terça-feira, 31 de julho de 2007

Convidado: Miguel do Rosário

O leitor comum


Sinto-me um tanto metalinguístico, escrevendo sobre a escrita, mas enfim, se eu me divirto com isso, qual o problema? Iniciei há poucas semanas uma série de artigos sobre as novas tendências da ficção brasileira, polemizando com outro escritor. Meu colega de letras acusa o romance contemporâneo de ter enveredado por um caminho extremamente hermético, o qual, apesar de bem recebido por críticos e outros autores, afasta-o mais e mais do leitor comum.A teoria dele converge em favor de uma literatura mais aberta ao grande público, desenvolvendo melhores tramas, enredos mais consistentes e mais empolgantes. Eu acho importante ressaltar, no entanto, que o romance de história – em oposição ao romance de linguagem, joyciano - nunca deixou de ser produzido no Brasil. Marcos Rey, Sergio Santanna, Marcos Souza, Marçal Aquino, para citar apenas alguns, têm produzido narrativas mais ou menos lineares e acessíveis nos últimos 10 a 20 anos. Talvez ainda não tenham encontrado a fórmula do best seller, como o fez Paulo Coelho, para falar de um nativo, ou Dan Brow, para citar um americano, mas não creio que eles almejem apenas agradar críticos e outros escritores. Quanto à fórmula do sucesso, os autores citados sempre podem encontrar, num dia de inspiração excepcional, o enredo que galvanizará o grande público. Temos uma classe média leitora com mais de 5 milhões de pessoas. Um mercado promissor do qual, mais dia menos dia, alguém tocará o ponto G.Mas é verdade que a outra vertente, com textos fechados, densos, de difícil acesso ao leitor não especializado, contendo códigos e referências complexos, têm ganhado muito prestígio em anos recentes. Meu colega lamenta que esta vertente venha sendo tão incensada por crítica e Academia e dominando os cadernos culturais.Admito que fiquei confuso no meio dessa polêmica. Escrevi alguns ensaios contraditórios, acusando gregos e troianos e não tomando nenhuma posição definitiva. Mas como o tema continua me entusiasmando, decidi fazer mais um esforço para elucidar - para mim mesmo e quiçá para algum náufrago desavisado que ancorar por aqui - esse mistério. A literatura brasileira estaria se fechando em si mesma, tornando-se uma literatura de panelinha, distanciando-se do leitor comum? Para saber, resolvi fazer uma pesquisa empírica e ir em busca do leitor comum. Eu queria conhecê-lo a fundo (com todo respeito). Onde ele mora, em que trabalha, quanto ganha por mês, se toma Viagra, assiste novela, bebe vodka, fuma maconha e, naturalmente, o que esperava de um romance - eram algumas das questões que me vinham à mente.Inicialmente, havia decidido não procurar o Leitor Comum no mundo virtual. Queria encontrá-lo pessoalmente, ter um contato ao vivo. Mas depois de perambular por dias inteiros nas ruas do centro do Rio, infrutiferamente, resolvi apelar à rede para fazer a primeira abordagem. Abri uma página no Orkut intitulada "Sou um Leitor Comum". No dia seguinte ele apareceu, deixando comentários. Trocamos emails. Ele gostou da proposta e marcamos de beber uma gelada num barzinho da Riachuelo, Lapa.Cheguei um pouco mais cedo ao encontro, agendado para nove horas da noite. Sentei-me a uma mesa na calçada, uma dessas de plástico, com propaganda de cerveja. A cadeira também era de plástico, com braços e recosto. Prefiro essas às de metal, geralmente tortas e desconfortáveis. Era uma quarta-feira de verão. Fazia calor e as outras mesas estavam todas ocupadas por gente bebendo cerveja. A atmosfera lapiana, como de praxe, transpirava volúpia, me fazendo sentir um friozinho na barriga. Finalmente, eu pensava, excitado. Finalmente vou conhecer o Leitor Comum. Nenhum escritor brasileiro contemporâneo jamais o conheceu. Por isso não conseguem seduzi-lo. E assim ele continua comprando Paulo Coelho, Irving Wallace, Sidney Sheldon, e sei lá mais que besteirol.Em seguida, pensei melhor e concluí que eu estava sendo preconceituoso; que, se eu continuasse raciocinando assim, nunca seria capaz de compreendê-lo. Planejei iniciar, a partir do dia seguinte, um estudo sobre os livros mais comprados pelo Leitor Comum. Seria um suplício inominável, mas eu tinha que me esforçar, se quisesse de fato atingir o LC e ficar rico. Ainda me pesava na consciência aquele jantar na casa da minha mãe, em que o marido da minha prima fez um comentário entusiasmado sobre o Código da Vinci. Não consegui evitar um olhar de desprezo e o tom de voz escarninho. Ele ficou visivelmente abatido. Hoje, recordando a cena, ponho-me em seu lugar. Eu pensaria assim (se eu fosse ele): "olha só o pedante, como é patético, invejoso; como se ele fosse capaz de escrever um romance tão bom; como se fosse capaz de vender mais de 40 milhões de livros".A verdade é dura, mas precisamos encarar. Existe um déficit enorme de narrativa na literatura brasileira. Mesmo entre os medalhões, não temos nada de extraordinário em termos de trama. Além disso, o escritor brasileiro tem a mania de achar que, só porque leu muito, tornou-se superior ao comum dos mortais, quando, francamente, na maioria das vezes, suas leituras excessivas só serviram para lhe detonar a saúde física e mental. Veja os romancistas americanos: em geral são esbeltos, vigorosos, joviais, dão entrevistas na televisão, engajam-se em campanhas políticas. O Philiph Roth é uma exceção porque é judeu e os judeus são pessimistas – com fortes razões históricas para tal. Os escritores brasileiros, tirante o Marçal e o Reinaldo Moraes, costumam ser gordos, gagos, doentios, trêmulos, indecisos, apáticos, tímidos, com forte inclinação ao alcoolismo. Droga, estou generalizando, falando besteira, odeio isso. Apaguem da cabeça as últimas frases. Tenho que pensar mais claramente, mais cientificamente, se quiser de fato entender a cabeça do Leitor Comum - não é possível que...Com licença, você é o Miguel do Rosário?Olhei para o lado e para o alto e vi um sujeito mais pra baixo que pra alto, cabelo grande encrespado, bermudão colorido, havaianas, camisa branca - e um sorrisão imenso, desconcertante. O sorriso dele agarrava-se ao rosto como uma criança ao colo do pai, com fúria, medo, amor. Era um buraco, um abismo. Podia-se mergulhar naquele sorriso e se perder para sempre.Desculpe, eu pensei que...O apogeu do sorriso havia passado. Restava o seu crepúsculo, ainda glorioso, mas cuja luz declinava vertiginosamente. Um sorriso quase triste. Ele fez menção de se afastar. Eu o contive.Sim, sou eu. Desculpe-me, estava distraído. Você é o Leitor Comum?Levantei-me e estendi a mão. O sorriso ressurgiu com toda força, como um sol que desistisse de se pôr e voltasse, incoerentemente, a subir no horizonte. Ele aparentava uns trinta e poucos anos, tinha barba por fazer e parecia não ter muito dinheiro.Pode me chamar de Leco!, respondeu, apertando-me a mão com energia. Sua voz elevava-se no início das frases e perdia vigor ao final. Reparando bem, era mais pra baixo, um metro e sessenta e cinco, e pesava um pouco acima do ideal. Os traços eram bem comuns e, apesar do rosto marcado por cicatrizes de uma antiga doença de pele, possuíam uma distinção quase bela. Talvez (a razão dessa beleza canhestra) fossem os olhos castanhos claros, atentos, puros, alegremente desconfiados – como quem se diverte com seus próprios temores. Talvez fosse o hiato irônico entre os dois dentões da frente.Sentamo-nos. O garçom trouxe um copo para Leco e trocamos algumas frases sobre o calor, o bairro, nós mesmos. Leco enfim deu uma informação importante.Eu tenho um ateliê aqui quase em frente. Sou artista plástico.A frase gelou-me a espinha. Eu esperava tudo, menos um artista plástico. O Leitor Comum deveria ser engenheiro, funcionário público, professor, gerente de loja, dono de restaurante, estudante de medicina. Não podia ser outro artista. Consolei-me pensando que, ao menos, não era outro escritor. O consolo durou pouco:Eu cometo uns poemas de vez em quando, disse Leco, enchendo seu próprio copo, após ter esperado em vão que eu o fizesse. Fiquei constrangido de ter me esquecido desta óbvia delicadeza, e sorri sem graça, à guisa de desculpas.Verdade? Que livro você está lendo? perguntei, mudando de assunto. Enquanto enchia meu copo, refletia se cairia bem uma cachaça. O bar do Paulinho tinha uma excelente, por um bom preço. Eu estava com vontade de começar a beber a sério. Escuta, Leco, eu vou pedir uma cachaça. Você quer também?Bem, Rosário, preciso dizer uma coisa... Estou completamente duro. Sabe como é, vida de artista no Brasil é foda.Fica frio, você é meu convidado. Vamos beber.Pedi cachaça, depois outra - e depois outra. E mais outra.Aqui confesso o fiasco da minha empreitada, pelo menos até o momento. Eu e Leco bebemos cerveja e cachaça em grande quantidade, depois fomos a seu ateliê, quase em frente, e fumamos uns baseados. Havia trabalhos magníficos pendurados nas paredes, objetos que mesclavam materiais esdrúxulos: anúncios de igrejas evangélicas, placas de carro, bonecas de plástico, cabides, pedaços de computador e de celulares, e cada um tinha um tema, remetia a algum significado misterioso. Enquanto fumava, eu contemplava embevecido aquilo tudo. Pouco conversamos sobre literatura, e o pouco que fizemos não registrei devidamente, com certeza em virtude (melhor dizendo: pela falta de virtude) do excesso de substâncias bebidas e fumadas. Recordo apenas que ele disse estar lendo a biografia não-autorizada do Roberto Carlos. Tinha ficado curioso, só porque o Rei tentou proibi-la.Marquei de encontrá-lo em outra oportunidade, quando espero colher mais dados. Pra dizer a verdade, tudo isso aconteceu ontem. Até agora, o único resultado da minha pesquisa sobre o Leitor Comum, além de uma grande ressaca, é a impressão – pela qualidade da luz filtrada pela cortina - de que já são umas cinco da tarde e que faltei a todos os compromissos do dia.
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Miguel do Rosário tem 32 anos. Gosta de escrever sobre tudo e nasceu no Rio de Janeiro, não necessariamente nesta ordem. Lançou um livro intitulado Contos para Ler no Botequim e agora trabalha num segundo volume. Escreve para o oleododiabo.blogspot.com.

segunda-feira, 30 de julho de 2007

Os pássaros

por Muryel de Zoppa
É quando beberica o Licor amargo
É quando, sem alvoroço, recitam-lhe versos
os Pássaros que cantam-lhe melodias
E afina a viola e
raio, chuva e granizo
quedam
num espasmo (deleite) infindo e
gracioso

É quando o gozo

domingo, 29 de julho de 2007

Infância?



