quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Convidado: Leonardo Marona

“25 anos” (poema para ser escrito aos 70 anos)

eu passava
leite de aveia
nos bagos
para que tudo
estivesse muito
limpo caso algo
de inesperado
acontecesse.

e raramente
algo inesperado
me acontecia.
mas quando
por algum acaso
acontecia algo
os bagos estavam
sempre sujos.


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Leonardo Marona - gaúcho, 25 anos, alcoólatra, gremista, mora no Rio de Janeiro e escreve para alguns sites: http://crondia.blogspot.com/ (Crônica do Dia)
http://jornal-vaia.blogspot.com/ (Jornal Vaia)
http://www.bestiario.com.br/ (Bestiário)
http://www.escritorassuicidas.com.br/ (Escritoras Suicidas * sob pseudônimo)".

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

PAPA-ANJO

Instintivamente, cravou-lhe um beijo.

Destilando sadismo pelo ouvido da garota, desceu língua pelos seus mamilos enquanto bolinava sua pequena vulva. Cheirou profundo os dedos, lambeu-os. Impelido pelo corpinho novo de menina, estocou profunda e cadencialmente seu pau naquela gruta já providencialmente umedecida por cuspe. Pediu-lhe posso gozar em sua boquinha, anjo?, lambuzando-a em abundância com seu sêmen velho e doente.

Fechou zíper e, ainda ofegante, cobriu o corpo, guardando-o com desvelo em uma das gavetas do iml..

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

O encontro



Como é estranho
O que sinto no coração
Sem medo e sem culpa
Vivo cada vez o amor

Nossas almas se misturam
A cada encontro
E nos perdemos num mundo
Que é só meu e seu

O tempo não existe para nós
A distância não separa
O compromisso aumenta a saudade
Sendo cada reencontro uma alegria

Amor,eu sei que o nosso tempo não é o bastante
Mas, saiba que sempre estarei com você

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Dormindo com o vazio


Se o fogo consome
Jejuns diários
Castro lírios negros
Não para comê-los
Mas para desvirtua-los
do meu esboço amoroso paranóico
O meu amor não começou
Perdi a memória em um quintal esburacado
E talvez no buraco
Anjos sussurrem em segredo
Amor apocalíptico degenerado
Lacrei o coração depois
Que Joana D´Arc ouviu a voz de Deus
Ou quando minhas asas cor de carmim
Foram decepadas
Mágoas traficadas
e declarações expulsas da praça
em que eu caminhava
Cantando odes á chuva

Sorvo o amor alheio
Voyer lunática das esquinas
Minhas cartas viraram testemunho
de crimes sórdidos
E febre vermelha

Devolvam minhas asas!
Recompenso com um punhado de lágrimas secas
Na moradia confortável do caos
Suspeito onde se esconda Eros
Espero,forjando tramas diabólicas
Ou uma camisola rosa
Para me deitar com o vazio.
Imagem:autor desconhecido

domingo, 27 de janeiro de 2008

ANÚNCIO

A ONG Made in Brazil, que atua na valorização da língua portuguesa, procura trainees para atuação em todo o país. Não fique out dessa chance e torne-se parte de nosso cast! Se você é uma pessoa in, pode se informar em nosso call center: 0800 1717171.

sábado, 26 de janeiro de 2008

Coisista ou A crônica do Eu

Eu sou um “coisista”. Passei, depois de tanta cobrança, a me considerar bom nas coisas que faço. Em geral sou mesmo um bom “coisista” – sujeitinho que tenta fazer de tudo. Muita gente está no meu pé discutindo comigo essa questão da humildade e da modéstia. Humildade é uma coisa que eu posso até ter, sabe, em uma zona morta do meu cérebro. Já modéstia não, sinto muito, não sou nada modesto, afinal nunca ganhei nada sendo assim e se perdi, foi algo que não fez diferença alguma em minha vida.

Acredito que não saberia viver em um lugar parado, um lugar rotineiro, monótono. Sou da cidade, sempre fui. Gosto de prédios, carros, motos, poluição sonora. Sou citadino ao extremo. Gosto de sair da aula por volta das nove e uns quebrados da noite apenas pra sentir o vazio das ruas depois de um dia inteiro de funcionamento das lojas, das barracas, dos frigoríficos, das bancas de revista, dos colégios. Gosto de ouvir o aglomerado de sons diferentes que se passa no meio do trânsito. Gosto de ir tomar café às pressas pra voltar à aula e, se a vontade for maior do que a força em minhas pernas, gosto de passar em um sebo de livros usados e sentir o cheiro da poeira e do ácaro daquelas folhas que estão ali há anos, mesmo que isso me custe uma semana ou duas com crise alérgica.

Eu me apaixono toda semana, mudo meu sobrenome todos os dias. Tenho um sério problema de memória. É muito comum, pelo menos no meu caso, acordar pela manhã e não saber que dia é.

