seu pulso, seu membro desfigurando-a desde o alvorecer ao anoitecer, sua língua passeando por sua vulva até arrancar-lhe os sentidos e seu gozo sincronizado ao dele, que lhe causava sempre a sensação de uma pequena e lenta morte. Ah, como desejava aquela morte!

Fechava os olhos marejados de lágrimas e via seu rosto coberto pela barba cerrada, os cabelos longos e principalmente o par de olhos verde bola-de-gude, como ele mesmo os definia, por não possuírem um verde puro e definido. Como amava aqueles olhos! Lembrava-se das promessas dele de que se um dia partisse, deixaria seus olhos de presente.

Desejava-o mais que a própria vida; haviam vivido durante aqueles longos e arrastados anos de amor e violência, a mais pungente obsessão. Separaram-se vez por outra, apenas para recobrarem o relacionamento com um desespero enlouquecedor.

Mas não era só tesão, havia sim, um amor doentio peculiar de suas personalidades exóticas, além de uma cumplicidade patética e febril, não só na cama, mas na vida.
Contudo, tinha a certeza do diagnóstico: era o fim, o verdadeiro e irrefutável fim!
Chegaram as mais profundas raias da loucura, experimentaram tudo: cortaram-se, magoaram-se, machucaram-se, sangraram. Puxou a blusa de lado e observou o sangue estancado do corte de navalha da ultima vez em que fizeram amor, jurou que a marcaria para sempre, mal sabia que sua alma já estava rabiscada há mais tempo!
Na manhã seguinte, foi encontrada gelada e tiritando de frio no chão sujo. Levada para casa, recusava-se a alimentar-se e a doença avançava a passos largos; quanto mais febril e fraca, mais visões lhe apareciam. Amava-o todos os dias no recôndito de sua patologia.

Entretanto, a primavera chegou com toda força varrendo a aridez do inverno e seu corpo parecia reagir junto com o clima- sua mãe dizia que a mudança de estação levava consigo as doenças.

E estava correta em suas sábias palavras, Rebeca ressurgiu das cinzas, tão bela e forte como antes. O moço dos cabelos ao vento era só uma figura do passado, tão longe, tão longe quanto o tempo gélido de outrora.

Na ciranda da vida, conheceu outros homens, outros lugares, apesar de manter seu coração a salvo do desatino da paixão, quando em uma noite, deparou-se com seu algoz- seus pés cambalearam e uma forte pancada irrompeu-lhe o ventre.
Cumprimentou-o e deslizou teatro adentro, na tentativa de furtar-se ao seu olhar perturbador. Mas seus olhos verdes a buscavam por toda parte, incessantemente, até encontrarem os dela.

Saiu correndo antes do término, mas não conseguiu ignorar sua ligação no dia seguinte, nem tampouco, o convite para um jantar, onde prometeu levá-la ao altar, acaso reatassem. Ela também não conseguiu recusar e casaram-se, sem formalidades e delongas, um mês depois.

Agora ele estava frágil e dependente, ao passo que ela demonstrava-se cada vez mais liberta de seus domínios. Longe de seu jugo, sua beleza desabrochava na medida em que ele regredia, sobravam-lhe apenas os belos olhos.

Consumida ainda pela mistura de amor e vingança, conservando os mais puros e devastadores sentimentos à flor da pele, ela desencadeou um tórrido romance com seu cunhado, transavam diuturnamente, intercalando todos os cômodos da casa.

Com a escassez do sexo, a acidez do tato e a indiferença de sua presença, ele foi pouco a pouco enlouquecendo; rapidamente, adquiriu a doença do amor, enclausurou-se em si mesmo e morreu em vida.

Até que um dia, cambaleando e arrastando-se sobre suas frágeis pernas, ele deparou-se com o objeto de sua obsessão sendo violentamente devorada pelo sangue de seu sangue. Chorou ao mesmo tempo em que o semên do outro escorria pela vagina trêmula de sua amada.

Resfolegou, levou seu corpo até o quarto, lançou-se na dureza do solo, castigou sua alma com a recordação de minutos atrás e esquartejou-se com a lâmina afiada da navalha.

No dia seguinte, foi encontrado sem vida junto à cama, nu, ensangüentado, com a adaga a atravessar-lhe o local desenhado à tinta guache escarlate no peito e o par de olhos jazia em uma de suas mãos.

Ela recolheu as pseudo-bolas-de-gude, arrumou suas malas e desapareceu. Dizem os viajantes, que a cada mês, é possível vê-la dançando junto aos cabarés do mundo com dois olhos na mão, cantando uma triste melodia que diz:- os olhos são a candeia do corpo, se teus olhos forem bons, todo o corpo o será, mas se seus olhos forem trevas, quão trevas haverão em ti!

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Nas Entrelinhas Poéticas



Amigos de mesa,

Levantem vossos copos e brindemos! [tim, tim...]


O motivo é a Antologia Algumas Ficções. Com o romance virtual de minha autoria: Nas Entrelinhas Poéticas.


É sobre um casal que se conhece por acaso pela internet. Eles são escritores anônimos que têm em comum a poesia. E por causa de longas conversas em mensagens instantâneas que eles se envolvem em um jogo perigoso de versos e estrofes


Aperitivo:


"... – Olhe para mim. Pense agora que estou sentada e você deitado no meu colo. Passo levemente minhas mãos no seu rosto e começo a te encher de selinhos. Você pode sentir? Ela o provocava.
– Claro!Assim sinto vontade de fazer amor com você!
– Estou dizendo no seu ouvido: meu gatinho, meu amor, meu lindinho, fica comigo!
– Estou arrepiado. Você consegue sentir minhas mãos passeando entre suas coxas?..."


Saidera:


"... Emma entra no MSN, e, não vê ninguém on-line. Apenas encontrou uma sala vazia e triste. Sete horas de espera... ele não apareceu, nem mesmo mandou uma mensagem. Ela estava em um congestionamento de plaquetas que subiam e desciam, sua esperança era resistente. Dava para ouvir o coração da morena do agreste pulsando a dor, estava acelerado, sem freio. Sua inquietação estava transparente, entrava e saia do MSN. Então, decidiu escrever um e-mail para o anjo cafajeste...".


A conta:


Deixe 10% para o garçom:

vendas@editoradeleon.com.br

A autora agradece.

Lena Casas Novas

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

O terrível segredo

Por Thomás - Thorpo

Já tinha 10 anos e achava uma injustiça não poder folhear os livros da biblioteca do avô. Sempre que ia tirar algum da estante, levava bronca de um dos adultos da casa. O que poderia haver ali naquelas páginas de tão perigoso para provocar tal proibição? Seja lá o que fosse, ele iria descobrir. Alzira, a empregada, estava preparando o jantar na cozinha, o avô cochilava em sua poltrona na sala, os pais ainda não tinham chegado do trabalho, nenhum adulto poderia impedi-lo de desvendar o que tanto escondiam dele. Subiu em uma cadeira (o que tornava tudo mais proibido e interessante, já que sua mãe sempre ficava muito brava quando ele fazia isso. Ela dizia que ia estragar o tal do veludo) e alcançou um dos volumes. Abriu em uma página qualquer, que o atraiu imediatamente por apresentar estatísticas, coisa que ele acabara de aprender com a professora particular, e começou a ler:

"Segundo o relatório do Desenvolvimento do Banco Mundial de 1995, o conjunto de países pobres, onde vive 85,2% da população mundial, detém apenas 21,5% do rendimento mundial, enquanto o conjunto dos países ricos, com 14,8% da população mundial, detém 78,5% do rendimento mundial" (...)

As pequenas mãos foram ficando suadas. Ele não conseguia acreditar no que estava lendo. Precisou reler três ou quatro vezes para ter certeza de que não havia confundido os números. Ligeiramente ofegante resolveu continuar a leitura:

"Segundo o Relatório do Desenvolvimento Humano do PNUD relativo a 1999, os 20% da população mundial a viver nos países ricos detinham, em 1997, 86% do produto bruto mundial, enquanto os 20% mais pobres detinham apenas 1%"

Tremendo, cheio de asco e pavor, fechou o maldito livro e o colocou de volta na estante. Então era isso! Esse era o segredo que escondiam dele. Olhou para os móveis imponentes, para o relógio de bolso dourado do avô em cima da mesa, para os enormes tapetes... muito nervoso, caminhou lentamente, com medo de que seus passos fossem ouvidos, até a sala onde seu avô dormia. Nunca tinha percebido como aquela televisão era enorme. A empregada entrou na sala trazendo pratos e talheres. Enquanto ela colocava a mesa ele notou pela primeira vez como aquela sala era ampla e como Alzira era pequena e curvada, como destoava de todo aquele cenário. O olhar cansado que ela dirigiu ao garoto o fez correr até seu quarto. Lá, deitado em sua cama, se encolheu debaixo das cobertas e só conseguia repetir pra si mesmo a preocupação que latejava em sua cabeça: "Quanto tempo mais vamos conseguir sobreviver sem sermos descobertos? E mamãe nem disfarça muito bem, com as jóias e bolsas... papai com aquele carro que o vizinho sorridente disse custar o preço de uma casa de praia. Quanto tempo mais nos deixarão livres? Pra que eu fui desobedecer a todos e ler os livros? Pra que? Era tão bom ser inocente... era tão bom ignorar os crimes de minha família..."