Numa infância perdida
Sonhei com amigos fiéis
A solidariedade e tolerância estaria em nossa volta
Iludia-me com tardes de um amor incondicional
Pensei que a perfeição era uma dádiva em nosso mundo
Imaginei a não existência de inveja que cega os olhos
Sempre acreditei que o ser humano teria o seu espaço na vida de acordo com o tamanho do seu mundo
Nunca conclui que cada pessoa deveria sofrer pelo mesmo sofrimento de outra pessoa
Sonhei com a respeito de privacidade, crescimento pessoal e espiritual de cada um
Visualizei um mundo em que cada pessoa é pelo que faz e esforça ser
Desejei um dia ter a liberdade de amar e um dia ser eu mesma.
Mas, aonde mesmo que esses sonhos foram parar?
Na infância perdida ou no mundo que nunca existiu?
Será que ainda temos esse espaço para construir esse mundo?
Talvez tudo não passa de um sonho sem realidade
E só você mesma para escutar a resposta
Se algum dia você tiver a curiosidade de perguntar que mundo se encontra ....

sábado, 28 de julho de 2007

Metamorfoses surreais

Se minhas princesas suicidaram-se
ou morreram de overdose
Se o eco devolveu palavras que não derramaram-se da minha boca
ou sofreram metamorfoses
Se meu veneno não matou nenhuma erva daninha
e meu comportamento é hediondo em manias
me resta o alívio do gesto assassínio em contos de fadas
e a calidez do poente doente
almas mortas curvando-se sob os pés de musas loucas
e o lamento irritante de flechas tontas
que nunca alcançam os inocentes...

Clonaram minha alma enquanto eu dormia
e agora a Outra faz coisas que eu nunca faria
Pinta arco-irís medonhos
e cravos de defuntos
em jardins de espantos
Deposita tristezas nos olhos já mortos
E infla de fantasias os cerébros tortos

Da linguagem surreal
já aprendi o abecedário
Agora só me resta
Rabiscar labirintites no santo sudário

quinta-feira, 26 de julho de 2007

A quase infância


O Carteiro é um quarentão, homem gordo de baixa estatura sem compaixão por si próprio, utiliza a profissão para alimentar seu maior prazer: entrar na intimidade das pessoas. Abre sim todas as correspondências que lhe causam comichão de curiosidade. Ninguém sabe o que traz tanto conforto para ele saber sobre o que acontece na vida das pessoas cujas cartas ele entrega. O Carteiro não é tão diferente assim das demais pessoas que o cercam, ele apenas tem a vantagem de ter o destino de alguém nas mãos, ali em alguma daquelas cartas.

Criança ainda foi criado por Dona Marluci, empregada da casa já há muitos anos. O pai não suportava o fato de a esposa ter falecido no parto e passou a culpar o filho de ser o assassino da mãe. A empregada foi a responsável pela educação do menino. Batizou-o de Sebastião, o tabelião conhecia o pai do bebê e aconselhou Dona Marluci que acrescentasse José e assim permaneceu: José Sebastião Cavalcante Filho, o Tião, como chamava a empregada.

A primeira carta que o Carteiro violou foi por acaso, quando este tinha nove anos de idade. Dona Marluci que já contava com idade avançada pediu para Tião entregar um envelope na casa de Seu Assis, um velho que vez por outra visitava a empregada. O menino respeitava muito sua mãe de criação, por isso nunca deixou de fazer por ela alguns favores. Chegando a casa tocou a campainha e ninguém apareceu. Decidiu ir ao centro da cidade onde Seu Assis era dono de uma venda. Quando passou em frente à sorveteria encontrou Maurinho, seu melhor amigo. Tião era quase um ano mais novo que o amigo, por isso teve que aceitar quando Maurinho puxou a carta e correu. O Carteiro estava acostumado com essas brincadeiras.

- Devolve Maurinho, por favor – pediu Sebastião.

- O que é isso, cartinha de amor? – perguntou o amigo enquanto abria o envelope.

- Carta de quê?Devolve, devolve.Tia Marluci pediu para eu entregar, é para o Seu Assis.

Maurinho pôs-se a ler: “Meu amor, adorei o nosso primeiro...”.

Tião arrancou a carta das mãos do amigo e enfiou-a no bolso da calça. Os dois permaneceram em silêncio por um tempo. Sebastião não entendeu o que significava aquela carta, a própria Dona Marluci havia escrito, ele se viu no direito de ler o que nela continha.

“Meu amor, adorei o nosso primeiro encontro, em todas as visitas que me fez eu aguardei ansiosa o seu convite para sairmos. Agora sei que meu sentimento por você não vem apenas de minha parte. Adorei nosso passeio no parque, senti-me quarenta anos mais jovem. O desejo de viver mais cem anos floresceu graças a você, meu amor. É preciso que sejamos cautelosos discretos, não quero me precipitar com você. Não temos mais idade para aventuras, não posso simplesmente abandonar meu patrão e Bentinho, o menino que criei como o filho que nunca tive. Peço a você que tenha paciência e seja compreensivo, vamos nos encontrar quantas vezes mais você quiser. E se o amor exigir que eu largue tudo e vá viver ao seu lado, eu sou capaz e audaz de fazer. Um beijo da sua amada Marluci”.

Era a primeira vez que Sebastião desobedeceria a sua mãe de criação. Maurinho o acompanhou à venda de Seu Assis. Os dois passaram lentamente em frente à porta do estabelecimento. Podia-se ver o ódio nos olhos do Carteiro quando este viu o velho que seduzira a mulher que lhe criou, que lhe ensinou a andar de bicicleta, que lhe contou as histórias da Mula-sem-cabeça, do Saci Pererê, da Caipora e que lhe mostrou como fazer para a bola de meia não rasgar tão facilmente.

Chegou a casa e o pai não estava como sempre.Deu um beijo em Marluci e foi brincar com Maurinho no quintal.

- Entregou o envelope, Tião? – gritou a empregada de dentro da cozinha.

- Entreguei.

À noite o Carteiro leu mais uma vez a carta deitado em sua cama. Rasgou-a em muitos pedaços, jogou-a em uma lata de leite em pó vazia e ateou fogo nos papeizinhos.



