domingo, 30 de setembro de 2012

Despedaçada


Do que estava inteiro, eu quebrei e despedacei. Quantas alucinações cabem num coração esfomeado? Em quantos podemos quebrar quem já está em pedaços?

Se a sua dor me atingisse, seria a minha menor?

Prefiro adoecer sozinha. Doer em prantos sensorizados com fundo musical. Mãos dilaceradas nos apertos e ruídos que não posso conter. Fogem de mim os barulhos que denunciam a loucura iminente. Não me olha assim. Olhar para mim diminui a dor do seu pranto? Fundamenta minha face reconstruída?

Sorrio hoje e todos os dias com a intrepidez de quem mente para viver, de quem mentirá a dor que sente e a felicidade que não possui. Sorrio e não me perguntarão o que me adoece.

Não há cura se a doença sequer chegou a existir. Não a reconheço, ela não está aqui. E de auto-ajuda eu me dilacero em negações eternas. Penso positivamente que todo esse pesar é brincadeira de esconde. Escondo o pranto, parto o tempo em dois e meus pesadelos travestem-se de sonhos coloridos. Cubro escombros com flores e deles finjo jardim.

Chamo de passado, mas não passou. Digo que está vivo, mas te encontro na morte. Desenho-o inteiro, no entanto, desloca seus ruídos em pedaços.

Chamo tristeza e, finalmente!, responde.

Ana Marques


Convidada Amanda Andrade

"Corpos unidos por um fio de prazer em apenas um sorriso"


Adão e Eva se amando.

A luz reflete o mármore que é a pele dela
seus dedos não resistem em tocar
em círculos lentos  
Uma expressão de surpresa
um suspiro ao som do ventilador
e os estalar das juntas
fazem o rosto bobo de amor 

A luz reflete os pontos sob a pele dele
seus olhos vermelhos de cansaço
de tantas horas se amando 
o frio entra 
e com um simples abraço 
ela o aquece
e com um roçar de línguas as palavras acabam-se
e o poema fica pronto
para que a noite de um quarto
viva escrita.
 
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sexta-feira, 28 de setembro de 2012

"Contos de Encantos"

O dia do nosso encontro será quando tu quiseres, será quando nós quisermos, será quando Deus quiser. Tudo está a fluir para o mesmo fim que nos propusemos. Nós somos o nosso segredo, nós somos um só, somos o desejo das nossas caricias perdidas numa idealização sem fim. Seremos o tocar dos nossos corpos carentes. Seremos um só para a partilha dos nossos entes queridos.

Quito Arantes in "Contos de Encantos"

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Duas faces







Faça um circulo de fogo em volta de um escorpião que de imediato ele se suicida. Mentira! Este artrópode não tem esse sentimento guardado em seus instintos. Ele morre pelo calor do fogo, ele se desidrata e, automaticamente, seu aguilhão se curva como se estivesse sendo encravado em sua própria carapaça. Mas bem que a ideia de que o escorpião se suicida é bem interessante, é quase filosófico, guerreiro, poético ou qualquer coisa dessas inventadas pelo bicho-homem.
Quando a pessoa diz: sou um escorpião! Ela quer dizer o quê? Sou um suicida? Um ser peçonhento e vingativo? Uma pessoa que não leva pra casa desaforo, que não aceita perder?
Então vamos conhecer o outro lado deste grupo de aracnídeo: Ele é um dos mais românticos na hora de se acasalar. Depositam seus espermatozóides (guardados numa caixinha) num substrato limpo e numa corte nupcial ele dança pra fêmea, até hipnotizá-la por completo com o seu bailado sedutor, aí segura-a pelas pinças e a traz até a sua caixinha de amor que é sugada por ela. O escorpião é um cavalheiro que dança para a sua noiva.
Então, eu entendo, que quando se diz ser um escorpião, talvez seja pela fragilidade do ser, pela maneira de se defender e pelo amor que tem pela fêmea. Não vou entrar, neste texto, no mérito da partenogênese - deixo pra outro dia.
Faça um circulo de fogo da paixão em volta de mim, que de imediato, eu danço a dança do amor. Neste caso sou um escorpionídeo.

sábado, 22 de setembro de 2012

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Primavera


Fresco aroma escorre

Pelos galhos encharcados.