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Madrugada

Oh! Madrugada!
Vejo-te indo embora
Contigo levas o luar

Fica mais um pouco!
Meu peito te implora...
Sabes que tenho medo do sol

Pois, tu escondes meus olhos inchados
dá-me o encanto do luar... Que me basta!
e a penumbra da noite sempre leal

Oh! Madrugada!
Não se vá!
Se eu pudesse o tempo parar!

Calas o som do meu gemido
em meus versos, parece falar comigo
Alivias a dor que esfacela minh’alma
Como quem arranca da carne... Um punhal.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Gira o Mundo





Gira, gira, gira o mundo, e eu
Sem saber... Aonde a roda me levará.
Para conhecer a paz, devo na guerra morrer?
Para meditar no que não voltará jamais,
Devo partir?
Vou caminhar, não devo me iludir com o que encontrar
Na rota louca de não saber aonde ir.


A "Porta do Sol", o vôo de um Homem: Pássaro.
A deixar seu rastro na dimensão de se estar,
Muito além da sombra de algum planeta
Ou do sentido de se empunhar a uma caneta.


Na madrugada sou o que com o vento partiu,
O que a terra engoliu. E na tarde, o encantamento
De poder retornar ao amanhecer.





(Ilustração: desenho de Remedios Varo - Criação de Aves)

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Convidada: Joharis Gonzales (Venezuela)

El fracaso existe;
no se da cuando decepcionas a quien amas,
o al que creyó en ti,
si no a ti mismo.
Cuando traicionas lo que crees,
lo que buscas,
cuando vendes tus sueños.
Ese es el verdadero fracaso

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Naci en Caracas el 18 de junio de 1985. Soy la tercera de cinco hijos, mis padres, Noris Velasquez e Ismael Gonzalez. Escribo poesia desde los 12 años, un poco despues de comenzar a leer habitualmente. Actualmente estudio leyes en la Universidad Santa María, al mismo tiempo que escribo sin parar, ya que mi gran ambición es poderme dedicar a escribir. Tengo alrededor de un año escribiendo en panfletonegro.com, bajo el seudonimo de joharispoesia, unico lugar donde hasta ahora lo he hecho. Me casé el 2 de junio de este año, con Daniel Herrera (publicista-productor de eventos). Un gran hombre que le da sentido a mis escritos, aun sin darse cuenta. Mi email.

domingo, 19 de agosto de 2007

Raízes dos meus anseios.

Quero chorar tudo o que não vivi, quero viver tudo o que não querem.
Quero correr contra o tempo que assassina os bons e ser feliz sem medos.
Quero ser livre como os animais nos campos e sábia como os pássaros nas alturas que nada esperam além de mais azul e vento em suas penas.
Quero a inocência dos loucos, a magia dos amantes, a leveza das ondas.
A certeza de quem não quer o correto em si e sim o melhor para todos.
Quero morrer lembranças, marcas de sonhos e sorrisos, rugas de vida.
Quero ser um pedaço de loucura a incendiar o coração quando for amor.
Quero sexo nos olhos, tesão na carne, febre no pensamento, delírio todos os meses, fluxo de desejo.
Quero ser tantas e ser simples na esfera mundo de meu reino, sem majestades.
Quero ser criança sem medo de ser adulta, adulta sem vergonha de ser moleca.
Quero existir sem medo de desistir, de retornar, de amar sem disfarces.
Quero flutuar na abóbada dos meus versos carnívoros, vegetais palavras a perfurarem-me a pele e entranharem no submundo de minhas fantasias.
Quero destruir correntes e ser contas de terços, orações permanentes de quem não quer parar.
Esquecer feridas, perdoar quantas vezes forem necessárias e sentir no peito a felicidade de manter a pureza.
Quero a liberdade das borboletas, a fragilidade dos beija-flores, a continuidade dos carvalhos.
A paz de ser inteira onde há fragmentos dos que buscam o mesmo caminho. Complemento e luminosidade aos cegos. Paisagem sem nevoeiros.
Quero o tempo pousado aos meus pés e o tremor de minhas mãos a tocá-lo, na convicção de que viver é acontecer da maneira que melhor caiba a cada um.
Quero a vida sem complicações, apenas a minha vida, sem embaraços.
Preciso da lucidez para embriagar-me na beleza de quem sabe o futuro, passo do hoje.
Quero voar!

Eliane Alcântara.

sábado, 18 de agosto de 2007

SEGURO E FELIZ

.

Seguro e feliz.
Assim me sinto, assim sempre foi.
Quente e protegido na úmida escuridão rubra.
Ruídos distantes e familiares acariciam meus ouvidos.
Ouço o insistente som do tambor.
A paz é velha conhecida, e sempre bem-vinda.

De repente, sinto algo diferente.
Algo novo.
Uma estranha força me puxa, tentando me tirar da segurança.
Tentando me arrancar da morna paz.
Luto para impedir, mas é mais forte que eu.
O frio é acompanhado de ruídos estranhos.
Sinto uma perda angustiante.
O som do tambor sumiu.

Cores nunca vistas dançam desordenadas.
O líquido quente de meus pulmões é violentamente substituído pelo frio desconhecido.
Nada entendo, mas posso vislumbrar uma luz intensa.
Quero tocá-la. Grito. Choro.
Estico desajeitado os pequenos braços.
A luz me pega no colo e me aquece.
A luz sorri, e o som do tambor novamente eu ouço.
Estou bem de novo.
Seguro e feliz.

.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Eu Sou Eu


Eu sou eu.
E juntamente com milhões de outros eu's
Torno-me uno e indivisível.

Tem um que vive bêbado pelos cantos da sala,
Seja segunda, terça, quarta...
Não importa!
Ele apenas se embriaga com um elixir amargo,
Num copo de vidro rachado,
Que ao menor toque se quebra,
E o faz viver nesse mundo, sua quimera.

Tem um que não faz nada, apenas dorme.
Como se todo sono do mundo
Estivesse nele guardado,
O relógio que grita, às sete da manhã,
Não o acorda, pois acorda outro,
Que não dorme, apenas trabalha,
Dia, no escritório, noite, no sono insone.

Tem um eu engraçado, metido a palhaço,
Daqueles que se ri de tudo,
De um gracejo sem graça,
Ou de uma queda de avião,
Quando vê na televisão,
Os corpos carbonizados na mata.
Quem chora é o outro, que só tem nos olhos lágrimas.

O chorão vive com o semblante cansado,
Perambula sempre pelas ruas e esquinas
Dos meus órgãos e células, cabisbaixo,
E se entristece ao pisar numa formiga,
E, em sua sensibilidade entorpecida,
Se enternece ao ver nas nuvens o arrebol,
Queimadas, tal qual os corpos, pelo pôr-do-sol.

Tem um que é sonhador, poeta, suicida,
Que se mata várias vezes num mesmo dia,
E renasce frustrado das suas cinzas,
Tal qual uma Fênix que maldiz seu destino,
E inveja de longe uma ave de rapina,
Que vive uma única vez
E conhece o prazer real da verdadeira morte.

Tem um vagabundo, apaixonado, analfabeto,
Culto e também um crente,
Que vive na Igreja e por isso se acha decente,
Tem um que é médico - burro e incompetente -
Um advogado que advoga a si mesmo
E sempre sai perdendo,
Além de um administrador mal sucedido e falido.

E é assim que, na minha pluralidade,
Eu sou eu.
Juntamente com outros milhões de eu's
Que me tornam uno e indivisível.

André Espínola

A última canção da "crooner".