*da série: O Carteiro

quarta-feira, 25 de julho de 2007

o grande mentiroso

O grande mentiroso

Havia jurado aos pés de seus dois grandes amigos, nunca mais se meter com malucos. Aquela seria a última tentativa de consertar um louco em sua escala na terra. O fim do conturbado romance com um ser pra lá de esquizóide, marcaria o início de um suposto momento de normalidade. Não seria mais pára-raios de insanos, como normalmente era chamada.
Contudo, mal sabia ela que seu destino fora traçado nas portas dos hospícios.
E não hesitou em conhecer o amigo de Luciano. Afinal, ele era apenas um intelectual. Que mal poderia haver nisso? Escolhas diferentes de vida apenas!
Conheceram-se em uma roda de bar. Os olhares se cruzaram. Ele era realmente muito excêntrico, principalmente frente a ela, que primava por uma beleza clássica, com adornos muito singelos e bem eleitos.
Resolveram reencontrar-se e iniciaram um tórrido romance, com direito a uma súbita paixão desde o primeiro beijo. Logo estavam dividindo a mesma cama algumas vezes por semana e prometendo-se casamento mutuamente. Até filhos eram cogitados.
No que concerne ao sexo, deve-se frisar que melhor não poderia ser, amavam-se feito dois animais no cio, desesperados, como se a qualquer momento fossem ser tragados pela terra. Gozavam desesperadamente uma, duas, três, quatro vezes. Não cansavam nunca. Driblavam as necessidades humanas a todo custo, a fim de dedicarem-se a insólita arte do prazer.
Entretanto, Eduardo parecia taciturno vez por outra, como se estivesse escondendo um segredo de sua amada. Interpelado, balouçava a cabeça, dizendo tratar-se de aborrecimentos cotidianos. Mas Lucia não se dava por vencida. Havia de fato um mistério a ser desvendado e, tanto ela fez que conseguiu arrancar a confirmação do homem.
-Eu tenho um tumor no cérebro, o qual acarreta cefaléias tormentosas, insuportáveis para um simples mortal.
Desesperada com a revelação, ela o interrompeu:
-Mas amor, você faz tratamento? Pode ser fatal? O que pode ser feito?
-Olha meu bem, a princípio o tumor está fossilizado, mas pode irromper a qualquer momento e a simples presença do mesmo em lugar inoportuno, culmina com dores dilacerantes.
A moça calou-se, lamentando sua própria sorte. Demorara tanto tempo para encontrar o homem de sua vida, com todos os predicados desejados e, agora descobria que a felicidade nunca vinha sozinha. Bem, se Deus a predestinou para isso, que fosse infinito, enquanto possível.
Mas com o passar do tempo, as queixas do sujeito estenderam-se para outros diagnósticos e só o que ele fazia era tecer comentários a respeito de suas doenças que não paravam, nem de longe, no suposto tumor.
Relatou também que não possuía um pulmão, resultado de uma embolia pulmonar durante um coma a que fora acometido. Depois contou que uma úlcera em seu estômago não o deixava comer, que uma insônia o mantinha de pé durante três noites ininterruptas e que problemas em seu coração o faziam temer pelo seu fim muito em breve.
Porém, Lucia estranhava a boa aparência de Eduardo. Nenhuma olheira, nenhum cansaço, um vigor sexual invejável, um apetite de esfaimado, um sono tranqüilo e uma pulsação de bebê saudável. Impossível um quadro tão grave não deixar vestígios em sua aparência. Ela podia ser ingênua, mas não a esse ponto!
Eduardo prosseguia em suas juras de amor eterno, intercaladas com os presságios de uma morte que se avizinhava. O homem carregava sua fala de emoção e parecia domá-lo um prazer incomensurável em sentir o fim junto ao sofrimento de sua amada.
Entretanto, em uma noite de sábado, Eduardo desapareceu. Retornou no dia seguinte, cabisbaixo e portando um semblante sofrido. Inquirido por ela, o pobre revelou ter passado a noite no Hospital Copa D’or, por conta de um princípio de infarto. Lucia calou-se e fez que acreditou.
Arrumou-se com esmero e foi visitar um antigo fã que, por ironia do destino, vinha a ser nada mais, nada menos, que o Diretor do afamado hospital. Passaram e repassaram a lista dos atendidos naquela noite, até que ela convenceu-se de que não constava a entrada de nenhum Eduardo.
Assim, a moça resolveu investigar a vida do sujeito e, qual não foi sua surpresa, quando pouco a pouco, foi descobrindo as três mil mentiras proferidas; não possuía nenhuma doença, nunca passara pelos hospitais alegados. As quatro graduações jamais existiram. Ele possuía apenas uma graduação em filosofia em curso há mais de uma década. As aulas, palestras e cursos faziam parte tão somente do imaginário fértil de seu amado.
Soube ainda, que certa feita, seu querido fora visto tocando um violino imaginário em pleno largo da Carioca. Concluíra por fim, ser o sujeito possuidor de esquizofrenia em estado avançado, de acordo com sua vasta experiência junto aos perturbados mentais.
Determinou-se que isso não ficaria assim: em sua torpe cabecinha, mentira se combatia com mentira e loucura com loucura. Se ele era portador de uma psicopatia, seu convívio com loucos a fazia doutora em maluquice.
Deu início ao seu plano, casaram-se em dois meses. Lucia decidiu vingar-se: ele sentiria a dor de ser enganado, tal qual ela experimentara quando ele mentia estar tratamento em São Paulo, enquanto ficava trancado em seu quarto lendo Deleuze.
Assim vestia-se com uma roupagem e levava outra na bolsa, que trocava no banheiro da lanchonete. Esbarrava com ele na rua e fingia não conhecê-lo. “Estranho”, pensava ele. “Para mim, aquela era minha mulher”.
Inventou uma viagem para Portugal a negócios, apenas para fazer-lhe ciúmes e assim seguiu com suas mentiras e descalabros, ao passo que as dele iam pouco a pouco escasseando.
O homem parecia ficar cada vez mais atordoado, julgava estar sendo castigado pelas infâmias que inventara para sua amada, até que resolveu dar cabo daquela loucura.
Preparou com esmero um fantástico jantar, regado ao melhor vinho; tudo feito por suas próprias mãos. Jantou ao lado da mulher, disse que a amava repetidamente e, aos poucos retorceu o rosto, tornando-o roxo, espumando pela boca, enquanto proferia suas palavras finais:
- Agora você acredita que eu estava realmente doente e que meu fim era próximo?
Lucia, feliz da vida, enfim conseguira seu intuito: herdara uma polpuda herança sem muitos esforços, apenas levando o imbecil ao suicídio.
Deitada no largo sofá, em frente à Vieira Souto, deliciando-se com o melhor champagne, ela concluía: O mal do esperto é achar que todo mundo é bobo!


03/06/2007

terça-feira, 24 de julho de 2007

PEITO MATERNO

(À minha mãe)

Prisão forte, confortável,
Meu desejo é sair de lá,
Feita com o saciável
Vão me ouvir chorar.

A luz do dia demora,
Pessoas adoram acariciar,
Ai!Não vejo a hora...
De esse dia chegar.

De um lado para o outro,
Proteger-me, vale o cansaço.
Arruma o berço com gosto,
Logo, ter-me-á em seus braços.

Sem prazo de validade,
Esse instinto é eterno.
Está na hora da verdade:
Ir para o peito materno.

Lena casas novas

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Três passos para uma guerra

I - O NEONIILISMO
Tempos de pensamento único. Entretanto disfarçado, maquiado, siliconado, sedutor. Ele se apresenta: “Nunca houve tamanho fluxo livre de idéias e saberes.” Mas então qual o motivo de tantos concordarem? “Porque é o sensato a se fazer” - responde. Mas isso é somente o cinismo da mentalidade hegemônica, que aprendeu a tudo absorver e anular. Então, ele adverte: “Não há mais espaço para revolução. Os que conseguirem se manter menos contaminados pelas idéias dominantes, se tornarão outsiders, figuras periféricas vistas como párias, loucos, incompetentes, improdutivos, inadequados, irrelevantes.”
Por isso, a sensação de impotência frente a um mundo que parece permanecer impassível aos protestos, às críticas, ao inconformismo. Assim, as revoltas vão sendo abortadas antes de tomarem forma. O desânimo atinge o peito e as potencialidades de idéias livres são sufocadas. As melhores mentes e os espíritos mais sensíveis de nosso tempo são empurrados para um neoniilismo, e este é um terreno instável e perigoso; berço da violência dirigida ao próximo e a si mesmo.
II – AS MÁSCARAS PARTIDAS
Só que até a sensação de impotência nada mais é do que produto dessa indústria que nos traga. A história mostra que, um a um, cada paradigma inquestionável foi violado e humilhado quando o tempo certo chegou. Nada do que criamos é eterno. Tudo é mutável e frágil, por trás das impressionantes máscaras. Fortes não eram os impérios teocráticos, as propriedades feudais, a razão eurocêntrica ou a “superioridade” ariana. Forte é o homem que criou cada uma dessas terríveis fantasias, pois só ele tem o poder de destruí-las.
III – O CAMPO DE BATALHA
Se a ditadura do mercado, se a indústria onívora, são criações humanas, então não somos nós que temos que nos ajoelhar. O discurso onipresente que a todo custo busca nos aliciar ou esmagar, sempre apresentará a realidade como forte e estruturada demais pra ser combatida. Mas isso é mentira. A mentira que sustenta a dominação de tão poucos sobre tantos. Que ao nos calar, nos torna cúmplices. Que turva a visão, nos fazendo apontar dedos acusatórios para as vítimas. Mentira que nos torna assassinos. Culposo ou doloso, não importa, é crime de morte. Temos mais poder em nossas mãos do que querem que acreditemos. Cada recusa tem seu valor, cada ato tem sua conseqüência. Pequenas rupturas podem provocar impensáveis deslocamentos. Um dia uma negra se recusou a ceder seu lugar em um ônibus. Um dia um jovem judeu alemão transformou filosofia em arma. Um dia decidimos dizer não; deixamos as mãos sujas de sangue, pois acordamos para o fato de que lavá-las, como sempre fazemos, é ato abominável e covarde.

sábado, 21 de julho de 2007

Paisagem Lunar

foto: Angela Gomes.



Estrelas desabam luz transitória

Incrustando-se na areia fina,

Pesada e úmida.

Rotina das mariposas, dos crustáceos

E aves noturnas de rapina.

Barcos abandonados adormecem.

Outros, singram profundezas atlânticas

Entre o sonho e a escuridão,

Seguidores de cardumes,

Cartas náuticas ou metáforas e semânticas.


Um pescador lança a tarrafa.

Os pés afundam-no na teia

Na trama do arrasto de ondas seculares

A deflagrar fogueira.


Reflexo das explosões solares,

Ascendente chama purpurina.

Incandescente espelho, vertigem,

Peixe-pássaro de fogo, lamparina.


Adensa-se na amplitude

A embarcação que retorna.

Crianças correm e, logo,

Com vagas ao entorno

A canoa repousa o seu cansaço,

Emaranhada pela luminosidade da noite

Que amanhece com o horizonte salgado

Mergulhado na lua cheia.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Convidada: Mafalda Chambel (Portugal)

Avalanche de te amar

Vou descansar no teu amor
A fluir-me nas artérias…

Vou descansar no teu olhar
Onde cessam dos movimentos imponderados
As minhas células…

O descanso em ti é divinal:
Vejo demónios e anjos no céu
Acima desta água de sal,
Onde o meu ser veleja despido do véu…

Amo-te sem dimensão definida;
Amar-te é a veste do meu Mundo
Onde a saudade é a ferida
Que jamais latejou tão fundo

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Mafalda Chambel é estudante trabalhadora, nasceu a 1 de Outubro de 1987 e é uma admiradora da poesia.
Entrou em 4 Colectâneas Literárias até ao momento.
Foi vencedora em 5 Concursos Literários dentro do tema Poesia.
Publicou já diversos poemas em Revistas e Jornais de Artes e outros, inclusivamente pela Internet.
É associada da A.P.P. (Associação Portuguesa de Poetas) e membro da Tertúlia Rio de Prata.
Seu sítio.