Chuva em primavera.



Imagem da web: Claude Monet.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Convidado Eduardo Ferreira Moura

Ninguém

              Todo babaca acha que exerce uma profissão muito peculiar. É uma regra, quase uma lei, reescrita pela fala do povo todos os dias:
    - Taxista não é mole.
    - Vida de pedreiro é fogo.
    - Você não imagina como é ser esposa de cirurgião dentista.
    Todos acreditam que suas funções têm peculiaridades que as tornam únicas em meio a esse oceano de ocupações inventadas para resolver problemas que não existiam antes das suas invenções. Assim, todos se disfarçam de ninguém. E ninguém é feliz.
    Sou ajudante de entrega há três anos. Não vou cair no erro fácil de dizer que a vida de ajudante de entrega não é fácil. Até porque seria mentira. Há peculiaridades, mas não posso dizer que esses três anos na boléia do Guido tenham sido exatamente difíceis.
    Guido é o motorista. Ele não é de falar, por isso gosto dele. Não sei se ele gosta de mim, porque ele nunca disse. Mas acho que isso é gostar, no mundo dele. Também no meu. Nesses três anos dividindo a mesma boléia em silêncio, posso dizer que a gente se conhece bem.
    Então o caminhão bateu. Acontece, às vezes. A gente roda dez horas por dia. Dessa vez era uma manhã cinza e chuvosa de terça-feira. São dias muito tristes, as terças-feiras. Nós paramos no sinal e um idiota não. O Chevette bateu na traseira do caminhão. Pelo barulho imaginei que nossa lanterna havia quebrado e que a frente do carro havia sido destruída.
    Guido olhou para mim. Entendi, em seu silêncio, que devia conferir o tamanho do estrago e conversar com o idiota do Chevette. Sabia que se Guido descesse da boléia o idiota do Chevette nunca mais dirigiria nada que não sua própria cadeira de rodas.
    Então eu fui. Ele nem tinha saído do carro ainda, um Chevette verde-oliva repleto de podres na saia da porta. Ao lado do sujeito, uma mulher enorme de feia e terrivelmente gorda reclamava de qualquer coisa, acho que da vida. O sujeito, então, preferiu descer do carro.
    - Mulher feia, carro velho... A vida não tá fácil pra ninguém.
    Eu disse.
    - Pra ninguém.
    Ele concordou sorrindo amarelo. Precisava ser sincero ou ele não me pagaria o prejuízo da lanterna. Quase chorou ao ver a cara amassada do Chevette. Olhava para o pára-brisa e via a cara amassada da gorda e sentia ainda mais vontade de chorar.
    - Essa lanterna é vinte pratas. Já quebrou outras vezes. Mas eu reparei que hoje tá sendo um dia difícil pra você. Me dá quinze pratas e o resto eu tiro do meu bolso.
    O homem esvaziou a carteira, mas pagou. Enquanto eu voltava para o caminhão, ele voltava para os braços de sua amável mulherzinha. Para montar na boléia é necessário subir dois degraus. Enquanto eu fazia isso, meus rins doeram e eu gemi. Tem sido assim nos últimos dois anos. Tomei meu lugar no banco e coloquei o dinheiro no console do caminhão.
    - Quinze pratas. Dez pra lanterna, cinco pra cerveja.
    Mas Guido não sorriu.
    - Dor nos rins?
    Fiz que sim com a cabeça.
    - A vida não tá fácil pra ninguém.
    Ele disse.
    - Pra ninguém.
    Concordei.