Era um serviço filha da puta que quase me esfolava vivo e praticamente nada deixava para ninguém. Nessa época de raros empregos, eu me sujeitara a um serviço de amassador de papelão e foi o melhor que pudera encontrar ao ler os classficados. E circundando com a caneta o anúncio que oferecia a vaga de "compactador de celulose" eu me perguntava que merda poderia ser aquela. E era nisso que eu pensava a caminho da entrevista, já que as coisas estavam difíceis e eu não queria passar fome e nem ser despejado do quarto onde morava. E assim lá estava eu naquele serviço de 10 horas diárias, com 60 minutos de intervalo para o almoço e onde eu pegava às 8 da manhã e largava as 6 da tarde. Nos faz bem acreditar que a sorte não nos abandona e assim eu fora o grande "sortudo", o bam bam bam entre os mais de 30 candidatos que apareceram pra preencher a vaga daquele serviço. Eu eu imaginava que fora o escolhido por me mostrar profundamente desinteressado por aquilo tudo e, isso, de alguma forma, deve tê-los impressionado. E ainda mais por se levar em consideração que em alguns serviços, eles não se ligam em gente que possa parecer esperta demais, falante demais e então escolhem alguém que julgam ser mais fácil de manobrar. E foi assim que virei um amassador de papelões. Nesse setor, estávamos em 10 funcionários e ficávamos socando com os pés centenas de quilos de papelão e ao cabo disso revisávamos e amarrávamos os fardos que deveriam pesar exatamente 100 quilos cada. No fim do dia, nossas pernas e pés estavam dormentes e praticamente não sentíamos mais nada ao pisarmos naquele mundo de papelões. E cada vez que achávamos que não havia mais nada a ser pisado lá vinham eles e despejavam novas montanhas. Chegadas, desamarrávamos os fardos e procedíamos à vistoria em cada uma de suas folhas e retirávamos as partes que estavam com problemas, como manchas de óleo, ou o apodrecimento pela umidade e novamente fazíamos do peso dos nossos corpos e dos nossos pulos os agentes necessários para compactá-los, amarrá-los e pesá-los para serem reencaminhados à fábrica de celulose.
Às 6 da tarde, pontualmente, tocava a sirene que nos avisava que mais um dia de escravidão chegara ao fim e nós, os caras das pernas fodidas, rumávamos para o vestiário e nos livrávamos dos suados uniformes cinza-escuro. E, embaixo do chuveiro é que o corpo voltava à realidade e ao contato do jato de água as pernas reviviam e então vinha a dor que se iniciava logo abaixo da linha da cintura e se estendia até os dedos dos pés. E assim eram os nossos dias e, de interessante mesmo, só a voluptosa secretária do sr. Carlos. Janice era o nome. Uma garota de uns 25 anos, loira, linda e dona de um rabo sensacional e que adorava cruzar as pernas e nos deixar ver a forma perfeita na textura da sua pele rósea e suave. Ela sabia que nos excitava e parecia se divertir com isso e eu não sabia dizer o motivo mas tudo indicava que ela ia com a minha cara e era comum fragrá-la me observando na fila do relógio de ponto ou nos dias de pagamento. E, mesmo, achando que ela me dava uma certa bola nunca fomos além dos sorrisos que davamos toda vez que nossos caminhos se cruzavam. Havia também o seu noivo e o terno de ombros quadrados que pontualmente as 6 da tarde estavam por lá, acompanhados do seu sorriso falso e do Monza 86. Eu não podia me definir como um homem bonito e não o era. E, talvez, os lábios grossos, os olhos escuros e as pernas fortes e musculosas fossem os meus melhores e mais interessantes predicados. E assim, saindo da firma, lá ia eu para o ponto de ônibus e não foram poucas às vezes que dentro dele, amarrotado, acabei me excitando ao encostar no rabo daquelas meninas gostosas. Não que o fizesse deliberadamente e por sacanagem, mas era gente demais te espremendo que por vezes se tornava inevitável o contato, principalmente naquele horário, já que o ônibus ficava abarrotado por garotas que trabalhavam numa fábrica de confecções, próxima ao meu serviço. Ao descer, caminhava umas 7 quadras até em minha casa, se é que poderia ser chamado de casa um cômodo de quarto-cozinha, imundo, localizado numa fétida viela no bairro do Braz. Chegando, ainda com as pernas latejando, eu pouco tinha a fazer se não fosse beber a minha vodca barata, matar o tempo e esperar a Rita. E ela, ao chegar em casa, onvariavelmente me pegava meio alto e então as brigas começavam:
-Mas que merda! todo dia tem que ser assim? ela vociferava e ao qual eu contra atacava:
-Você pensa que eu não sei? Imaginava que eu não sei que você fica se esfregando naqueles “engomadinhos” pervertidos?-
Eu era mais contundente e então gritava e gesticulava mais puro exibicionismo de um ciúmes doentio. E aquelas brigas eram constantes o que tornava insuportável a nossa convivência, afinal, ela, cedera à minha obstinada persuação e abandonara o seu trabalho de crooner e arrumara um serviço durante o dia num dos salões de dança em uma das ruas do centro da cidade. Na verdade, era uma casa de dança onde os homens compravam suas fichas e escolhiam a moça com a qual preferiam dançar.
-Ah mozinho! Deixa, vá? – E assim, também dui persuadido e ela aceitou o serviço já que o meu salário só cobria para o aluguel e algumas pequenas despesas de casa. E a Rita, vaidosa e bonita, gostava, vez ou outra de ter suas calcinhas e sutiãs novos. Após comvencido ela iniciou assim no Club Cartolas. Mas o pior estava por acontecer e com o passar dos meses, a situação ficava cada vez mais caótica e ela dera de chegar em casa cada vez mais tarde e aquilo me deixava puto da vida, apesar dela alegar que os clientes eram tantos que a dona do clube passou a exigir que elas fizessem horas extras. A princípio eu aceitei a argumentação mas como todo dia era a mesma coisa comecei a desconfiar e, assim lá estava eu, distante algumas quadras de casa e saia do bar onde fora comprar cigarros, quando vi estacionar um Mustang vermelho e dentro estava uma pessoa que eu conhecia muito bem. O carro parou e eu atravessei a rua para que não me vissem e então o rapaz virou-se para a bela jovem e a beijou. O beijo foi apaixonado e a jovem correspondia bastante e o seu corpo se espremia ao encontro do jovem rico. Antes que terminassem as carícias e mandei dali e retornei pra casa.
Passaram-se uns 40 minutos e Rita chegou e me encontrou sentado no esburacado sofá.
-Oras! Não está bebendo hoje por que mozinho? E alegremente se dirigiu ao banheiro. Pouco depois eu ouvia o som da descarga e ela saia de lá mais radiante do que entrara. Olhando-a, percebí em seu pescoço um grosso cordão de ouro com uma medalha de São Judas Tadeu, seu santo de devoção. Ela percebera que eu notara.
Ah mozinho, olha que bonito o que eu ganhei da dona do clube! – E dito isso tentou me convencer que a proprietária do Cartolas havia lhe dado de presente como prêmio do seu esforço e por ser a garota mais requisitada para as sessões de dança. E seus olhos brilhavam ao comentar o fato e ali eu senti alguma coisa se quebrando em mim e quanto mais ela falava sobre o assunto mais me doia. E ela entusiasmada não parava e me contava o quanto era requisitada e que isso, provavelmente, se devia a sua facilidade em trabalhar com toda espécie de rítimos.E ela falava, falava e ao ver que nada respondia resolver se calar. Naquela noite fez o jantar e eu não senti fome e nem vontade de beber e ela estranhou o fato de eu estar calado:
-Que bicho te mordeu mozinho? – E eu só a olhava e ela demonstrava estar incomodada com a minha atitude. Nessa noite ela quis fazer amor comigo e, tentou de todas as formas me excitar, me estimular e nada aconteceu e então se deu por vencida e não mais insistiu. Esperei-a pegar no sono e então levei a sua bolsa para o banheiro e sentado na privada vasculhei o seu conteúdo. Bingo! Encontrara o que estava procurando e um pequeno estojo com a marca de uma joalheria surgiu numa de suas repartições e junto se encontrava um cartão –
“Para a minha adorável e sensual Rita como prova do meu amor”
Do seu, Roberto.