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Pedestal do medo

Por Eliane Alcântara
Não posso ousar-te a voz se em mim grita o silêncio
Daquela que eclipsa o dia no corpo de quem ama
E morre sem dizer palavra que valha ternura
Na lembrança de quem não parte, saudade.

Querer-te no compêndio de dias secretos
É castigo para quem não cala o coração moleque
Na pinguela das emoções de quem atua a vida
Nos cenários escondidos de quem não aplaude.

Por tanto que doa o drama de poetar-te
Rima sem cabimento no viés dos olhos
Beijar-te não devo se me atrevo a não chorar
A ordem que foste no tango de um passo errado.

Uma parte da porta aberta revela o interior
De quem fecha por medo do desarranjo o vento
E conceituar-te não-amor é erro para quem sabe
Da suave brisa que conhece os cômodos de quem cala.

Ousar-te o querer sem beijar-te
É chorar o conceito de quem não sabe,
Embora saiba da vontade de viver-te
E consome-se, no pedestal do medo.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

REFLEXÕES I

MESTRES

Tolos precisam de mestres, e o mundo está abarrotado de tolos. E cada tolo tem seu mestre particular: pode ser Jesus Cristo, Sidarta Gautama, Mahatma Gandhi, Tancredo Neves, Getúlio Vargas, Benjamin Franklin ou Adolf Hitler. Tolos seguem algo ou alguém, sejam os seguidos santos ou genocidas; sejam os seguidores religiosos fervorosos ou ateus convictos. Aliás, este é um ponto importante: os ditos ateus são seguidores de seres ainda mais abjetos que os religiosos. Alguns pregam Karl Marx com a mesma estupidez irritante que os protestantes esbravejam aos céus suas besteiras, crentes de que o ABSOLUTO é surdo.

E é errado seguir? Evidente que sim! Já lhe ocorreu que as verdadeiras almas, iluminadas para a sua época, nunca quiseram ter seguidores? Então, é errado ter fé? Não! É evidente que não! A fé move o mundo! Infelizmente, hoje, em direção contrária, mas move. Devemos, sim, ter fé. Apenas não podemos deixar nossas crenças nos consumirem a razão, fazendo-nos seguir cegamente alguém que, se de fato foi digno, não desejou milhões de néscios em seu encalço.

Se acaso considera seguir alguém como o caminho correto, então, em vez de criticar-me, deixe-se morrer como Sidarta. Ou crucifixe-se como Jesus Cristo. Digo: faça o que você considera certo, mas faça! Não apenas considere. É claro que isso não mudará o mundo em absolutamente nada, mas ao menos mostrará que você é capaz de fazer o que prega.

Este é o grande problema com os seguidores de algo/alguém: pregam e apenas pregam. Infelizmente, por todo lado, vemos absurdos como kardecistas racistas, protestantes que matam católicos que matam protestantes, budistas briguentos, ateus que têm medo do diabo e líderes religiosos que pregam abstinência, mas são gulosos e libidinosos. Evidentemente, vemos alguns que fazem o que pregam, mas isso é raríssimo.

Entenda: não há nada de errado em ter uma crença religiosa, se isso o agrada ou você precisa dela. Podemos ter nossas crenças, sim, mas devemos aplicá-las, nunca apenas segui-las, como um rebanho de ovelhas que precisam de um pastor, apenas para que este as conduza ao matadouro. O que fazermos, então, com elas?

Bem, reflitamos com sinceridade.

Todas as crenças sinceras emanam energias benéficas e, sendo mesmo oriundas de sentimentos puros, criam Universos onde são reais. E nesses Universos existe tudo o que sua crença sincera conhece. É difícil saber se a crença criou o Universo ou o Universo já estava lá e atraiu a sua crença, mas esse não é o ponto. O ponto é: se não devemos seguir ninguém, o que devemos fazer com nossas crenças?

Como estamos caminhando juntos, façamos nós dois, eu e você, a mesma coisa: abramos nossos alforjes e coloquemos nossas crenças neles, para que também CAMINHEM AO NOSSO LADO. Iremos precisar delas e, em certos momentos, elas poderão ser as únicas coisas que nos restarão. Não há nada de errado em ser cristão, muçulmano, budista ou umbandista. Apenas não devemos seguir atrás das religiões, pois elas, enquanto supremas donas da verdade, nublam nossa mente, fazendo com que nos consideremos superiores a esse ou àquele indivíduo. Nossa crença é importante apenas para nós mesmos. Não precisamos vendê-la todas as manhãs para sonolentos adeptos de outras crenças, como se o fato de converter alguém para a nossa maneira de pensar fosse uma vitória. Que vitória há em aceitar covardes ao nosso lado? Apenas covardes incapazes mudam suas crenças durante o caminho, em busca de conforto, paz, dinheiro ou saúde. Temos o que desejamos para nós mesmos, não importa em que creiamos. A fé é que é importante, pois ela, em muitas vezes, nos move! E nossa fé deve ser inabalável, seja ela focalizada onde for. Apenas não permitamos que ela seja o mote de nossa guerra, pois essa é a guerra estúpida, travada há milênios. Nada tem a ver com a Guerra Eterna, para a qual estamos caminhando.

Se você chegou até aqui, creio que está tudo claro. Apalpemos, felizes, nossos alforjes, sabendo que estamos levando neles apenas nossa FÉ. E ela caminha ao nosso lado.


(trecho de "Reflexões de Lux Protector")

.

terça-feira, 17 de julho de 2007

Passarinho Infeliz

Sentado na praia,
Eu, curioso, observava
A dança dos pássaros,
Que voavam... voavam,
E depois, tristes,
Voltavam.

Um desses, não sei porquê,
Pousou ao meu lado.

Olhei-o atentamente,
E, pensando alto,
Inconsciente falei:

- Passarinho,
Quão feliz tu deves ser!

Seus olhos sem espírito
Fitaram-me aborrecidos,
E uma voz saiu
De seu amarelado bico,
Que disse:

- Feliz, eu?!
Estás enganado,
Pois não conheço outro pássaro
Mais triste.

Indignado, falei:

- Impossível!
Teu par de asas
Podem levar-te para onde quiseres!
Meu tesouro está lá longe,
Quisera eu poder voar!

- E eu poder nadar,
Pois meu tesouro
Está lá escondido
No fundo do mar.

André Espínola

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Um novo sócio para Deus.


Há muito tempo estava distante. Quanto tempo? Nem ele mesmo o sabia.
E a vida sempre o levara a lugares inusitados que invariavelmente o deixava no nada e sem sair do lugar. E ela não se apresentava diferente agora. Mais uma vez encontrava-se sozinho já que nem Deus havia por si e, segundo sua percepção, "Ele" de fato nunca o acompanhara. Freqüentemente pegava-se perguntando o por que Deus desistira dele. Por ser um perdedor? Talvez o fosse e tanto ele quanto Deus sabiam que era um perdedor. Obvio, que essa conclusão é oposta ao pensamento cristão, onde dizem os ensinamentos que Deus sempre se posta ao lado dos desfavorecidos. E nisso ele não acreditava, apesar de ser este o discurso da igreja. Acreditava unicamente em coisas concretas e a partir de fatos reais procurava tirar as suas conclusões. E além dos mais, sempre fora assim, onde às ilusões e filosofices baratas submetiam-se aos fatos. Fora assim com as suas mulheres, com seus empregos e até com a pequena filha que nem ele e talvez nem Deus soubessem onde estava. Pensando na pequena, lembrou-se da última carta enviada por sua ex-mulher onde afirmava que estavam bem e que o ideal seria permanecer dessa forma. Dizia também que seria o melhor para menina. Como afirmar o melhor para a sua princesinha? Como poderia haver tanta certeza nisso? Bem, não era relevante já que havia se acostumado a ficar longe e, a última vez que estivera com elas fazia mais de dois anos. Da derradeira vez e, disso ele se recorda bem, havia sido o dia em que a procurara e pedira que reconsiderasse situação da qual não concordou. E era disso que ele se lembrava e, a impossibilidade de qualquer entendimento o fizera aceitar a decisão. E o emprego então? Aliás, a falta dele. Há muito que não conseguia algum trabalho digno que o eximisse de passar necessidades. E, também tinha a questão do dinheiro já que era aquele o último mês do recebimento do seguro desemprego. Poxa! Cinco meses desempregado? Tudo isso? E era esse o seu tormento e se não conseguisse algo urgente não saberia que rumo dar a sua vida. E era assim que se encontrava, sentado num dos bancos daquele parque acompanhado de todos esses sentimentos confusos, sabendo que as pessoas quando más, tem o poder de foder com a vida de um homem. Isso não queria dizer que a sua ex fosse uma pessoa má, isso não! De certa forma ao abandoná-lo ela o destroçara. Existia um coração, só não havia o sangue para bombeá-lo. Bateu a mão no bolso da jaqueta e retirou um cigarro do maço. Acendeu, tragou, e de onde estava avistou a cruz da Igreja de São Clemente, próxima dali. Como se fosse um videoclipe, olhou para a cruz e se viu em imagens truncadas que o remeteram a infância cristã. Como estivesse vendo à sua frente o padre Josias em seus sermões dominicais. Quanta tapeação! Quantas mentiras naqueles ensinamentos sobre os dogmas, carestias, crenças, irmandades e principalmente do tanto que haveria de se ter fé. Fé? Oras! Esta nunca o alcançara e nem ao menos lhe dizia a que vinha ou o que seria. Acabou o seu cigarro, jogou a bituca e ao se levantar sentiu as pernas levemente dormentes. Ritimadamente bateu-as no chão e caminhou pelas alamedas do parque. O cheiro do mato e a beleza das flores lhes trouxeram um certo conforto. Vencidas as pequenas alamedas, seguiu em frente na direção da cruz. Atravessou a quadra que separava o parque da Igreja e se viu diante do templo. Alguma coisa o fez entrar. Entrou e tudo estava calmo, silencioso. Percorrendo os corredores, inspecionou as imagens e elas lhes trouxeram uma certa angústia. E ele a sentia mas não destinguia o motivo e isso lhe pareceu a mesma coisa que não ter fé. Sentado num dos bancos percebeu alguns fiéis em fila da água benta. Instintivamente, sentiu sede e a sua boca reclamou por água. O líquido contido na pia não lhe parecia tão puro e talvez o estivesse contaminado por todos os pecados do mundo. Isso, de certa forma o preocupou. Mesmo assim não sentiu aplacado na sede e ela, zombeteira, o incitava; -Estás com sede, muita sede-. Observou o templo e ao não se ver percebido dirigiu-se a pia onde bebeu até saciar-se. Algo de espantoso acontecera e o seu corpo levitou em pleno ar. E foi assim que os fiéis o encontraram. Alguns pares de joelhos dobraram diante de si e, ele se tornou o alvo de adoração. Orações e aleluias sucederam e fiéis vindos não se sabe daonde aglomeraram-se e, todos dedicaram-lhe orações. As preces, aos poucos, foram perdendo espaço para as reivindicações. Os pedidos não tardaram. Ficou impressionado e confuso com enxurradas de “Me dê isso, me dê aquilo, me dê saúde, me dê dinheiro” E as súplicas se tornaram tantas que ele nem mais se dava ao trabalho de memorizá-las. Aquilo o irritava profundamente à medida que as súplicas tornavam-se ensurdecedoras e insanas. O sangue lhe subiu à cabeça e foi impossível controlar-se:
-Calem-se! gritou.
E o silêncio veio, sepulcro e inexorável.
Ali, flutuado no nada, meditou. Sim! De certa forma a fé tinha lhe tocado.
Mas,ela seria tudo? Meditou novamente. Terminado e com os olhos direcionados à cúpula, se justificou:
-Táquepariu! To fora! O que o SENHOR está querendo é um sócio!