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Eduardo Ferreira Moura
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Meu Desejo




Se te seco a boca, lagrimeja lábios meus
vem me do colo na arquitetura dos seus traços
passivamente atenta-me, viciando nítidos olhares
e ainda entendo que me recoloco, correndo para antigos abraços

Sabes de uma coisa? Eu estava a tua procura
me fortaleceram as pobres esperanças
me tragavam e consumiam os desejos, mas acordei cedo
antes da minha relevância

Será que quase nada seria integrado ao ignorante passivo
Na medida em que tudo poderá ser relevante
eu vivi, e na medida em que também sobrevivi
fui a prova marcada do meu amor intrigante

Sinto um sono referencial no que me parece roubar a alma
aquecendo-me o café quando nada satisfaz, apenas me retrai regurgitando aos normais
estou encurralado no xadrez azulado da tua saia à me veres frustado
tentando ser sincero para lhe dizer o que venero

Pois embora eu beba, ainda com os olhos de ressaca eu não te esqueça...

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Através do para-brisa

Eles discutem. Ele quer, ela diz que também. Ele vai.
Passa a semana. Ele não quer. Sente a ausência. Mas ela diz que está tudo bem, que precisa pensar. Diz que não quer a prisão. Ele sofre, mas ama. Pensa. Ela diz que pensa.
Passa outra. Ele ainda sofre. Ela diz que.

ELE: Oi.
ELA: Oi.
ELE: Quanto tempo.
ELA: Tá tudo bem?
ELE: Tá.

Não está. Ele ama. E o que fazer? Tem dúvidas. Rupturas nunca são indolores.

ELA: Vamos lá em casa no fim de semana.
ELE: Tem certeza?
ELA: Aniversário do meu pai.

Ele pensa. Quer ir. Diz que vai. Ela sorri. Ele acredita. Quer acreditar.

ELE: Como você tá?

Ele quer ouvir que está tudo ruim. Quer ouvir sobre sua ausência. Quer saber da angústia daqueles dias. Quer a narração do calvário.

ELA: Bem.

Que não vem. Ela diz sorrindo. Não há peso. Ele sofre, mas não balança.

ELE: Que bom.

Ele não pode mais. Mas insiste. Quer mais.

ELA: Tenho que ir. A gente se vê no sábado.

Ele confirma. Ela vai. Ele pensa.
Sofre, mas espera.
A semana demora a passar.
Ele espera.
É sábado. Ele vai. Ela sorri com a chegada dele. Ele depositou todas as esperanças naquele dia.
Ela não.
Dois beijos, um oi e um tenho que ir ali ver umas coisas. Ele percebe, mas decide ignorar. Não está calor, mas ele sente o ar irrespirável. Mas insiste. A festa segue. Ela ignora. Ele não entende. Pensa em tudo.
Um caminho tão longo juntos. Pensa nos bons momentos.
E olha pra ela. Ela sorri.
Ele começa a perceber o caráter maquinal daquele gesto. Percebe, então, que toda a lembrança boa omite duas ruins. E que nem tudo é perfeito e cor de rosa. Que as coisas dão errado. A reprodução dos gestos consolida a relação e corrói a alma.
Onde estaria sua alma? Pensa.
Sente uma fisgada no peito quando decide partir. Seria sua alma? Entrando ou saindo? Pensa em cada gesto repetido. E sorri, sereno. Decide ir embora, sem despedidas.
E vai.
No carro, antes de ligar, olha através do para-brisa. Finalmente, ele entende.
Não pode mais. E percebe que é só seguir.


GH


GH - O cara!

Naquela época, eu trabalhava em uma empresa média, mas que estava crescendo, com muitos negócios. A empresa tinha departamentos técnicos e também uma área de treinamentos. Eu trabalhava de dia na área de consultoria e de vez em quando dava alguns treinamentos de noite. Era bom pelo dinheiro, mas pesava um pouco, pelo cansaço e pelo tempo longe da família e dos amigos.