Rita acabava de acordar e o relógio marcava 7 horas da manhã e ficou surpresa ao me ver sentado no sofá
-Ué! Não foi trabalhar por que mozinho? E como eu nada respondia se dirigiu até mim para verificar o que estava acontecendo e então viu a sua bolsa aberta e um cartão na minha mão.
-Está certo Rita! Eu sabia que isso iria um dia acontecer, mais cedo ou mais tarde.- sabia que tinha me partido ao meio. Tentou ainda argumentar que o presente fora dado por um senhor que mantinha alguma esperança mas que, longe disso, não passava de um mero cliente e que ela não tinha qualquer intenção de corresponder com velhote. Eu achei por bem não lhe jogar na cara o que eu tinha visto na tarde anterior pois seria humilhante e constrangedor para ambos.
-Rita, estamos nos separando. Está tudo terminado- disse eu com ar enfadonho e procurando não demonstrar qualquer emoção. Ela tentou argumentar que eu estava me precipitando mas, eu estava irredutível que ao fim de uma hora de conversa chegamos à conclusão que seria melhor ela ir morar com uma colega de serviço. Saiu e voltou após 10 minutos e confirmou;
-Está tudo certo. liguei para Vera e ela tem um lugar disponível na casa dela e estou indo pra lá, agora.- E então eu a vi arrumar as suas roupas. Vi as roupas espalharem-se pela cama e ela enfiar as lindas calcinhas , as quais tanto gostava, dentro daquela mala de couro e aos poucos as suas roupas foram desaparecendo do guarda roupa. Por fim foi a banheiro e escutei o barulho de vidros se chocando. Esmaltes, imaginei. E tudo providenciado, não trocamos uma palavra sequer e os nossos olhares estavam tristes. É estranho como numa situação dessa nos sentimos impotentes e, mesmo, nesse caso, no inicio parece algo de irreal, que as coisas vão se esclarecer, que haverão explicações que nos façam entender e aceitar. Bem, isso é o que gostamos de acreditar mas com o passar das horas um sentimento filha da puta de ruim nos domina e então sacramentamos qualquer impossibilidade de aceitar qualquer outra definição que não seja separação. Antes de sair me perguntou se eu tinha um pouco de dinheiro, pois necessitaria para pagar o táxi. Eu tinha umas pequenas notas e lhe dei e fiquei com alguns trocados no bolso.
-Mozinho, eu sempre vou te amar. Nunca se esqueça disso!- e chorando, cantarolou uma canção de amor antes de entrar no veículo
E então ela partiu e duas lágrimas brotaram dos meus olhos e ecoava dentro de mim a última frase da sua canção - " O meu amor, é um amor sem fim" - E eu sentia agora, longe da sua presença, o quanto isso doia. Olhei para o céu e grandes nuvens cinzas anunciavam que tempo ficaria ruim e uma rajada de vento gélido me ardeu no rosto e então entrei em casa e fiquei pensando como poderia ser a minha vida a partir daquele ponto. E fiquei lá, pensando sem chegar a conclusão alguma e aquilo foi me sufocando e eu precisava sair daquele lugar. E eu sabia que havia um mundo real me esperando lá fora. Havia todo tipo de gente desesperada, andando que nem barata tonta, sem saber pra onde ou o que fazer. Sabia que havia gente feliz, orgulhosa dos seu gordos salários, das suas mulheres maquiadas, patéticas, desfilando carros novos em ruas esburacadas. Eu sabia que havia todo o jogo do poder e da esperança, do forte se sobrepondo ao fraco, do rico fodendo o pobre e tudo tão obvio e tão certeiro como o aluguel no fim do mês. E eu exalei o cheiro da umidade e a infalível certeza que teria que agüentar o tranco nessa merda toda. E, não suportando mais estar ali comigo e com esses pensamentos, sai e caminhei pelo estreito corredor que abrigava os cômodos do cortiço e discreto acenei para um dos moradores que entrava. Não havia mais nada a fazer e então me passou pela cabeça que deveria ir numa igreja e me sentar num de seus bancos e acreditar que alguém pudesse fazer alguma por mim. E eu estava tão desesperançado que não tinha certeza que houvesse algo mais a ser feito. E confuso deixei para trás o enferrujado portão e segui em frente e o mundo me pareceu sem a menor importância . Na sexta esquina atravessei o farol e do outro lado da rua me aguardava um desgraçado. Era visivelmente agressivo a parte dos membros que lhe faltava, profundamente deprimente ver aquele espectro de gente rastejando pelas calçadas, implorando por um pedaço de pão e por um pouco de dignidade. Parei e o olhei do alto da minha infelicidade e das poucas moedas que eu tinha lhe joguei algumas e então o seu rosto se ergueu e os olhos sofridos me sorriram numa espécie de agradecimento. E seguindo em frente a caminho da igreja eu pensei no ser grotesco, pensei em Deus, revivi em mim e aquilo me amargurou. Talvez Deus não estivesse no melhor de seus dias. Talvez ele estivesse de saco cheio de nossas lamúrias, nossas reivindicações e de sempre querermos ser os melhores, a qualquer preço e, então avaliei a possibilidade dêle me questionar:
- O que você quer para sejas feliz? A falta de um par de pernas?
E esse pensamento teve um efeito devastador em mim e, se eu nao era a craitura mais feliz, também não era o maior dos desgraçados. E lá, de onde eu estava, já avistava a cruz no alto da igreja e enão a situação me pareceu patética e ao atravessar a rua eu mudara de planos e então entrei num bar.
- Uma dose de vódca, por favor.
Fui servido e brindei a Rita e ao seu novo destino e, mesmo ainda que doesse, eu torcia por ela. Ao terminar, bati o copo no balcão e o som fez despertar o desinteressado senhor que se encontrava do outro lado e ele então sorriu. Foi um sorriso nervoso e senti o seu ar de espanto quando novamente bati o copo no tampo de mármore:
- À Rita!
Deixei o copo inerte e joguei as notas em cima do balcão e me dirigi à porta de saída e dois olhos curiosos me seguiram. Ao sair, esbarrei num bêbado e o seu estado era lastimável e suas roupas fediam a carniça. Talvez não houvesse mais nada para êle por aqui. Talvez o todo poderoso, cansado, houvesse desistido dele também. Talvez, talvez, sempre haverá um talvez. Pensei nisso por instantes e seguindo em frente eu alcancei o farol e o mísero não mais se encontrava por lá. Aguardei o sinal verde e o atravessei. Eu voltava para casa e pra alguma dose queme aguardava tranquila no fundo da garrafa de vódca.

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

O mestre e a busca pela sabedoria (por Mago Eremita)

.
Foram dias e dias de uma escalada perigosa, de abrir trilhas, de consultar mapas - mas finalmente ele alcançou o Mestre no topo da montanha.

A região inóspita abrigava um monolito gigantesco - o verdadeiro cume da cordilheira. Lá estava sentado o ancião, em típica posição de lótus.

-Mestre! - exclamou ofegante o recém-chegado.

O Mestre, naturalmente, sequer moveu-se.

O viajante aproximou-se mais. O ancião tinha longas e mal cuidadas barbas, cãs caindo sobre as finas espáduas. Era raquítico e encarquilhado. E tinha ares de pouquíssimos amigos.

-Preciso da tua ajuda, ó Mestre!

-Senta. - respondeu o velho secamente, abrindo agora os olhos. E, imóvel, olhando-o de esguelha, continuou:

-Que buscas?

O recém-chegado disparou a tagarelar, eufórico, mordiscando a língua, gesticulando como louco, atropelando as sílabas e lançando cusparadas irritantes por todos os lados.

-Tenho sede e fome de sabedoria! - concluiu, tomando fôlego após a longa e disparatada sessão de palrice.

O Mestre tomou uma pequena trouxa. E dela retirou uma garrafa de Coca-Cola.

-Toma! Bebe!

Antes que o recém-chegado pudesse soltar qualquer asnice, o Mestre estendeu-lhe, na sequência, um delicioso e fumegante Big-Mac.

-Toma! Come!

-Mas... Mestre! - balbuciou decepcionado o exausto e faminto viajante.

O lanche estava com um excelente aspecto: alface, cebola, cheddar e o típico gergelim salpicado na sua abóbada. E o refrigerante! Uma verdadeira tentação, com suas malditas borbulhas de gás.

O viajante não resistiu. Devorou aquele sanduíche com dentadas vorazes, e tomou em goladas medonhas o delicioso líquido gaseificado. E nunca, nunca em toda sua medíocre vida, sentiu-se tão plenamente saciado!

Na sua parca estatura espiritual, descobriu que lhe bastava a saciedade crua e rasa proporcionada por aquele hambúrger maravilhoso e aquele líquido insuperável. Não viveria sem eles!

E, convicto disso, mergulhou novamente na Civilização.

Mago Eremita, 14/08/2007.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Tempo perdido

De todos os casos
E tantos por acaso
Que eu tive

Não vi um que deu fruto
Durou mais que minutos
Algum em que me contive

Quando presente os faço
Se os relembro ou refaço
Não sei bem o que espero

Sinto-me condenado
Quem me rouba é o passado
E o futuro é um desespero

O pior, contudo
Não é meu juiz saber tudo
O que contra mim depõe

É que, se dá tempo, não sei
Já são dez pras seis
E o sol se põe

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Nuvens Embriagadas



nuvens embriagadas
no chão do céu deitadas
sorriem-me do avesso.

eu, parado,
sorrindo de volta,
tremo e estremeço!

querem amor,
sou desilusão...

- aqui, meu ópio,
velho e querido cão!

abana o rabo,
dá a pata,
finge amor
e revira a lata

das vertigens,
dos vestígios.

nuvens embriagadas
no chão do céu deitadas
dizem-me adeus – precipícios!

vão no vento
e eu
na estrada,

no pó dos olhos
da minha amada,

ateus,
como a de Vinícius.

domingo, 12 de agosto de 2007

Beijo Cru (por Leonardo - Spoke)

A boca é íntima
A mão é pública
Pêlo púbico
Sexo privado.

Beijo é devasso
O aperto tímido
Rente a pele
Dois corpos nus.

A boca é pública
A mão vacila
Pêlo rente
Sexo cruzado.

O beijo é cru
E a língua nua
Pele viva
Três corpos quentes.

_Há quem aguente
Beijos de línguas
Enquanto gozam
Públicos despudores

.
Leonardo-Spoke

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Convidado: Salomão Rovedo

“O sol nasce e se põe e torna ao lugar de onde partiu;
e renascendo aí faz o seu giro pelo meio-dia
e depois se dobra para o Norte.”
(Eclesiastes 1-5,6)

O homem carrega sempre dentro de si mitos, mistérios e magias, coisas tais com tantos nomes que seria chato enumerar. A eternidade do homem é infinita. Pode ser paradoxal dizer isso, mas, graças à eternidade, podemos fazer milhares de conjeturas sobre nós mesmos e ainda conviver com toneladas de mistérios em nossas vidas sem tentar solucioná-los.

Uns tempos atrás, como todo ser humano, andei querendo saber de tudo sobre todas as coisas. Mergulhei sem método em todas as religiões e filosofias orientais, ocidentais, daqui e além. Um dia, porém descobri que gastaria várias vidas para alcançar o Nirvana – cumprir o meu Karma – que não valeria a pena alcançá-lo nem me transformar num monge eremita, se não me fosse dada a alegria de dividir tudo com os demais. Não, não vale a pena...

Por mais que a ciência e o misticismo avancem nenhum supera o outro: normalmente ficam se digladiando, engasgados em teorias sobre a mesma coisa. Chegamos enfim ao limite institucional de todas as discussões onde, parece, não existe jeito de avançar. Estancamos entre Deus e o Big Bang, figuras tão próximas e tão distantes que remontam a bilhões de anos em espaço e dimensão que só a fé e a teoria podem transitar. Algum ecumênico ao extremo poderia afirmar que, sim, o Universo nasceu de um Big Bang... provocado por Deus!

Escolhi então, com muita alegria, viver às custas do Nirvana dos outros...