Acordou apavorado. Olhou o relógio e passava da meia noite. Ainda assustado pensou em tudo, e a sensação obtida tinha sido tão real que, por momentos, imaginou que houvesse acontecido. Ali, deitado na cama, olhando o teto, imaginou-se naquela loucura toda. Mas, o bom senso lhe dizia que era tudo tão absurdo e, a hipótese de ter estado naquela igreja, ainda mais pairado em pleno ar soava à insanidade. Riu de si, levantou-se, e foi à cozinha e do fogão retirou uma panela e sorriu ao ver os desbotados coxas de frangos adormecidas acima do arroz. O contraste das cores entre o branco do arroz e o bege das coxas lhe pareceu estranho. Revirou a comida e ela não lhe apeteceu, o que indicava que estava sem fome. Abriu a geladeira e retirou a meia garrafa de vodca. Despejou a bebida num copo e voltou para o quarto. Pensou no aluguel e que não haveria dinheiro para saldá-lo. Uma única opção entre comer ou pagar o senhorio. Evidente, ele preferia alimentar-se. Sorveu a bebida em tragos generosos, imaginando a forma de se ver livre dos problemas. Caminhou em direção da janela e deu o último gole debruçado no parapeito. Novamente pensava no aluguel. Inclinou ainda mais o corpo e o tórax avançou janela afora e então deixou o copo escorrer por entre os dedos. O som do vidro se estilhaçando na calçada pareceu incomodar o silêncio da noite. Lá fora, olhado da janela, quase não se viam farois e, vez ou outra algum exibicionista acelerava o motor do seu carro. Voltou para a cama, agasalhou-se no ralo cobertor e tentou não pensar em nada. Fitava o teto e nada existia que não fosse a negritude do quarto. Talvez tenha durado 15 a 20 minutos até seus olhos se fecharem. Segundos após um ressonar se ouviu. Era um sono de ansiedade, de dúvidas que fatalmente persistiriam ao amanhecer. A fé, talvez houvesse morrido, ele, ainda não.

sábado, 14 de julho de 2007

Fardo

Esse fardo de sonhar
Mais parece uma real conspiração

Não sei mais quando voar
Todo tempo é tempo
De estar com os pés no chão

Não sei mais por onde andar
Toda via adverte
A presente placa de contramão

Não sei mais em que pensar
As idéias surgem
Em contradição

Já é tempo de fazer chegar
Este tempo de poder voar
Para longe dessa subliminar prisão

Para perto da liberdade
Onde se possa escolher
A cor dos ladrilhos

Para um lugar que, eu sei, existe
Onde a paz é um deus
E Deus é a paz

Onde não existam causas violentas
Nem suas conseqüências cruéis
Onde a bandeira hasteada não seja cor de sangue
Derramado

Onde a canção é prece
Onde o diálogo é poesia
Onde?

Vôo para onde qualquer andarilho
Que saiba eleger bem seu caminho
Vá de encontro à satisfação

Onde cada caminhante
Não se veja em peregrinação errante
Misto de desespero e determinação

E onde o valoroso peregrino
Que se manteve em passos firmes
Note que seu fardo foi sua salvação

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Deserto Quente e Sangue Mouro

(ao meu pai)

Por Anderson H.



tuas dores,
dunas ao vento,
me arrastam.
.
não sou imune
à força
que te esfola
os joelhos,
.
não me ausento
do espelho
em que te penteias,
.
não me afasto
das tuas veias,
da tua carne
e do teu couro:
.
- o recorte
do sertão deserto
cimitarra
em nosso sangue mouro!
.
Anderson

terça-feira, 10 de julho de 2007

Convidado: Emerson Wiskow

A Sereia de Osório

Existe um conto do escritor Borges no qual um homem circula pela cidade sempre vestido da mesma maneira. Circula pelas ruas tranqüilamente, calmo, sem dar muita atenção para ninguém. Acho que sem dar atenção alguma. O homem tranqüilo, que veste sempre as mesmas roupas diariamente, que passa sem chamar a atenção de ninguém é apenas mais um pacato cidadão de uma simples cidade. Isso se repete por alguns dias, semanas, meses, até que numa certa noite dois policiais entram em sua casa e o predem. Motivo: O homem andava pela cidade completamente nu. Seu terno não passava de uma simples pintura sobre seu corpo. Genial. Borges havia acertado novamente.
Depois de escrever duzentos contos eu havia desistido deles, ou eles haviam me abandonado. Ou os dois. Estou de jeans, sem camiseta e tendando convercer Lulu que eu deveria estar louco em continuar tentando. Lulu me dava conselhos, dizia que era assim mesmo e que seria uma questão de tempo para eu voltar a escrever.
- Você ainda escreverá muitos livros.
- Sei...
- Gosto dos teus contos.
- Sei.
- Ei, lembra aquela história da sereia que você encontrou em na praia de Osório?
- Lembro.
- Aquela foi uma boa história. A mulher surgir na noite enquanto você caminhava pela praia. Você levou ela para sua casa. Uma história comum, mas boa.
- Foi uma
história verdadeira, mas mudei algumas coisas. Na verdade ela estava deitada na beira da praia. Era uma mulher, quer dizer..., tinha o corpo de uma linda mulher, mas sem o rabo. Quero dizer, sem aquele rabo de peixe. Aconteceu no meio da noite, na minha cama, quando voltei do banheiro ela estava lá. Ainda linda e nua, sobre a cama, depois de termos feito. Você sabe, então me deparei com ela com aquele enorme rabo de peixe, com escamas e tudo. Não sei como mas ela havia se transformado numa sereia. Tive um trabalhão danado para levá-la de volta para o mar. Ela me pediu, sorrindo, linda, iluminada pela lua. Quase chorei quando ela se foi.
- Isso é fantástico! Você quer dizer que aquela história é verdadeira?
- Isso mesmo. Eu dormi com uma sereia.
Lulu ficou quieta, pareceu que estava pensando naquilo tudo. Na sereia, nos meus contos, em tudo. Eu havia escrito 200 contos antes de eles me abandonarem. Porto Alegre dormia aos poucos.



Emerson Wiskow, 36 anos, natural de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Publica na internet desde 1998. Também é cartunista. Criou os blogues de contos Ovos de Touro; Homens, Mulheres e Seres Imaginários em Situações Imaginárias e Noites Quentes e Frias. Atualmente publica no site bagatelas (www.bagatelas.net) e no seu blogue Cavalos Não Correm Deitados http://wiskowcontos.blogspot.com/

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Bodas de Outono*


Consultou o relógio cogitando a hipótese de Janete haver desistido. Ele sabia que o atraso das noivas fazia parte de um ritual cumprindo a risca por dez entre dez mulheres, mas aquela demora o consumia em incertezas. Motivos para temer o abandono em pleno altar não ele não poderia deixar de tê-los, afinal, houve muita oposição da parte dos parentes da noiva em relação aquelas bodas. “Onde já se viu? Unir-se a um homem que mal conhecia?” tornou-se um bordão entre boa parte dos familiares da noiva que também definiam o casório como “um gesto de irresponsabilidade em dose dupla”. Entretanto, a futura companheira dobrara a todos se utilizando daquilo que Nestor logo percebeu ser uma das suas maiores virtudes: a teimosia. Casariam-se e ponto final. O resto “que se danasse” como Janete costumava dizer com singela naturalidade.

O noivo afrouxou levemente o incomodativo nó da gravata enquanto matutava sobre a possibilidade de Janete haver de véspera pesado os prós e os contras de uma união com aquele quase desconhecido e concluir pela desistência. Encarando de cima do altar as incontáveis cabeças humanas a congestionar o átrio da igreja, Nestor pensou no papel mais ridículo que ele representaria em sua vida medíocre se a cerimônia não se realizasse.