Mas tinha o GH. GH era um cara legal, conversava com todo mundo, era muito inteligente. GH queria dar aulas sempre, todas as noites. Por causa dele, a empresa criou uma fila para os instrutores serem chamados. GH topava qualquer curso, podia ser qualquer coisa, se ele tivesse uma semana, ele dizia que virava noites e se preparava. GH tinha sua própria empresa, além disso trabalhava no ministério, tinha clientes próprios. GH era O Cara! Durante um tempo, achávamos que GH ia parar com isso depois de alguns meses, mas ele não parava. Uns 5 meses depois, resolvemos querer saber porque GH trabalhava sem parar desse jeito. A primeira coisa foi saber que ele não tinha filhos, família em outra cidade e que a esposa era médica e fazia muitos plantões. Mas nada disso era o motivo principal.

GH tinha uma meta. Ter um milhão de reais com 40 anos. E depois ele ia curtir a vida, segundo ele. Ele sabia que tinha que se dedicar. Apesar de não concordarmos muito com ele, por ele não se dedicar nenhum diazinho para lazer ou amigos, era um plano interessante e ele trabalhava duro e honestamente por ele. Sábados e domingos ele também arrumava o que fazer e o milhão ia chegando, segundo ele. Acho que ele tinha uns 33 anos, naquela época.

E por mais uns dois anos enquanto trabalhei nessa empresa, quase todo dia a noite, lá estava GH para mais um treinamento, sempre feliz, ele parecia mesmo feliz com aquela escolha, apesar de nós, da equipe da empresa, termos sempre umas duas semanas livres entre um curso e outro.

Em mais uma noite, ao chegar o GH, falávamos com um amigo sobre viagens e férias. GH ouviu e foi logo dizendo: Com 40 anos, vou tirar férias eternas! E sorriu. Nós perguntamos quando ele havia tirado férias antes e ele disse: Desde 8 anos atrás, quando comecei meu plano, nenhuma vez mais. Ficamos até desnorteados e mudamos de assunto. Eu sei que férias é uma coisa que muita gente não tem, mas para quem trabalha 3 turnos por dia incluindo finais de semana, 8 anos sem férias pareceu como algo sobrenatural.

Eu saí dessa empresa e ainda ministrei uns cursos lá de noite e ainda encontrei o GH, sempre por lá. Depois de uns 4 anos, estava em um bar com alguns amigos e chegou mais um, um dos donos da empresa onde tinha trabalhado. Ele estava com a cara fechada, tensa. Antes que nós perguntássemos o motivo, ele disse: GH faleceu! Parecia brincadeira. Nós ficamos mudos. Ele continuou: Acidente de carro, foi pego de lado por outro carro e não resistiu aos ferimentos.

Ninguém dizia nada, mas acho que todos tinham a mesma coisa na cabeça: E o milhão? E as férias eternas?
Mais nada, não tinha mais nada. Nem agora, nem antes, nem depois. GH não viveu para viver e mesmo assim não viveu.

Hospício Moderno


Hospício Moderno

Fui levado
Fiquei louco e viciado
Louco de amor e viciado nas pessoas que amo
Coisa normal
Mas normal de louco atual
Agora é tarde
Só me resta aguardar
Que tudo mude ou acabe
Fui levado.....

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Família

Família sortida...sorte sua tia, tio, avó, avô, todos em harmonia.
Pai, mãe e irmãos...ótima rotina, falta faz a companhia.

Ao menos o sentimento não se esvai, cresce proporcionalmente à distância adquirida, não pela rotina, quilometragens construídas com pedras da vida, nem sempre perto do que é mais correto...a família.

Quando presentes...mil presentes compensando os ausentes e o tempo escorrido. Quando olhares...sem palavras, pois não é preciso...apenas um sorriso basta para a tristeza desistir, ir ao longe e a felicidade apresentar-se e presente ficares até o fim.