Acho que se pode ter a mesma satisfação em ganhar e perder amigos. Aliás, para falar a verdade, nunca senti a sensação de ter perdido amigos, apesar de ter acompanhado muitos ao cemitério. Mas assim que passa aquela sensação triste que se tem nos enterros começo a sentir de novo a presença do amigo a meu lado, como se tivesse retornando da voltinha que deu para comprar cigarro na esquina.

Só tenho o trabalho de mantê-lo ali, distraindo-o com conversas fiadas, para que não ache desculpa de ir-se. E eles – verdade – ficam por aí amontoados em torno de mim, um tentando ser mais importante do que outro, num assédio agradável que em absoluto não me perturba. Nunca deixe o amigo pensar que está sendo chato: amigo jamais chateia amigo.

Desde então tenho comigo que, na verdade, os amigos que a gente ganhou jamais perde: também na amizade há algo de eterno.

Um dia pensei em botar ordem nesse movimento caótico, mas sou tão desorganizado quanto eles. Jamais poderia colocá-los, digamos, numa organização, tempo e espaço cronológicos, nem poderia falar de maneira tão literária que valesse a pena dizer a mais pessoas como gosto de lembrar meus amigos. Enfim, é uma coisa que me tenta e que também teria gosto de fazer, mas não sei como realizar.

De alguns deles nem teria como iniciar a conversa. Saí da minha terra e eles ficaram por lá. Esse deslocamento físico por pouco não se transforma em separação espiritual, mas quase. Todos começamos a ser atropelados pela máquina do tempo: acidentes, doenças, vidas atribuladas.

As notícias escasseiam e quando surgiu, enfim, a oportunidade de reencontro muitos tinham morrido sem dar a chance de pegá-los pelo braço e mantê-los colados a mim, como faço com os outros, com pena de que se fossem de vez. Para encontrá-los agora fica difícil – estão por aí vagando no mundo, pelas calçadas, becos, tomando bebidas, cheios de saudade.

Do Luiz Barriga eu me lembro. Nossa amizade nasceu em porta de botequim. Éramos conterrâneos e contemporâneos, mas curiosamente não nos conhecemos na juventude. Viemos nos conhecer no Bar Riga (o nome diz tudo), de propriedade dele, ele do lado de dentro e eu no balcão bebericando algum veneno alcoólico. Luiz tratou logo de me seduzir com a meladinha que fazia à base de cachaça, limão e mel, em doses que só ele sabia medir.

Colocava os ingredientes no copo longo e batia com talo de goiabeira, cuja extremidade se tripartia tipo pé de galinha, como se fosse a hélice da batedeira. Metia o talo entre as mãos e mexia vigorosamente até a mistura se tornar homogênea, de forma que ao paladar desaparecia o sabor da cachaça, do limão e do mel, para dar lugar a uma bebida de gostinho ácido, diferente.

Além desse aperitivo (e de uma batida de maracujá de primeira), Luiz Barriga mantinha um estoque de cachaça com ervas, raízes e cascas, medicina para todos os males. As vezes eu chegava reclamando do estômago, fígado, vesícula, essas coisas, a receita infalível era o tal de Pau Pereira, cujo gosto era muito amargo – mais amargo que a coisa mais amarga que se possa imaginar. Eu só agüentava beber aquele remédio tomando a dose de uma talagada só.

O passado de Luiz Barriga coincidia com o meu em algumas travessias, pois tínhamos a mesma idade. Estudamos nos mesmos colégios, fomos nos apresentar ao serviço militar na mesma época. Só que ele foi ser fuzileiro naval e eu nem as armas servi, fui considerado incapaz. O serviço de fuzileiro dele se misturou com o golpe militar de 1964, a revolução. Aproveitamos o encontro para falar daquele tempo tumultuado das assembléias dos marinheiros, das greves, de João Goulart, do Comandante Aragão e claro do cabo Anselmo, divisor de discussões, como igreja, futebol e política.

Do cabo concordamos numa coisa: traidor ou traído, ele era um canalha, não beberia jamais em nossa companhia. Luiz Barriga conhecia muita coisa, mas nunca deixamos que a discussão fosse um limite à nossa amizade. Por isso muita conversa terminava em reticência, que ninguém procurava eliminar. Luiz Barriga saiu dos fuzileiros para o bar, na distância da terra natal, casou, teve filhos. Nordeste nunca mais.

Os botequins têm sua particularidade. No Bar Riga tinha a mesa que era coletiva. Todos os dias repousavam nela um jornal, um cinzeiro, uma garrafa de pinga sem rótulo ou a revista semanal. Um dia estava pousado o jornal O Globo. Na página de obituários uma notícia chamava a atenção de todos, mesmo porque já estava marcada com um círculo à caneta vermelha. Pelo tipo de notícia, que adotamos para nós, depois o recorte do jornal acabou virando quadro emoldurado, pendurado em lugar nobre. Dizia a nota fúnebre:

Os Botequins Fecharam

Morreu o Cavaleiro da Ordem da Garrafa

O Soho amanheceu de luto. O grande bairro boêmio de Londres chorava a morte de seu personagem mais popular, o rei dos boêmios, Cavaleiro da Ordem da Garrafa, Timothy Cotter, o Rosie, amigo das crianças, respeitador de senhoras, profissão: alcoólatra. Rosie morreu anteontem à noite, num xadrez de Brixton, aonde fora recolhido por bebedeira e de onde não saíra por não ter dinheiro para pagar as 5 libras da fiança.

Com 54 anos, Rosie vivia há 25 anos no Soho, notabilizando-se por suas danças e canções extravagantes, com que divertia os demais boêmios, em troca de alguns goles. Alimentava-se de restos dos restaurantes e das barracas do mercado.

Ontem, quando o mercado abriu, chegou a notícia da sua morte. Todos os botequins fecharam as suas portas.

Começou a romaria à morgue. Choravam boêmios e mundanas. Houve um princípio de tumulto quando um funcionário informou que Cotter seria sepultado como indigente.

“Não deixaremos que façam isso com o velho Rosie” o brado partiu de Jack Hardiman, vendedor de furtas no mercado. Imediatamente foi iniciada uma coleta, que rendeu 230 libras. O proprietário de uma casa funerária, também amigo de Rosie, aceitou a importância como pagamento do funeral, que fez questão que fosse de luxo.

No instante que líamos a notícia do O Globo de 22-05-1970, eu, Luiz Barriga, Luizinho INPS, Bete Engov, Walter Mug, Jorge Cana, Pudim de Cachaça, João Bala e mais uma dezena de biriteiros contumazes, que estavam no bar mais os que iam chegando, resolvemos fundar – em pleno Baixo Cachambi – a Confraria da Ordem da Garrafa, instituindo simultaneamente, o título de nobreza Cavaleiro da Ordem da Garrafa e a medalha Timothy Rosie Cotter, em homenagem ao bebum falecido naquela data no Soho, Londres, Inglaterra.

Para consolidar a Confraria deixamos permanentemente aberta a lista de adesões que dentro de alguns meses já contava com centenas de assinaturas. É claro que além do Livro de Adesões não existia prêmio nenhum nem medalha. Uma única vez um confrade mais animado confeccionou o modelo de Diploma a ser distribuído, mas a idéia não vingou além de uma cervejada. Então a coisa que começou assim de brincadeira foi crescendo, correndo mundo de boca em boca, a ponto de merecer contra notícia do O Globo, igualmente emoldurada e exposta ao lado da reportagem original.

Muita gente foi atraída para o Bar Riga por esse fato, coisa que freqüentadores antigos começaram a reclamar, tanta era a intrusão e confusão provocada por gente de fora. Mas o negócio do Luiz era esse e mesmo com ciúmes nos alegrávamos que prosperasse em seu domínio, na sua alegria. Durante muito tempo todos os clientes novos do Luiz Barriga eram obrigados a formalizar a adesão à Ordem. Hoje o movimento só existe na lembrança dos sobreviventes...

Botequim no Cachambi Funda

A Confraria da Ordem da Garrafa

Para homenagear o Soho, grande bairro boêmio de Londres, os freqüentadores do Bar Riga, localizado no bairro do Cachambi, fundaram a Confraria da Ordem da Garrafa, em homenagem ao rei dos boêmios, Timothy Rosie Cotter, de profissão alcoólatra, falecido recentemente. No mesmo dia em que Rosie morreu num xadrez de Brixton, aonde fora recolhido por bebedeira, um grupo de freqüentadores do Bar Riga, liderados pelo proprietário Luiz Barriga, fundou a Confraria e inaugurou o Livro de Adesão da Confraria, cujas cinqüenta páginas já se encontram quase que totalmente preenchidas. Foram criados igualmente, a Medalha Timothy Rosie Cotter e o Diploma de Membro da Confraria da Ordem da Garrafa em bonita impressão.A idéia foi tão bem recebida que o Bar Riga vem recebendo visitantes e adesões de todo o Brasil, tornando-se ponto de encontro dos boêmios daquele subúrbio carioca. O Bar Riga fica na Rua Miguel de Cervantes, entre os bairros do Méier e Maria da Graça e divide a preferência com o Bar Amendoeira, citados ambos no livro Botequins do Rio, pela qualidade das comidinhas e do chope servido.