Recordou-se do primeiro encontro entre dois, em uma feira-livre, há algumas semanas, quando ele ainda lutava para acostumar-se ao vácuo provocado pela ausência da sua esposa. Desde a sua partida, Nestor descobrira o quanto fora dependente da mulher e o resultado desta submissão o tornara incapaz de lidar com as mais corriqueiras tarefas domésticas. Sempre fora homem da rua, provedor de uma casa que, ausente de filhos, funcionava satisfatoriamente sob o comando da companheira. Agora, além da dolorida saudade, tinha que, resignado, adaptar-se a sua nova vida e tentar vencer e o desafio que uma banal feira-livre poderia representar.Foi dela a iniciativa de aproximar-se e perguntar ao homem atrapalhando diante do dono da barraca de temperos se precisava de ajuda, depois de observá-lo confundir de modo patético um molho de salsa com outro de hortelã. Janete em minutos desvendou-lhe os segredos das especiarias, apresentadas a Nestor embrulhadas por cativantes sorrisos. Tímido, o homem agradeceu o que a princípio lhe pareceu certa intromissão de uma desconhecida, mas a simpatia que aquela mulher suburbanamente trajada e puxando um carrinho de feira emitia desfez a sua prelúdica má impressão. Em minutos, Nestor deixou a feira-livre com a leve sensação de estar apaixonado.

E era paixão mesmo, das boas. Desde que conhecera Janete, a ida semanal a feira tornou-se um acontecimento especial na vida de Nestor. Arrumava-se como se a um importante evento fosse, trajando roupas da melhor maneira aceitável para aquele ambiente, tomando cuidado de não destoar dos outros freqüentadores e tornar-se uma figura caricata entre as barracas de frutas e legumes. Quando avistava Janete, seu coração galopava de ansiedade. Forçava a coincidência do encontro e ia feliz em companhia de sua amada, trocando simpatias entre odores de peixes, reclamando dos preços em meio a temperos e hortaliças, falando mal do governo tendo como fundo musical o pregão dos feirantes.Um dia, Janete o convidou para irem ao cinema. Apesar de surpreso pela audácia do convite, ele alegremente aceitou. Nestor gostava de comédias açucaradas, Janete adorava filmes de terror. E na escuridão do cinema, entre gritos histéricos da mocinha perseguida por um psicopata na tela em cinemascope, o casal trocou o primeiro beijo. Na semana seguinte, no alto de uma roda-gigante, ela o pediu em casamento. Novamente surpreendido pela ousadia feminina, Nestor aceitou sem pestanejar.

Pendurado naquele altar, imerso em verdes recordações, Nestor envergava seu terno de missa, ensopado pelo suor que o calor daquela tarde-noite de verão produzia. Associava-se ao desconforto do clima quente o seu nervosismo em protagonizar aquele espetáculo sob risco de não se realizar.Suas dúvidas foram sepultadas ao ouvir os primeiros acordes da marcha nupcial invadindo a nave com Janete surgindo na entrada da igreja. Uma linda noiva, conduzida com seriedade pelo seu irmão preenchendo a lacuna deixada pelo pai falecido. Para Nestor, pareceu uma eternidade a distância percorrida pela futura esposa até o altar. Seu cunhado, um tanto contrariado, a entregou e, diante do sacerdote, os dois selaram sua união perante Deus e os mortais.

Festa simples. Bolo minúsculo onde não faltou o casal de noivinhos no topo, sidra ordinária estourada e votos de felicidades. Lua-de-mel mais parcimoniosa ainda, no quarto onde de agora em diante eles iriam morar. Estavam casados. Era o que interessava. O resto “que se dane”, pensou Nestor com sorriso maroto estampado na cara, deitado na cama de casal, na companhia do seu pijama novo, comprado especialmente para a ocasião. Janete saiu do banheiro vestindo sua camisola de núpcias encobrindo o corpo magro. Sorriu para ele. Nestor estendeu o braço direito e ofereceu o ombro para a esposa aninhar-se. Passaram a noite assim, abraçados, trocando confidências e juras de amor até que o sono os assaltasse. Quem precisava de sexo aos oitenta anos? Ambos haviam experimentado destes prazeres com seus respectivos primeiros cônjuges. Para aquele casal de agora ex-viúvos bastava a mútua companhia. O resto, inclusive os idosos, testemunhas da sua noite de núpcias, que ocupavam aquela ala dos dormitórios do asilo onde eles se internaram para viver o outono de suas existências, que se danassem.


*XII Antologia de Contos Albert Renart. Fundação Cultural Cassiano Ricardo (São José dos Campos - 2007)

domingo, 8 de julho de 2007

A velha Mocinha


"As trevas da mocidade cobrem de ignorância os sentimentos mais nobres e, no transcorrer cadavérico dos anos, as mãos tremem e afagam a face estapeada pela ingratidão. Mesmo aquele sorriso infante, teu orgulho de mãe, como uma flor esquecida, murcha e morre lentamente..." (Rebellis, Eduardo Borges)

Era uma velha baixinha, ossuda, de pele escura e um pouco encurvada. Aparentava bem mais do que os seus sessenta e seis anos. Parecia carregar o peso do mundo em suas costas magras, mas não se dava conta disso.
Mocinha vagava ao acaso pelas ruas, pedindo uma esmola aqui, outra ali. Usava um vestido preto e opaco, testemunha fiel de seus dias gloriosos de outrora. Nos olhos azuis brilhantes agora pairavam densas nuvens de tristezas e sofrimentos; nos cabelos amarelecidos pelo tempo outrora bem tratados trazia um lenço sujo e rasgado achado numa lata de lixo; as mãos antes sempre bem cuidadas, agora se exibiam enrugadas e trêmulas.
Em nada lembrava aquela Mocinha alta, de pele clara, cheia de vida, bem casada e com dois filhos maravilhosos, que havia sido nos melhores anos de sua existência. Todos haviam partido sem se despedir dela. Entretanto o momento mais marcante de seu passado ainda permanecia vivo em sua memória. Jamais esqueceria aquela noite de festa e alegria. Era o casamento de seu filho mais novo, o André.
Mocinha empenhara-se durante seis meses para dar ao filho e à nora aquela festa inesquecível. Cuidara pessoalmente de todos os detalhes. Sempre fora reconhecida na sociedade pela sua finesse e bom gosto para organizar festas e recepções. Queria que o filho tivesse orgulho dela. E a nora também, apesar da antipatia que uma nutria pela outra.
Mas ultimamente vinha-se sentindo um pouco cansada demais, esquecida de pequenos acontecimentos de seu cotidiano e notara um ligeiro tremor nas mãos, que atribuía ao nervosismo com os preparativos do enlace matrimonial de seu caçula. Era natural, pensava ela, pois afinal ia entregar mais um filho a outra mulher. O filho a quem aprendera a amar, cuidar e proteger em seu ventre depois de três abortos espontâneos seguidos. Mas ela insistira, apesar de todas as conjeturas negativas levantadas pelo médico. Seu útero tinha grandes dificuldades para segurar um feto, mas Mocinha contra todas as limitações impostas pela natureza desejava sentir as dores do parto e conhecer a sensação de ser mãe.
Fora uma vitória para ela quando vira a bolsa romper dentro do prazo previsto pelo médico e correra ao hospital com o marido para dar à luz. Mais feliz ainda se sentira ao constatar que o filho era perfeitamente saudável, robusto e lindo. Da mesma forma que Jorge, o primogênito. Ambos eram o melhor presente que Mocinha poderia ter recebido na vida. Amava-os de todo o coração como seus bens mais preciosos. Desejava para eles a mesma felicidade que experimentara ao vê-los sair de dentro de seu ventre.
Mocinha escolhera cuidadosamente o vestido daquela noite. Sempre gostara de preto, apesar de toda a superstição que envolvia a cor, principalmente em cerimônias como o casamento. Bobagem, pensava ela. Não compartilhava desses pensamentos e como uma mulher avançada vivendo em pleno século vinte deveria deixar para trás essas tradições antigas. Também não poderia ofuscar a noiva, embora ela bem merecesse, especulava Mocinha em seu íntimo. Como ela ousava roubar-lhe o filho a quem criara com tanto amor?
Mas não era hora de pensar nisso. O certo é que deveria se conformar, visto que já perdera o marido em um desastre de automóvel e Jorge, que se casara dois anos antes, agora vivia na Europa e não pudera comparecer ao casamento do irmão por motivos profissionais. Talvez devido ao nervosismo que a acometia, sentia-se nessa noite ainda mais trêmula que o habitual e não notara os sapatos trocados que calçara. Olhara-se ao espelho para conferir a maquiagem. Estava divina. Seu rosto havia adquirido ainda mais luminosidade com aquela nova cor de cabelo e o penteado sugerido pelo seu cabeleireiro. Os olhos escondiam uma centelha de tristeza pela perda do filho para aquela mulher a quem havia de considerar como parte da família dali para frente.
Precisava descer para rever os últimos detalhes. Os convidados já deveriam estar chegando à mansão. O casamento fora marcado para as vinte horas daquele sábado de maio. E de fato os salões principais já se encontravam tomados. Mais de quatrocentos convidados. Do alto do mezanino podia ver o filho postado diante do altar, aparentando um pouco de frieza, mas ansioso por dentro. Correu para tomar seu assento na primeira fila. A marcha nupcial encheu o ambiente. Ninguém pareceu reparar em seus sapatos trocados.
Sentia-se um pouco tonta e fraca devido ao pequeno esforço que fizera para chegar ao altar. A noiva vinha a passos lentos sobre o tapete vermelho. As damas de honra iam à frente demarcando o caminho. Mocinha acompanhava com o olhar perdido. Aos poucos as imagens que presenciava foram tornando-se opacas e sem viço diante dela e tudo começou a perder a cor, inclusive ela mesma, sentindo o corpo desabar de encontro àquele chão frio. Era tudo o que podia se recordar.
Três dias depois acordara em um sanatório. Esperara dias, meses, anos por Jorge ou André. Mas eles nunca mais apareceram. Nunca mais lhe enviaram notícias. Nunca mais se lembraram dela. E agora se encontrava ali naquela manhã cinzenta de outono. Ali naquele beco sujo e imundo catando sobras de uma vida digna. Se ganhava comida ou cama para dormir, sorria satisfeita e balançava a cabeça em agradecimento. Se ganhava algumas moedinhas limitava-se a contá-las e guardá-las no bolso. Se não lhe davam nada, Mocinha seguia em frente sem reclamar, mas com uma única esperança em seu coração após a fuga do sanatório: rever os filhos a quem tanto amor dedicara.
(Alessa)

sábado, 7 de julho de 2007

PERCEPÇÃO



Todos os dias tu postas o teu banquete.