À minha família que tanto amo.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Convidada Elis Cassiano

Fugaz

Ouvindo Marina Lima cantando essa música, me inspirei escrever esse texto. Pensando no que é fugaz, cheguei às novas versões de “relacionamento” que estamos tendo hoje em dia. Sim, caríssimos, eu me incluo no discurso!!! E por que não???
         Usamos nossas melhores roupas, nosso melhor sorriso e vamos para os lugares mais badalados da cidade. Não queremos ficar sozinhos, então, jogamos aquele charme para quem desejamos e... lá estamos, beijando, abraçando e sabe-se o que mais. Antes do final da noite já nos despedimos ou encontramos outro ou outra.
         Os mais conservadores dirão que o amor é oriundo do tempo de convivência, da amizade, do carinho, mas será loucura dizer que os minutos ou até mesmo horas que passamos com essas pessoas produzem sentimento? Será um contra senso pensar que podemos nos conhecer melhor depois de passar por essa(s) experiência(s)? Ou será que viver isso é consequência da solidão em que nos encontramos e confundimos a efusividade do momento com um possível sentimento? Mais uma vez, uns e outros dirão que é tudo culpa da solidão, que é impossível gostar, se apaixonar ou amar alguém nessas condições.
         Não sou dada a responder perguntas, costumo deixar que o espírito e a consciência de cada um dê a melhor solução, mas hoje sinto que devo tentar solucionar esse impasse.
         Pesquisando na internet, descobri que a loucura ou insânia é, segundo a psicologia, uma condição da mente humana caracterizada por pensamentos e atitudes considerados "anormais" pela sociedade. Bem sei que o assunto é muito mais profundo e difícil de caracterizar do que consta na frase acima, mas estamos falando de algo que ainda não está sendo bem visto pela sociedade, então... com uma boa dose de abstração, estamos falando de algo louco.
         Não é loucura dizer que esses “relacionamentos” têm consequências maravilhosas: nos apaixonamos (isso mesmo!!!), nos apaixonamos, somos felizes, vivemos durante aquele fragmento de tempo, uma relação completa: fazemos carinhos, promessas que jamais serão cumpridas, olhamos nos olhos um do outro.... temos, em pouco tempo, o que não alcançamos em meses. O término não será doloroso, será com beijos e abraços e paixão.
         Nos tornamos conscientes da nossa capacidade de viver e deixar viver, de dar e receber felicidade.
         Não deem ouvidos aos que nos mandam esperar ou pelo príncipe encantado ou pela mulher ideal, mas também não se rebelem contra os seus conselheiros, eles dizem isso porque não têm coragem de abrir mão do sonho há muito introjetado neles. Chegam a dizer que beijar alguém completamente desconhecido não é para pessoas como nós.
         E o que é digno para nós???
         Esperar que batam na nossa porta com um buquê de rosas na mão e uma caixa de chocolates na outra perguntando: “Quer namorar, ou casar – caso prefiram assim – comigo?”
         Desista, isso não vai acontecer!!! O melhor é resgatar todo aquele ideário do carpe diem e ser feliz.
Se envolver e se separar sem dor, sem drama, sem compromissos para um futuro que talvez nem seja tão promissor assim é ótimo. Vamos viver a diversidade.
Enquanto vivenciamos essas pequenas paixões, nos preparamos emocionalmente para o amor de verdade, sem amarguras pelo tempo que passamos sozinhos.