Luiz Barriga – preciso explicar a razão do nome? – bem, com seus 1,90m de altura, ele simplesmente pesava mais de 200 kg! Bem diferente das fotografias do tempo que serviu na Marinha, musculoso, halterofilista, lutador de jiu-jitsu. Gostava, ele mesmo, de cozinhar e elaborar o cardápio do pequeno Bar. Os pratos eram típicos... da cabeça dele: Galo Velho, Vaca Atolada, Galinha Atropelada, Bode Manco, Boi no Pasto, além do tradicional Mocotó de Unha, Feijoada com Porcaria, Rabada Verde... Alguns tinham como tempero, além da pimenta, claro, cachaça ou cerveja. Quando eu ia comer lá, tinha que me resguardar durante alguns dias de comida pesada.

Eu costumava chegar no Bar falando alguma asneira em alta voz, gritando, em ritmo de provocação, coisas assim como: “Luiz, minha mulher me traiu, fugiu com outro, levou os meus filhos e roubou todo o meu dinheiro!” Ou: “Luiz, estou de ressaca, ontem fiquei bêbado, briguei na rua, fui assaltado, fui preso depois atropelado por um ônibus, apanhei da mulher e fui expulso de casa!

A essas e outras provocações ele sempre respondia com uma vasta gargalhada: “Então veio ao lugar certo: aqui que é lugar de corno!

Depois da intimidade Luiz Barriga extrapolava. Largava o bar com seus filhos e sentava à mesa, bebia todas as bebidas, se fartava das comidas e tudo que nos servia era compartilhado com o próprio. Mesmo depois que o Bar Riga fechava, permanecíamos lá dentro, as portas arriadas, para não ser incomodado por ninguém.

Nessa época eu andava viajando muito a trabalho e não tendo como acompanhar esse ritmo alucinado passei a evitar o Bar Riga. Quando voltei de uma dessas viagens tive a notícia que o Luiz Barriga havia morrido. Já passei lá no Bar Riga algumas vezes, conversei com seus filhos, mas não encontrei o Luiz Barriga, não senti a presença dele ao meu lado, nem quando pedi uma dose daquele horroroso Pau Pereira.

Onde você estiver eu brindo de coração:

– Saúde!...

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Quem sou eu? Meu nome é Salomão Rovedo (1942), tenho formação cultural em São Luis (MA), resido no Rio de Janeiro. Sou escritor e participei de vários movimentos poéticos nas décadas 60/70/80, tempos do mimeógrafo, das bancas na Cinelândia, das manifestações em teatros, bares, praias e espaços públicos. Hoje bebo minhas biritas pelos pés sujos de Copacabana, Méier, Cachambi. Tenho textos e livros pelaí nas internets da vida. É só procurar.
-Sucesso pro boteco...

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Capoeira Angola Mandou Chamar, de Marco Ermida Martire - Resenha



A primeira desconfiança quando folheamos o livro de Marco Ermida Martire, “Capoeira Angola Mandou Chamar” (Fundação de Cultura Cidade de Recife) é a de que enveredaremos por um universo alienígena ao nosso cotidiano: o dos “angoleiros” e sua obstinação em manter viva uma forma tradicional de jogo de capoeira no Brasil. Mas engana-se quem imagina serem os contos que compõem o livro um mero desfilar de rabos-de-arraia, pernadas, rasteiras gingados ou toques de berimbau. Marco nos leva, através de personagens inesquecíveis como Maneco Torto, Diabo Louro, Mestre Gingado, Maiara Sem Mestre ou Loba da Angola a desenrolarmos um novelo de histórias sobre a nossa condição humana tendo como pano de fundo as rodas de capoeira de Salvador e do Rio de Janeiro, sendo a cidade carioca magistralmente retratada em dois dos seus ícones da malandragem: a Lapa e Santa Teresa.
O estilo do autor merece um capítulo à parte. Ágil como capoeirista que é e apaixonado por suas personagens, Marco Ermida Martire nos brinda com uma linguagem riquíssima em expressões populares e do universo da capoeira angola cujo narrador-personagem faz parte, dando ao leitor uma sensação de oralidade pouco explorada nos autores da nova geração.
O texto desfila suas 173 páginas em uma diagramação ousada, levando os leitores à “gingarem” com maleabilidade dentro das histórias que se intercalam, dando a obra um sentido de unidade que não se faz tão somente pela sua temática da arte da capoeira-mãe.
Destaque também para as belas ilustrações de Allan Alex que pontuam com elegância os contos apresentados.
Acompanhe a agonia de Mestre Maneco e sua “torteira” fruto de um problema de coluna, emocione-se com a história de Diabo Louro e sua obstinação em enfrentar o maior de todos os capoeiristas, vibre com a sensualidade brasileira de Maiara e Loba e, sobretudo, deixe-se levar sem medos ou preconceitos pelos casos narrados pelo Velho Malandro, angoleiro dos bons e grande “camará”.

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Fadas



Ele ouviu risadas, pareciam vir da copa. Quem? Sabia que não havia mais ninguém em casa.

Levantou-se da escrivaninha, cauteloso. A copa. Risinhos cascateantes. Onde? Nada que se visse: a mesa redonda sobre os ladrilhos azuis, quatro cadeiras de plástico, a geladeira a um canto.

Dentro da geladeira?

Nada.

Apurou o ouvido. Sim, logo abaixo do lustre, os risos. Delicadas gargalhadas femininas. Sobre a mesa? Uma fruteira com pedestal. Nada de mais nela: maçãs, laranjas, bananas. Duas laranjas, três maçãs; duas bananas em um cacho que já tivera dez. Aproximou o ouvido: parecia, sim, que vinham de lá as risadas.

Uma das bananas pareceu trepidar. Ele viu que tinha uma aparência estranha, meio estufada. Mofo? Arrancou-a, separando-a da outra. Cautelosamente a descascou. E ali estavam, entre a fruta e a casca!

Ele atirou a banana ao chão, num gesto surpreso entre susto e nojo; nojo que logo foi substituído por um maravilhamento incrédulo.

Fadazinhas – ou coisa parecida – mulherinhas (coisas vivas, bípedes e aladas), do tamanho de saúvas, com pequeninas asas irisadas, algumas nuas, outras com vestidinhos azuis e rosa, desceram rindo da banana para o chão da copa, correram para a cozinha, passaram por baixo da porta, fugiram para o quintal. Uma que ficara presa entre a fruta e o chão ergueu a banana com um gemido de esforço, escapou da prisão e, com um grito agudo de medo do homem, correu atrás das companheiras.

Ele destrancou a porta de ferro, procurou a danadinha. Noite escura, lua clara. Ouviu risos entre as gavinhas do pé de chuchu. Olhou para cima e o som de riso já não parecia mais vir do alto, mas do fundo, de dentro dos tomateiros. Revirou as plantas, não viu nada. Silêncio, exceto por uma buzina pressionada na estrada, fora de hora. Mas talvez – ou seria ilusão? – de cá e de lá, risinhos abafados, como se agora elas cobrissem, com as pequeninas mãos, as bocas minúsculas.

Olhou para um lado e para outro, entrou em casa, trancou a porta com uma última verificação do entorno.

Foi até a copa, mãos no bolso, assobiando baixinho. Encostou o ouvido na banana que restara sobre a mesa. Observou-a por todos os lados, tocou-a com o dedo médio da mão direita e retirou a mão no mesmo instante. Criou coragem e tocou-a novamente. Destacou a fruta do talo.

Com cuidado atento, descascou-a.

Estava vazia de fadas. Apenas uma banana como qualquer outra. Ele suspirou e comeu-a, pensativo, conformado.

terça-feira, 7 de agosto de 2007

CHOCOLATE



Acordara com a nítida sensação de que , na boca, haviam-lhe amassado uma plantação de jiló. O amargor que sentia não era desse mundo... Escovando os dentes, pôde perceber que, nem assim, aquele gosto estranho saía. Tomou um gole de chá quentinho. Engoliu o líquido de olhos bem fechados, na vã esperança, de que , o maldito gosto ocre abandonasse aquela boca, que horas antes, mastigava a carne daquele homem. Era inadmissível que o gosto bom daqueles fluídos , agora, tivesse se tornado essa coisa de gosto medonho , e de certo modo, aterrorizante. A pele dele , ela explorou cada centímetro, passando a ponta-da-língua, como fazia, quando era criança, com o sorvete-de-chocolate que tanto gostava. O chocolate era delicioso...! Era a única coisa que lhe fazia sair da dieta... Mesmo que a culpa a fizesse comer rúcula semanas inteiras. Lembrou do último pedaço, comido antes da sua última internação na Clínica de Tratamento de Viciados. No diagnóstico , os tais médicos concluíram que, ela não nascera com a capacidade de digerí-lo. Suas alucinações eram efeito ,da incapacidade de seu organismo, de produzir enzimas específicas para digerir uma prosaica barra-de-chocolate. E isso,segundo eles, era a explicação para as crises alucinatórias, que vinham ocorrendo com certa freqüência. Após ter buscado ajuda com mães-de-santo fajutas, bem como, com postulantes reprovadas do Curso de Psicologia por Correspondência , havia, enfim, procurado ajuda no lugar certo. Mas... E esse gosto maldito?... O que era agora?! Afinal, não havia tido mais alucinações fazia meses... Tudo parecia ter voltado ao lugar...! A única explicação era aquele encontro de ontem... Voltara a se "deitar com um homem" , após passado muito tempo desde a última vez... Mesmo sendo casada à "zilhões" de anos, era um fato raro que isso acontecesse.