Sentam-se contigo

Quem bem entendes.

Tú escolhes, e colhes

O sono frouxo desta digestão.

O riso fácil dos que tens à mão.

E de mim, tens , apenas,

A visão de que me reservaras algo que não pedí.

Perceba!...Tenho algo intangível,

Um humor crível

Que não tem etiqueta-de-preço.

Não me chames

Um dia eu apareço.

Não te custará cobre algum.

Virei , vestido de nobre,

Ou travestido de bebum.

Virei do jeito que eu quiser

E, não te custará um trocado qualquer.

Esse é meu preço.

Pois , do metal eu sempre esqueço

Quando a minha fome

Faz par à tua.

Faz verdade, meio cozida , meio crua

De almas que prefiro nuas

De mesas postas

De sono frouxo

De riso farto.

Sem preço

Sem etiqueta

Com quase nada que nos remeta

Ao círculo vicioso

Do pagar por pagar.

Perceba...

sexta-feira, 6 de julho de 2007

O vestido



Odiava esperar as coisas acontecerem, mas talvez por um momento, pudesse se permitir ser levada pela força do vento, esvaziar seus pensamentos e deixar-se como folha avulsa que se solta em idas e vindas lascivas.
Atordoada, não sabia se pela espera ou se pelo número de pílulas que tomara, Cecília entregava-se ao vento e como seu vestido de seda púrpura, ela ondulava, quase dançava, aquela leveza tomando-lhe a pele clara, sem a devida noção do tempo, não distinguia dia ou noite, se aquilo era real ou se era mais uma de suas visões.
Lembrou-se de César por um momento, parecia que nunca vivera sem ele, a impressão mais forte que tinha era que ele era uma constante em sua vida, mas com a mudança de vento, seus pensamentos mudaram de rumo.
Ateve-se ao vestido, olhava a disposição de suas saias e suas dobras, adorava aquele vestido, tinha vontade de dançar e sorrir. Em movimento de rotação, dançava sozinha e ria de si mesma, quase que embriagada de nada. De tanto rodar, sentiu vertigens e parou num movimento brusco. Ainda observando as dobras do vestido, se a vida tivesse dobras como suas saias, como descobrir onde começa uma coisa e termina a outra? Haveria uma linha intermediária entre o contemplativo e o ativo? Olhar as saias a agradava, mas rodar para fazê-las se movimentar era infinitamente melhor, a deixava tonta, mas realizada, leve como uma pluma.
Apetecia-lhe vislumbrar as coisas, mas a espera era inquietante. Não gostava de esperas, elas eram angustiantes e lascivas, talvez entediantes. Ouvia das pessoas a mesma reclamação, chamavam-na de inconseqüente, impaciente, e era mesmo. Precipitava-se ao primeiro sinal de perigo, feria para não ser ferida, fugia, para não se sentir pressionada.
Seria ela a única dona de seu destino? Será que tudo que lhe acontecera até ali teria sido apenas por suas escolhas mal feitas, ou por hora ter se tornado prisioneira de uma liberdade ilusória?
Finalmente estava no estagio que pretendia alcançar, a dormência, a gentil sensação flutuante de estar livre de qualquer amarra, tudo parecia ocorrer em seu ritmo próprio, o vento ganhava voz e sorrisos.
Seu vestido era roupa, apenas para seu corpo, para o vento não passava de um tecido, de um obstáculo que teria que transpor pra chegar em seu destino final. Aquelas dobras eram transitórias, ao menor movimento do vento ou de Cecília elas se desfaziam por completo, sem marcas, sem rusgas.
Quem dera fosse livre como o vento, dona de seu destino, quem dera soubesse fazer as escolhas certas, quem dera não tivesse que fazer escolhas. Tudo parecia confuso e claro, não havia liberdade, apenas um simulacro dela. Mas por hora, Cecília estava feliz com seu vestido.
Por um momento pensou ouvir a voz de Otávio, sentiu suas mãos suando e um desconforto vertiginoso. Ele perguntava, - Para que faz isso, Cecília, não sei mais como posso te ajudar!
Ela só tinha vontade de rir, mas estava fraca demais para isso.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

O regime

É genial observar como, com o passar do tempo, as regras inflexíveis são alteradas.
Há muito pouco tempo atrás, todas as farmácias traziam tabelas junto das balanças, que, num quadrinho, informavam que o peso ideal do homem seria a altura em centímetros menos cem, dependendo da a ossatura que poderia ser pequena, média ou grande. Para a mulher seria da mesma forma menos dez quilos. Hoje o peso ideal é calculado pelo IMC - Índice da Massa Corporal em que o peso, em quilos, é dividido pelo quadrado da altura, em metros. O índice varia dentro de limites máximos e mínimos de acordo com a idade. É fantástico por ser mais flexível.
Acredito sinceramente que o melhor índice é o da auto-avaliação com generosas doses de auto-estima em que o paciente se examina frente ao espelho e pergunta se faria amor com uma pessoa com aquele físico.
Tire toda a roupa, amor se faz sem roupa. Olhe bem. Belisque-se. Falta? Sobra? Acaricie-se. Faça uma pose. Valorize e admire o que há de bom. Melhore o que pode ser melhorado. Pergunte-se o quê ou como alguém faria para ficar mais interessante aos seus olhos. Copie. Não se preocupe tanto com a opinião dos outros, o principal é você se amar. A tarefa é muito grande? Parece impossível? Nada é impossível. Comece! Comece já! Use artifícios para se amar e se valorizar. Cuide das unhas, as dos pés também, mude o corte de cabelo, use um cheirinho gostoso, faça a barba ou se depile, aposente aquele velho pijama, use algo mais sensual, mesmo que esteja sozinho. Lembre-se que você está se produzindo para você. Fique ereto. A postura é fundamental. Pessoas que olham para o alto vêem o céu, o futuro, a alegria e a luz.
Olhe no espelho de novo, você deu o primeiro passo. Você se enxergou com um pequeno sorriso. Você se valorizou. Pequenos atos trazem grandes modificações, inércia não traz nada. Transforme em rotina os pequenos gestos que cuidam do seu corpo.
Não se acomode, caminhe. Coma com moderação. Isso vale para os gordos e para os magros. Tenha refeições criativas. Varie! Crie um horário para se amar, para fazer algo que seja para o seu prazer. Mude, pare de se queixar da vida e de se acomodar. Chegue em casa e ao invés de ligar a televisão, troque uma lâmpada, pregue um botão, adube o vaso, vá à cozinha e prepare alguma coisa diferente, uma farta salada ou uma panqueca. Arrume aquelas fotografias da gaveta. Organize uma pasta com as contas. Mexa-se. Deixe a panela cintilante, lustre seus sapatos. Dê um brilho no seu ânimo.
Qualquer gesto diferente vai trazer um resultado benéfico para você, você vai se amar mais.
Altere as regras inflexíveis.

※ ※ ※ ※ ※ ※

O regime - Comentário

Este texto é resultado de um desafio.
Eu estava num barzinho, já devidamente calibrado, e externando com a namorada meu desejo de crescer na escrita. Provoquei que seria capaz de escrever sobre qualquer assunto proposto. Julguei-me muito esperto, pois teria ao menos um dia para pensar e desenvolver o texto se ela apresentasse alguma sugestão naquele momento. Ela, inteligente, perguntou-me se eu seria capaz de apresentar o texto até as dez horas da manhã do dia seguinte. Raciocinei que apesar do álcool eu já poderia ir desenvolvendo o tema mentalmente. E de manhã bastaria digitar o texto. Topei. Aí ela disse: – Pegue a Veja na sua casa e leia o assunto da página 37, propaganda ou não, e desenvolva o texto.
Este foi um desfio de verdade. E, por conta do adiantado da hora e dos efeitos etílicos só li o artigo sobre regime alimentar às oito horas do dia seguinte. Às nove, enviei o e-mail com o texto acima. Orgulhosamente, senti-me vencedor.
Às vezes necessitamos de estímulos e provocações. É o que eu procurei transmitir no texto.

terça-feira, 3 de julho de 2007

Cancioneiro do meu vôo (por Cristiano Deveras)






Ela puxô meu coração pela goela
pegô nas mão e bejô
ele triste, mirrado e sozinho
desenganado de gostá
se esperançô
.
Ela ergueu ele pro ar
e assim lhe ordenô:
Volta agora, a voar!
criando asas com presteza
para o céu ele avuô
.
É tão bão voar de novo
depois de ter quedado do alto
se partido e morrido
de tê tanto sofrido
por amô...
.
Mais vale a esperança de um amô perdido
que a certeza de num sê querido
e por medo de tê o orguio ferido
fazê cara te ofendido
quando lhe perguntam se tá mal...
.
Bate asa e voa
que cair faz parte da vida...


.
Cristiano

Incógnita

Óculos,
nariz,
bigode.

Por cima um saco de pão.

Corada sob a maquiagem,

incógnita.

Multidão.


Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves

segunda-feira, 2 de julho de 2007

O BAR DO ESCRITOR SAIU NO JORNAL DIÁRIO DO SAPUCAÍ, NO SUL DE MINAS GERAIS.