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Elis Cassiano
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domingo, 9 de setembro de 2012

A TESUDINHA DO TORIBA E O LOURINHO TARADO DO LOTAÇÃO


Aos doze anos eu era um tesão
A gostosa do rabão
Todos me taravam
Despeitados escreviam “piranha”
Aos dezessete, namorei um macumbeiro.
Só beijinhos
Aos dezenove conheci um carioca, ainda virgem, casei e engravidei.
Tive dois filhos lindos
Comecei a fazer análise e aprendi a trepar
Estudei e me formei
Psicóloga com mestrado e doutorado
Li de tudo um pouco
Viajei o mundo
Transcendi
Meus pequenos cresceram
A vida seguiu normalmente
Aos 36 anos, separei-me do pai dos meus filhos.
Não podia mais mentir
Nunca parei de pensar no adolescente lourinho do ônibus
Sempre fui aficionada por ele
Eu tinha uns treze anos quando comecei a repará-lo
Ele era belo
Lembro-me dele 
Tarando-me a bunda
Encostado ao meu rabo no lotação
Sarrando-me durante o trajeto
Eu não falava nada
Descíamos do ônibus e subíamos a ladeira 
Juntos
Eu rebolando na frente
Ele seguindo meu rabo infantil 
Morávamos na mesma rua
Às vezes mergulhava na piscina do Toriba, um sítio de veraneio. 
Nessas ocasiões, banhava-me de roupa, o tecido molhado colava ao meu corpo, deixando-me transparente de juventude.
Em algumas situações, eu encontrava os olhos azuis do lourinho tarado do lotação fitando-me, ao longe.
Lascivamente imaculados
Vivemos nesse ritual por dois anos
Não trocamos palavras
Um dia ele se mudou
A existência pode ser sorumbática
Fiquei desconsolada de saudades
Dois anos depois, nos encontramos no Castelinho, um baile da cidade.
Ele contou-me ter pulado a janela pra me beijar
Amassamo-nos bastante
Beijos explícitos de vontades
Fiquei doida de felicidade
Ele falou que ia ao banheiro e sumiu
Nunca mais o vi
Grande perda
Uns vinte anos se passaram
Hoje tenho 37
Estou há um ano solteira
A vida é engraçada
Dias atrás, andando no calçadão de Ipanema, bati de frente com ele.
Seria inverdade dizer que tremi na base
Sou psicóloga
Sei controlar sentimentos
Mas fiquei encantada de veleidades
Foi rápido, estávamos atrasados pro trabalho, só trocamos telefones.
Ele disse que ia me ligar
Continuava um pulcro
Três dias depois, meu telefone tocou.
Era ele
Conversamos nossas histórias, ele me convidou pra sair.
Fomos beber um chope
Quando saí do meu carro, vi-o em pé com um copo na mão.
Abracei-o com desejo
Ele não ficou compelido
Sentamos e arrazoamos por horas
Fui arremessada ao passado
A paixão voltou como um tapa
Contei toda minha vida
Ele contou a dele, disse estar casado.
Não sou a piranha pichada nas paredes adolescentes
Nunca fui
Entre um chope e outro, ele tentou me beijar.
Ao mesmo tempo, não me permitia e queria muito provar nossa pornografia.
Ressaltava o fescenino dentro dele
Queria ser possuída
Não nasci pra ser a outra
Sou consorte afeita a relacionamentos
Essa idolatria púbere não me fez sair dos trilhos
Tenho objetivos
Roguei isso pra ele e disse ter de acordar cedo
Malogrei as possibilidades
Despedi-me e fui embora
O sol nasceu e morreu 
Eu pensava tê-lo perdido pela terceira vez
Agora, por opção.
Telefonei e perguntei se queria me ver 
Concordou
Marquei no meu consultório
Tinha um plano
Mandei a recepcionista embora
Preparei-me toda
Lingerie provocativa
Gostosa
Seminua
Fiquei esperando
Quando entrou e me viu, atacou.
Fodemos como as deusas libertinas encantavam os magos devassos
Após meu terceiro orgasmo, fi-lo gozar e fui pegar uma bebida.
Ofereci
Ele bebeu
Sentei-me à sua frente, vendo-o perecer, e pensando.
Não vou envolver-me com nenhum homem casado
Babando, ele balbuciou suas últimas palavras: “Eu me separei”
Era tarde
Chorei com a certeza do fim
O adolescente lourinho do ônibus, jamais. 
Traventa peçonha
Eu o matei