Nada de anormal, pois , todas as suas amigas , internas da clínica , lhe diziam ser assim mesmo... Maridos eram necessários, afinal , não ficava bem a solteirice , oficial, passado dos 30... Homens eram outra estória...! Algumas tinham a sorte de se casarem com esses espécimes raros. Eram invejadas , e, lá na clínica , eram chamadas de "esposinhas". Alguns vudus traziam os nomes dessas "antipáticas" bordados em linha-de-seda vermelha. Os alfinetes, elas encontravam na cesta de lixo hospitalar, comumente chamado de refugo.E o gosto, ainda assim, parecia querer aumentar. Na ânsia de tentar acabar com a tortura, lembrou de um pedaço de chocolate -velho e ressecado- que uma de suas amigas contrabandeara para dentro da clínica. Aquele pedaço lhe fora reservado, e estava escondido , sob o quadro de seu diploma ,que , estava "pregado" na parede do quarto.Tomou coragem, e mastigou um pedaço. O gosto ruim pareceu diminuir. Comeu outro. E mais outro... Até que, tanto o gosto amargo, quanto o chocolate acabaram...Entre feliz e assustada, ela , então , percebera que não havia tido alucinações. O relógio marcava, pontualmente, o horário de sempre. O vai-e-vem da rua estava como sempre. Mesmo os pássaros teimavam em voar ... Tudo normal. Sem problemas.Então pôde perceber que havia vivido errado. E que nem o chocolate havia sido o vilão. Apenas achou o gosto do chocolate bom no passado. E , que em meio à saladas e dietas, apenas vivera... Assim... Como suas amigas de quarto... Sem gosto de chocolate para lhes adoçar a boca. Sem motivos para celebrar essas curas... Afinal, a doença que lhes unia, era, simplesmente não terem tido nem sorte, tampouco coragem, para engordar , ao sabor de uma barra-de-chocolate.Chocolate engorda... E viver vicia....

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Recanto

Acordou com uma dor de cabeça terrível, parecia que pesava toneladas e que se afundava no colchão, os lençóis estavam macios e cheiravam bem, negava-se a abrir os olhos, pois a luz incomodava, mas ouvia o barulho de ondas e de pássaros, não se lembrava de estar perto do mar. Poderia ser um sonho ainda, apertou os olhos, mas o som parecia ecoar em sua cabeça, repetidamente.
César a olhava da poltrona, que estava próxima da janela, não conseguia vê-lo direito, por causa da claridade que vinha de fora e invadia o aposento, mas era ele e podia senti-lo invadindo seus sentimentos mais secretos. A luz intensa feria-lhe os olhos e os pensamentos, inutilmente tentou cobrir o rosto com uma das mãos.
O ventilador girava lento, como sua cabeça, estava atordoada.
_Enfim, de volta a vida, minha querida. Sente-se bem? - perguntou enquanto se levantava e agora ela podia ver seu rosto, sua feição carinhosa
_Quer que eu ajeite seu travesseiro, que peça seu café?
_Não precisa, estou sem fome, sente-se aqui, - dizia, batendo a palma da mão de leve sobre a cama, _Estava com saudades de você, quero seu colo.
Ele sentou-se no canto da cama e ela recostou-se entre suas pernas, enquanto recebia um afago nos cabelos.
Quando ficava assim, sentia-se uma menina, ele era sua referência e mesmo quando não estava presente, tinha o poder de acalentar seus medos. Era o único homem que tinha contato íntimo verdadeiro, a conhecia como ninguém.
Um entendimento mútuo pairava sobre os dois, algo intocável, imaculado, se entendiam sem precisar de explicações.
Os pensamentos de Cecília estavam confusos, iam e vinham como as ondas e só queria ficar ali, congelar aquele momento de quietude que abrandava suas dores, suas insatisfações. Mas sabia que em algum momento teria que enfrentar de novo a realidade e tudo aquilo a deixava ansiosa e infeliz, melhor seria aproveitar a calmaria do momento.
_Quer um cigarro? - ergueu o braço e alcançou o isqueiro e os cigarros no criado mudo.
Acendeu o cigarro e entregou a ela. Cecília observava o comportamento de César, gentil, com aquele jeito de menino que nunca abandonara seus sonhos, mesmo sendo um adulto, era amável e nunca ouvira dele uma palavra aguda ou uma repreensão por seu comportamento descontrolado e impulsivo.
Cada trago aquecia seu peito, enquanto as mãos cuidadosas dele ainda a afagavam, as ondas por certo contariam segredos e ela não passaria impune por aquele momento. A fumaça bailava branca, como uma daquelas cortinas de seda fina, ao sabor do vento.
Sentia a respiração dele e por estar recostada entre suas pernas, sentia o desejo que despertava, mas preferia ficar quieta.
Pela porta de vidro que dava para o mar ela olhava o mar, as ondas iam e vinham, revirando a areia da praia.
_Porque estou aqui? - perguntou quase em um sussurro e ele não respondeu.
A fumaça descortinava-se em seus olhos e por alguns instantes tirou-a dali.
Então lembrou-se das brincadeiras no lago, dos banhos que tomavam juntos quando criança, da primeira vez que sentiu vergonha de sua nudez e da maneira que ele a abraçou sem nada dizer, mesmo que soubessem que a vergonha era recíproca. Depois desse banho, nunca mais teve pudores com ele.
Lembrou-se da casa do sítio, da muralha de pedra que cercava a sede, dos animais pastando naquela imensidão verde e da guerra de estrume que faziam e gargalhou.
_O que foi? - perguntou César, sem entender o motivo do riso.
_Apenas me lembrava da casa do sítio, das guerras de estrume.
_Sim, e a Boneca, passávamos horas cavalgando...
_Mas quando voltava para casa eu levava bons cascudos, por deixar a pobre tão cansada.
Entregaram-se ao som do mar mais uma vez. O som compassado trouxe muitas recordações, quase alucinações de seu passado.
Viu o pai abrindo os olhos e sorrindo, dentro do caixão, a filha morta por baixo de seu seio, viu-se sendo arrastada para o sanatório, os abusos que sofrera lá, a fuga, os pés em carne viva, um vento frio percorreu sua espinha tomando seus olhos e como nas tardes de tempestades, nas noites úmidas e escuras no sítio, ela se escondeu como uma menina assustada, por entre as pernas de César.
_Minha querida, está se sentindo bem?
_Não, não estou bem, mas fique aqui comigo, preciso de você.


(texto editado originalmente em: http://insanoeprofano.blogspot.com/ )

domingo, 5 de agosto de 2007

Compromisso com a editora

Sexta-feira é dia de entregar meu texto à editora. Até às 16:00h. Terrivelmente. I-na-di-a-vel-men-te. Im-pre-te-ri-vel-men-te.
Às vezes o sangue substitui o suor na testa .
O ponteiro dos segundos parece fazer mais barulho que o tchuco tchuco do trem. O tempo avança impiedosamente como um carro fórmula 1.
Cumpro religiosamente minhas obrigações contratuais. Toda semana um texto de uma lauda, no mínimo 1.300 caracteres com fonte Arial tamanho 14, distribuídos em no mínimo e no máximo 32 linhas de espaçamento simples.
O pior de tudo é que deve haver coerência no texto. Tem que ter começo meio e fim. Fim forte. Fim significativo. Final com chave de ouro. Fim que resuma e encerre uma idéia desenvolvida ao longo daquelas trinta linhas.
O tempo passa e nada de vir a idéia salvadora. O que vi na televisão? O que li no jornal? Será que nada me inspira a escrever?
O tempo. O tempo passa e só consigo pensar na moça do tempo. Sol! Que pernas! Que decote!
– Idiota, o tempo está passando e a hora fatal está chegando. Aquela sim é que é uma fêmea fatal!
O pior de tudo é que antes do final fantástico, tenho que primeiro encontrar um começo. Um começo arrebatador que agarre o leitor na primeira linha. Tem que ser algo que atice a curiosidade. Pode ser o velho, mas com roupagem atrativa. Tem que ter pernas de fora, tem que ter decote. Não pode mostrar tudo. É para isso que serve o recheio do texto. O meio do texto deve fazer o leitor permanecer ligado. Sem falsos recheios siliconados. Senão o leitor pode abandonar tudo. O leitor deve ficar entusiasmado, excitado, com vontade. O final será o clímax.
Se conseguir, o leitor voltará na semana seguinte procurando o mesmo quarto de página do jornal querendo mais e mais e mais.
Conto as linhas, vejo as horas. Aleluia ! Consegui!

sábado, 4 de agosto de 2007

O "Finja"