Leiam a reportagem aqui:




ESCRITORES USAM INTERNET PARA DIVULGAR TRABALHO

O site de relacionamentos Orkut sempre aparece na mídia sendo alvo de críticas em relação aos possíveis danos que ele traz aos milhões de jovens que o acessam. Porém, não são apenas fatos ruins que acontecem no site, o Orkut também possibilita a divulgação de trabalhos e surgimentos de novos profissionais através das diversas comunidades existentes no site.
E uma dessas comunidades é o Bar do Escritor, que é composta por jovens escritores literários, sendo uma das mais ativas do Orkut. Ela foi criada por Giovani Iemini, conhecido como Mão Branca. No domingo retrasado (17) o Bar do Escritor foi até matéria do programa Olhar Digital, transmitido pela Rede TV (http://www.olhardigital.com.br/).
Segundo a descrição da comunidade, o Bar do Escritor é um lugar anárquico e sincero, tendo nas críticas embasadas, sua verdadeira vocação. Só posta lá quem tem coragem, é “louco” ou acredita em suas letras. É possível encontrar escritores empenhados em divulgar suas letras, como Me Morte, pseudônimo de uma escritora gótica, conhecida há um bom tempo na internet.
A comunidade é composta também por uma safra de jovens escritores de primeira linha como Cristiano Neto, Paulo Eduardo de Freitas Maciel, Roberto Klotz, André Espínola, Alessandra Bertazzo, Roberto Menezes, Leandro de Almeida, Eduardo Perrone, Larissa Marques, o poeta e músico Marcus Gonzalles, o escritor e artista plástico Quimas, Glauber Vieira e Ângela Padilha, escritora e funcionária pública de Pouso Alegre.
A comunidade no Orkut do Bar do Escritor ficou tão freqüentada que há pouco tempo foi criado um Blog (http://www.bardoescritor.blogspot.com/) e um Ezine (http://www.bardoescritor.net/) para os participantes divulgarem mais ainda seus trabalhos. De acordo com participantes, futuramente os textos, poesias, crônicas serão publicadas em um livro.


.
O Jornal Diário do Sapucaí tem uma tiragem de mais de seis mil exemplares por dia. No final de semana, no caso o exemplar publicado na sexta-feira, esse número de tiragem triplica. O periódico Diário do Sapucaí abrange mais de 17 cidades circunvizinhas, entre elas Poços de Caldas.
O jornal Diário do Sapucaí, ao contrário de outros jornais da cidade é o único que não utiliza matérias da internet. Todas as matérias são produzidas pela equipe de reportagem e sua sede está localizada em Pouso Alegre, cidade pólo do sul de Minas com população estimada em 2006 de 125.209 habitantes. De acordo com dados do censo de 2000, Pouso Alegre foi a cidade que mais cresceu no interior de Minas Gerais. Possui uma área de 545,354 km². (
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pouso_Alegre)












Me Morte







domingo, 1 de julho de 2007

Os ultracaras

Ele nasceu para a música aos seis anos quando viu um mendigo tocando gaita. Chegou-se para olhar as feridas do maltrapilho, escutou a harmônica, cada nota conversava um assunto. Descobriu, batendo um graveto contra uma grade de ferro, os tons e os sustenidos. As oitavas aprendeu num colégio de música.

Formou uma banda. Cada amigo tocava um instrumento: Ruivo a bateria, Neto o baixo, Marcelo cantava, e ele próprio como guitarrista. As músicas compunha sozinho mas deixava as letras serem completadas por algum membro para dividir a autoria. Cantava melhor que o vocalista e era melhor baixista e baterista, mas sempre guardava espaço em cada composição para um solo do colega. Gostava de dividir as atenções, era generoso por natureza.

- Qual vai ser o nome da banda? – Marcelo perguntou durante um ensaio.

- Ultracara, tchê. – O sotaque forte de Ruivo impostava sua voz. – Afinal, temos um ultracara como líder. – Abraçou o Lucas.

- Não sou o líder. – Resmungou Lucky e dedilhou a guitarra num zunido mágico. – Sou só um membro da banda. – Sorriu sincero. – O guitarrista! – Concluiu. Gostava de ser humilde, era importante para sua alma.

O talento do guitarrista, a beleza de suas músicas e sua perfeita execução pela banda logo chamaram a atenção dos fans. No dia seguinte a um show que foi filmado por um nerdezinho que o espalhou pela Internet, a banda já era cult. Dezenas de emails, ligações na casa de Lucas e um agente batendo à porta com um contrato.

- Não assino nada sem os outros membros da banda. – Disse na primeira entrevista à televisão.

- E qual é o nome da banda? – Perguntou a repórter, evidentemente excitada com o rapaz.

- Os... ultracaras. – Lembrou-se da sugestão do amigo.

A ascensão foi meteórica. Levados para a capital, logo foram elevados à condição de mega-star. O primeiro disco já saiu com um milhão de cópias vendidas. A crítica adorou e o público, curiosamente, também. As várias vertentes da música se sentiam lisonjeadas pela banda.

- É rock, é heavy, é pop, é reggae, é genial, é a expressão da nova geração... – O apresentador do programa de maior audiência no horário nobre fez uma pausa para aumentar a expectativa. – Os ultracaras! – Berrou a plenos pulmões superado em seguida pela multidão no auditório.

Durante a apresentação, Lucky percebeu que a câmera focava apenas nele. Passou o resto do show abraçando os companheiros e chegou a atrapalhar Ruivo com as baquetas. Riram-se do erro.

Nas entrevistas, respondia a cada pergunta citando algo sobre os outros caras da banda, pedindo opiniões e ajudas para as explicações. Sua humildade o demonstrava gentil, o que aumentava o fascínio sobre a banda.

Fizeram uma turnê mundial, visitando quarenta capitais nacionais. A banda era aclamada em todo lugar que fosse. Eram convidados para as mais excêntricas e luxuosos recepções.

Poucos meses após o primeiro disco, o baixista adoeceu de gripe. No hora do show o empresário apareceu com três músicos especialistas para substitui-lo.

- Sem chance! – Decretou Lucas. – A banda só toca se estiver completa.

Não houve quem removesse essa idéia do guitarrista. Ele não admitia fazer o show sem algum membro titular.

- Mas os fans? E o show? E o investimento? – Desesperou-se o produtor do evento.

- Adie! – Finalizou. – Só toco com a banda completa.

E assim se fez. Os ultracaras só se apresentavam com a formação completa, por exigência do mentor da banda.

A mítica sobre o conjunto aumentou ainda mais sua fama. Boatos diziam que fizeram um pacto com o demônio que os impedia de tocar separados. Lucky colocava mais lenha na fogueira ao responder nas entrevistas que seu talento estava unido a forças sobrenaturais.

Um dia, voltando de um apoteótico show num estádio, a van que levava a banda capotou. Ninguém se feriu, apenas o Lucky. Mortalmente. Nem chegou ao hospital.

A comoção popular ganhou pompa de evento de Estado. Alguns presidentes compareceram ao enterro. Até um rei árabe. Os dois discos lançados bateram recordes de vendas. Os fans, órfãos, lamentavam o futuro da banda.

- Tudo se acabou! – Choramingou o empresário, triste pelos lucros que não ganharia.

- Bah, que nada. – Bradou Ruivo. – Lucky nunca admitiu que tocássemos separados. Ele morreu, sobramos nós. Vamos tocar. Honrar sua memória.

- Mas quem tocará a guitarra? – Quis saber Marcelo.

- Você. – Respondeu Neto. – Toque guitarra e cante.

A re-estréia da banda sem o genial guitarrista foi cercada de desconfianças. Muitos reclamavam que os outros membros estavam desrespeitando a memória daquele que sempre exigiu a presença dos companheiros para qualquer show. Outros diziam que era uma bela homenagem.

A banda subiu ao palco sem muito alarde. Cada membro tomou sua posição antiga no palco, respeitando o espaço do amigo falecido. No primeira música deixaram claro que Marcelo só faria o acompanhamento na guitarra, sem as peripécias de Lucas. O som estava bom, ainda que simples.

De repente, num vácuo da música, onde o guitarrista faria um tremendo solo, uma microfonia arranhou o ouvido de todos. Ela durou o tempo exato. Os músicos continuaram, na parte do segundo solo, a mesma microfonia.

Alguns fans se benzeram, outros babaram de prazer ao presenciar uma manifestação sobrenatural.

No momento do solo final, a banda se esmerou na parte da cozinha do som, fez a deixa e ... microfonia. Nos momentos certos até aumentou o tom. A platéia entrou em júbilo. O baixista se ajoelhou enquanto tocava, Marcelo cantava de olhos fechados. A imagem correu o mundo no maior efeito de divulgação da história. Foi um sucesso.

Ninguém viu o empresário com o microfone de Lucky encostado na caixa de retorno. Ele provocou a microfonia. Sentiu-se feliz por entrar nos momentos certos da música. Até desconfiou que Marcelo tenha percebido o que ele fazia antes de fechar os olhos. Nos anos seguintes colheu os frutos do inúmeros shows da banda, que aumentou ainda mais a fama pois angariou como fans também os espíritas, os magos, os ufólogos, os teólogos, os jedaístas e aqueles que tinham curiosidade com o inexplicável. Todos iam aos shows esperando uma nova aparição.

Naquela mesma noite, Wander, o empresário, pegou o violão novo, colocou as cordas, afinou e tirou uns acordes. Tocou com segurança.

- Que fera. – Exclamou. – Isso é força.

Ele nada entendia de música. No dia da morte de Lucas sentara-se para dedilhar um violão em homenagem ao amigo. Lucky era amigo de todos. As notas soaram fáceis, parecia que um dom havia lhe crescido, Wander compreendia agora a música e era capaz de formar acordes. Surpreso, logo desconfiou que havia algo por trás do novo talento. Ele usava um violão elétrico ligado à uma caixa de 240Wolts.

- Lucky? – Perguntou em voz alta.

Microfonia.