Pablo Treuffar
Licença Creative Commons
A TESUDINHA DO TORIBA E O LOURINHO TARADO DO LOTAÇÃO de Pablo Treuffar é licenciado sob uma Licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported.
Based on a work at http://www.pablotreuffar.com/.
A VERDADE É QUE EU MINTO

A VERDADE É QUE EU MINTO

sábado, 8 de setembro de 2012

ao sul do equador



Arte: Alexandre Lanoia


Ao sul do equador,
Minha querida
Fica o pecado

Aquele que oferto

Espera-te resiliente e quieto
Numa caixa perolada

Prometo um vício repaginado
Originalmente inexistente
Falado numa língua diferente

Na tua

Naquela que desliza
Tudo que falo

Doer
Latejar
Piscar
Devorar-te
Ao sul do equador.

Dizem

Há cinquenta tons de cinza

Eu vejo claramente
Penugem escura

Dormente

Tuas lambidas distantes
Distraídas e inconsistentes

Ao sul do equador
Tudo gira

Sem as dores
Sérias de Eva

Sem os amores de Maria

Resta-me
Afundar no umbigo de Lilith
Alimentar fogo com fogo
Antropagia!


terça-feira, 4 de setembro de 2012

As Time Goes By



No meio do saguão do aeroporto, o trique traque trique do salto alto de Alice denunciava o nervosismo pela demorada espera andando de um lado ao outro. Ele haveria de passar por ali, tinha certeza que embarcaria para algum lugar paradisíaco, distante, intocável, onde as palmeiras dançam ao som vento e o céu anil beija o mar no horizonte, provável fundo de algum cartaz de agência de viagem. “Como fui estúpida!” — pensava emburrada consigo. Ela o procurara durante anos e quando finalmente o encontrou, deixou que escorresse pelos seus dedos longos, saindo de cena com aquele ar de cavalheiro de outros séculos e o charme blasé de filme de quinta.
Aquilo implicaria péssimas consequências: de nada adiantaria seus protestos invocando todo o afinco que empenhara, as noites sem dormir, observando-o todo momento, mantendo-o como única meta, sendo praticamente sua missão de vida. Aquilo lhe custara a inimizade de amigos e o desgosto dos parentes; estar tão focada naquele homem, nutrindo-se de tudo o que se referia a ele, buscando de todas as formas entender seu pensamento e como se adiantaria aos seus movimentos, estando sempre um passo à frente, preparada para ele. Não, nada daquilo adiantaria: seria culpada, ou pelo menos suspeita de ter provocado ou — e porque não? — ter sido a idealizadora daquela verdadeira fuga.
Retornou ao café, comprou cigarros, fumou a impaciência, tragando cada minúscula faísca de ansiedade. Olhava desesperadamente a multidão que ia e vinha, lembrando cada contorno daquele rosto másculo, o queixo quadrangular, habitat natural de uma barba de eternos três dias, os olhos claros recheados de promessas — vazias, na grande maioria, quando se deu conta de que o hangar dos jatinhos seria o local onde deveria procurá-lo.
Alfredo sentia-se muito bem naquele momento. O adocicado cheiro da liberdade invadia suas narinas; como é bom estar livre e saber-se acima das pequenas vicissitudes da vida podendo escolher o que e quando fazer algo, pelo puro prazer de poder. Parado ao lado do LearJet, imaginava-se como um Bogart moderno: o copo de whisky, um piano de cauda, sua música favorita sendo dedilhada com singela maestria. Ao piano, estaria Jobim, por conta dos ares nacionalistas. Faltava somente uma Ilsa para fazer o pedido em sussurro:
— Toque uma vez, Tom. Pelos velhos bons tempos.
— Toque, Tom. Toque “Chega de Saudade”.
Foi levado no pensamento de tal maneira que começou a cantar:
— “Vai minha tristeza, e diz a ela que sem ela...
Despertou de seu sonho acordado pelo acompanhamento não esperado no final, vindo na forma de uma voz de veludo:
— “Que sem ela não pode ser”.
Parada em sua frente uma bela loira, versão tupiniquim de Ingrid Bergman, tomava-lhe já a mão:
— Você possui uma voz maravilhosa, senhorita...
Subitamente sentiu o frio do aço cercando-lhe o pulso: Alice — respondia com um sorriso maroto — Delegada Alice Miranda, Polícia Federal. O senhor está preso por desvio de dinheiro público.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