O recado do assistente fez com que Adalberto percebesse que estava em sérios apuros. Não fora pego em flagrante, mas ele afirmara com plena certeza que sua mulher dispunha de provas suficientes que ele tinha um caso com Dona Soraya, a secretária bilíngüe, loira de 1,78, farta de frente e de fundos... Imaginava já o olhar colérico da esposa e a faca que ela empunharia, dizendo coisas assombrosas a respeito do destino de suas zonas baixas... Agora entendia o distanciamento dela e a falta de interesse. Havia sido descoberto, isso era claro. Mas naquele momento, precisava salvar seu casamento, não que morresse de amores pela mulher, mas pela herança que ela representava, os negócios não iam bem e voltar a ser um zé ningém não era algo que estava em seus planos. Teria que usar de algo que aprendera em um passado remoto, em anos de intenso treinamento e que jurara há tempos que nunca mais usaria. Teria que usar todos os seus poderes de kaoísta. Parado em frente sua casa, sentiu as lembranças desaguarem em sua mente...
As serras eternas do estado de Goiás, cobertas pela vegetação baixa, as pequenas e retorcidas árvores, características do cerrado, o cheiro de frutas silvestres (mangaba, pitanga, jenipapo) permeavam o ar e indicavam que estavam na estação das chuvas. Seis meses aguados, seguidos de seis secos. Todo ano era assim. Era nisso que Adalberto, cabeça raspada e metido em um macacão jeans, pensava até ser despertado por um peteleco:
- Outra vez perdido nos pensamentos?
- Sim Mestre, desculpe isso eu... – outro peteleco forte estalou na sua orelha.
- Você se entrega muito fácil, Pequeno Quati*! E ainda pediu desculpas? Treze abdominais repetindo os lemas sagrados!
- “Negue... Negue até as últimas conseqüências, mas negue!”
- E o segundo?
- “O verdadeiro kaoísta nunca fica sem palavras... Elas criam vida em sua boca e o ajudam a quebrar qualquer galho”!
- Hummm... Mais convicção, o próximo!
- “Um kaô dito com convicção é mais forte que uma verdade tremida”
- Por quê?
- “Quem não deve, não treme!”
- Coloque isto na cabeça, Pequeno Quati... O mundo lá fora é uma selva e se seu kaoísmo for fraco, você será fraco! Ele te engolirá, está me entendo?
- Sim Mestre!
- Já evoluiu muito desde que veio aqui para o Mosteiro do Kaô, mas ainda há muito para você aprender.
- Mestre, é verdade que teremos um desafio contra os “Monges do Agá”?
- Sim... E temos que manter a hegemonia de dez anos sem perder para eles.
- Mas eles treinavam com o senhor, Mestre?
- Isso foi há muito tempo, pequeno carnívoro...
- Então eles conhecem todos os seus golpes.
- Há uma regra secreta entre os mestres kaoístas: nunca ensine todos os seus truques e desenvolva secretamente outros que ninguém saiba... Agora troque de roupa que os monges chegarão a qualquer momento.
- Mestre, por que eles foram expulsos?
- Levaram o kaô para o lado negativo... Deram a se meter com pessoas muito suspeitas, indivíduos metidos em ternos caros, carros importados, siglas esquisitas, falas enroladas e desculpas esfarrapadas, que queriam utilizar o kaô para seus funestos fins...
- E o que estes seres utilizam agora?
- O Agá, que é uma forma desvirtuada do kaô... Veja bem, o kaô é utilizado para diversos fins, tipo atraso na entrada do trabalho, uma escapadela no fim de semana, um caso passageiro com a secretária ou algo neste sentido, nada que vá prejudicar seriamente alguém, ou dar algum prejuízo... O kaoísta experiente têm condições de enfrentar o “encosto gastador” (aquele que te encarna e o faz gastar toda a grana numa noitada só), assim como o “encosto pegador” (o que leva a encarar qualquer dragão depois da segunda dose)... Já os praticantes do agá não se preocupam com suas ações, usam seus poderes para ludibriar os outros, posando de bons moços até quando suas ações suspeitas são comentadas; sabem muito bem os golpes da dissimulação e da desinformação... Enfim, são o lado negro do kaô. Agora vá e se apronte.
- Sim, Mestre!

Naquela noite encontraram-se todos reunidos no grande salão, kaoístas de um lado, monges do agá do outro... Via-se que os monges estavam mais determinados do que nunca; cansados de tantos anos de humilhação, os monges haviam feito uma preparação especial, “lá pros lados da Esplanada”, em um palácio pomposo com duas torres flanqueadas por duas enormes “bacias”, cada uma delas voltada em uma direção, acima ou abaixo. Os gestos largos, mãos pelo ar, as falas que iam em um crescendo, criadas especialmente para palanques, mas que tinha um rendimento espetacular nos tatames, estavam já surtindo efeito: percebia-se nos rostos dos aprendizes kaoístas um certo desconforto, que poderia denunciar o medo do combate. Sodi Mahis, o monge supremo dos seguidores do agá sorria confiante, esperando o começo da luta.
- Pois bem, Mestre Eoh Tao, o reinado do kaoísmo termina hoje...
- Não tenha tanta certeza, Mestre Mahis... Sinto que algo paira neste ambiente.
- Eu também sinto. É a covardia e o medo de seus alunos que empesteia o lugar.
- É algo bem maior que isso... – E enigmaticamente, sacou um colar de fitas coloridas e ficou em pose de meditação.
Quando estava para soar o grande sino, enquanto todos os contendores se preparavam, um berro ecoa paralisando tudo:
- Parem tudo! Sinto a presença de um “Finja” entre nós!!!
Um óóóó ecoou de praticamente todas as bocas
- Um Finja! - a maioria repetia estupefata
- O que acontecerá com agora?
- Ó céus, um Finja entre nós...

Até que alguém teve a coragem de dizer:
- Peraí, o que é um Finja, caraio?
Os dois mestres postaram-se no meio do círculo formado pelos lutadores:
- O “Finja” é um praticante do “Finjitsu”, a milenar arte marci-labial do fingimento, utilizada somente pelos maiores mestres. Precisam ser destros tanto no kaoísmo quanto nas artes do Agá para serem considerados um verdadeiro Finja... E é o único que pode derrotar os dois estilos sem fazer muita força.
O terror se apossou dos jovens corações de todos os alunos. Um vento forte , com um silvo amedrontador começou a percorrer, gelando espinhas e espíritos. De súbito, o mestre kaoísta começa uma cantinela solitário:
- Urueuauau, urueuauau, urueuauau...
As luzes se apagam e tudo cai em uma escuridão total, golpes secos são ouvidos no breu e o som de corpos sendo lançados de um lado para outro, violentamente. É tudo muito rápido. Em questão de minutos, as luzes voltam mostrando um quadro desolador: no meio de vários alunos caídos, o único que permanece de pé é Adalberto, o Pequeno Quati. Todos olham para ele com um misto de raiva e medo:
- Maldito Finja! Estava entre nós o tempo todo!
- Expulsem o indesejado... Mercenário, crápula!
- Peraí, eu nem...
- Basta – diz o mestre kaoísta, se levantando lentamente. Caminhou até a porta e ficou parado de costas, fitando o horizonte – O torneio não será realizado. Peço aos monges que se retirem agora, para que possamos tomar conta do pária.
Apesar dos protestos de Sodi Mahis e seus monges, ao simples olhar do Pequeno Quati, agora alçado ao posto de ameaça Finja, abaixaram as cabeças e saíram todos em um só bloco. Os kaoístas aprendizes os seguiram, não menos preocupados.

- Mestre, eu...
- Não precisa tentar se defender. Quando alguém é marcado como um Finja, nunca mais perde o estigma. Pode ser que você não seja o indivíduo, e tenho cá algo que me diz que talvez não é, mas não posso colocar o mosteiro em perigo. Arrume suas coisas. Sua permanência entre nós acabou.

Voltando ao presente, Adalberto, ex-Pequeno Quati, sabia agora o que teria que fazer. Qual a melhor defesa em caso de desconfiança? O ataque, lógico. Entraria enfurecido em casa, batendo portas e gritando, “cadê o salafrário” “eu mato!” “hoje eu como um cuzinho!” e coisas do gênero. A mulher ficaria tão assustada que nem se lembraria que ela é quem tava com a razão. E foi o que fez. Arrebentou a porta da frente, subiu as escadas gritando como um possesso. Segurava o riso quando arreganhou a porta do próprio quarto e vi a cena: Elise, sua esposa, em vestes de eva, de quatro sobre a cama, tendo atrás de si ninguém menos que Eoh Tao, seu antigo mestre no kaoísmo. Que nem enrubescido ficou, o sacana:
- Então, está usando a velha técnica da “defesa-atacante”, Pequeno Quati!
- Bom, eu... Peraí! Você tá comendo a minha mulher! Ah, mas eu te mato, fiodumaégua!
Adalberto voou no pescoço do outro quando começou a ouvir uma cantinela:
- Urueuauau, urueuauau, urueuauau... – O vento aumentou e as luzes se apagaram de repente...

*Quati: O quati ou coati (do tupi "nariz pontudo") é um mamífero da ordem Carnivora, família Procyonidae e género Nasua. O grupo está distribuído desde o Arizona ao norte da Argentina.A coloração, em geral, é cinzento-amarelada, porém muito variável, havendo indivíduos quase pretos e outros bastante avermelhados, focinho e pés pretos, cauda com 55 cm, com sete a oito anéis pretos. Mede de corpo 70 cm. Vive em bandos de oito a 10, é praticamente onívoro, e se adapta bem ao cativeiro. São animais diurnos e não aceitam muito bem a traição.
Kaoísmo: Fomar milenar e zen-bundista de aplicação do kaô. O verdadeiro kaoísta é o que consegue transformar a realidade com palavras (ou seja, leva todo mundo no gogó, que é um dos mais fortes golpes dessa arte marci-labial). Um mestre kaoísta nunca fica sem palavras, elas criam vida em sua boca e o ajudam a quebrar qualquer galho[/i]