atemporal



os segundos suspensos
soam horas infindas
e passou pelas portas
estreitas que sustentam
meu átrio

como sair ilesa
de seus olhos
como guardar a ânsia
dos cinco minutos
se eles folgam horas?

domingo, 2 de setembro de 2012

Iniciática

Esgarça
a gaze branca que me cobre.

Na meia-taça
derrama qualquer bebida,
mesmo a menos nobre.

Tinge de chamas, aguardentes,
se embriaga em auréolas rosadas
- de anjo elas não têm nada -

Asas caídas, no meu céu ungido:
Segue esse líquido até perto do umbigo.

Percorre um Zênite, a anca
junção do Elísio e Inferno,
e dorso-ventral
e inversamente
desemboca sua boca na nascente.

Absorve o seu Karma
meu gozo e presente:

Absolvo sua alma,
conservo seu corpo,
éter e semente...


sábado, 1 de setembro de 2012

A maldição do Bar do Escritor


Em filmes de terror, criticamos os personagens que reagem imbecilmente à situação alarmante e colocam-se em risco por imprudência ou descrença. Se percebessem que vivenciam uma maldição, poderiam safar-se simplesmente evitando-a, mas aí o filme perderia a graça.
O Bar do Escritor sofre uma maldição. Os fatos estão comprovados, mesmo que o motivo ainda não esteja claro. É o seguinte: a cada antologia, um escritor morre precocemente. Na primeira foi Angela Oiticica, na segunda Heloísa Galvez e na terceira Osmar Prestes Ruivo.
Nessa última, quando eu já notava a infeliz coincidência sobre as duas primeiras mortes, quase tivemos a participação de um escritor que faria uma operação cardíaca de alto risco. Ele desistiu na hora derradeira, o que me aliviou, por um lado, pois não seria ele o morto, mas me deixou muito tenso, por outro, visto que se minha percepção se confirmasse, alguém morreria do novo grupo de antologistas.
Por um tempo ponderei , enquanto preparávamos a Terceira Dose, que talvez pudesse ser eu mesmo o tocado pela fria mão da indesejável. Até comentei com o lugar-tenente Cristiano Deveras que, se eu morresse, ele não deveria continuar produzindo as antologias, a não ser que só convidasse petistas, sertanejos e poetas rimadores de dor com flor e amor. Esses, sim, mereceriam a maldição.
Agora organizamos a quarta antologia, intitulada Tomo IV. Nosso filme de terror passa livremente na tela das nossas cabeças. Seremos criticados por nossas reações imbecis? Devemos simplesmente evitar o perigo sobrenatural cancelando a antologia, para que possamos viver felizes para sempre ou, ao contrário, vamos enfrentar o imponderável para chegar ao fim do filme como heróis sobreviventes combalidos?
Não sei. Realmente não sei. Só sei que, se essa história de maldição é real, precisamos descobrir o motivo para, então, tentar revertê-lo. Talvez tenhamos alguma chance, se agirmos com cautela e perseverança. Sei também que, se eu for o escolhido desta rodada, preparem-se! E amedrontem-se!
Voltarei para o lançamento. Huá huá huá.