Desde quando passei a observar o que acontece ao meu redor, de perceber as situações inusitadas do cotidiano, meus sentidos parecem mais aguçados. Consigo descrever o que vejo com muito mais facilidade. Posso colocar no papel acontecimentos em minha vida e transformá-los em situações universais, problemas que afetam todo e qualquer tipo de pessoa. A cidade parecer ter notado o meu avanço. Arriscando um tom poético eu diria que a cidade parece corresponder ao que sinto. Nunca consegui explicar todas às vezes que me pego com baixo-astral, com baixa auto-estima, ou até mesmo infeliz e por coincidência está chovendo. Ou quando recebo uma notícia boa, quando me alegro por um amigo que ligou pra dar um sinal de vida e lá está o tempo limpo, perfeito, o céu, as nuvens, tudo em harmonia com meu corpo e com minha mente.

Não são raras também as vezes que as estrelas sumiram à noite quando não consegui me concentrar para escrever ou compor. Ultimamente tenho me encontrado em paz de espírito (se é que isso existe), tenho aproveitado os momentos bons e os momentos certos, mesmo que durem pouco. E vocês notaram aquele dia que fez um calor danado? Só pode ser esse sol, cada vez mais forte.



06.06.06

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

o orkut de banheiro

O ORKUT DE BANHEIRO


Odiava profundamente aquele trabalho e tudo o que este lhe proporcionava: a dura missão de acordar antes dos galos mais pontuais, o salário minguado ao fim de um mês de largas contas, a rotina enfastiante de suas palavras diárias em forma de mantra: “- bom dia, senhor. -Boa tarde, senhor. -O que deseja, senhora? – Posso ajudá-la?”
Queria que todos fossem para o mais profundo inferno, toda aquela corja de institucionalizados que o cercava! Não nascera para aquilo, tinha a cruel certeza de que a escravidão já havia acabado, ou apenas,começado de uma maneira ainda mais sórdida, pois,sentia que recebia sua remuneração para fomentar o capital, num ciclo diabólico.
Foi com este pensamento mórbido que adentrou o halll do hotel mais caro da cidade, onde prestava seus inúteis serviços de mensageiro.
Mas, naquele dia, algo diferente acontecia em seu interior: uma profunda dor de barriga o desconcertava de seus planos sombrios de explodir o estabelecimento com uma bomba acoplada ao seu corpo.
Era forte demais, não dava para segurar. Correu para o banheiro de serviço, apertando as pernas para a merda não sair e contorcendo-se em cólicas.
Mal sentou-se no vaso imundo e despejou todo seu lixo interior naquela latrina que tanto evitava; jamais defecara ali, recusava-se a misturar sua bosta a dos demais serviçais.
Relaxou por um instante sua mente e deteve-se à porta do compartimento, que continha alguns rabiscos em letra de imprensa: “se você esta entediado, entre em contato comigo- sou gostosa e sei levar um homem à loucura. Deixe seu recado abaixo e entrarei em contato”.
Gostou da brincadeira, bobagens à parte, mas aquela criatura parecia desprendida e ousada, bem diferente daquelas bestas abissais, que se orgulhavam de contar quinze anos de casa exercendo a mesma função.
Respondeu à altura da conviva: “Quero conhecer-te, também sei levar uma mulher à loucura. Como você é?”
Ficou o resto do dia ansioso e preocupado, indo ao banheiro de dois em dois minutos. Chegou a achar que estava ficando perturbado, mas já fazia meses que se achava louco, então, isso não faria a menor diferença.
Entrementes, parecia que sua mensagem não havia sido recebida com sucesso e naquele dia não havia nenhuma resposta.
Foi embora cabisbaixo, pela primeira vez em dois anos, não vestiu a roupa ao avesso por conta da pressa em sair daquele ambiente inóspito.
Mas, ao contrário, ainda passou uma última olhadela pela porta de recados, sem encontrar nenhuma novidade.
Passou o resto do dia deitado no sofá confabulando a respeito de quem seria a musa do recado. Em sua mente, tratava-se de uma bela mulher disposta a amá-lo incondicionalmente. Refutava qualquer idéia contrária ao seu desejo.
No dia seguinte, chegou uma hora mais cedo que o horário, correu para o banheiro e sentou-se no vaso à procura de seus scraps e, lá estava, a mesma letra de outrora: - Olá, vejo que nos demos bem! Sou loura e tenho uma buceta molhadinha te esperando. E você como é? Fale-me apenas de seu pau! Beijos Nana.”
Ficou excitadíssimo, sentiu seu membro latejar dentro das calças ao imaginar uma funcionária gostosa, com uma buceta bem lambuzada para recebê-lo.
Respondeu à altura, enquanto olhava seu pênis crescer em suas mãos sedentas: “Meu pau é enorme, grosso e está bem rijo para recebê-la. O que você quer fazer com ele?”
Assim, masturbou-se vorazmente, enquanto imaginava a loura cavalgando seu cetro até fazê-lo gozar vorazmente.
Demorou exatamente uma hora e meia para sair do local e conseguiu bater o cartão atrasado, mesmo estando já no recinto de trabalho.
Passou o dia em eternas idas e vindas ao banheiro à procura de seus recados “calientes”, os colegas passaram a achar que um forte mal se abatera sobre o pobre.
Alguns especulavam a respeito de um possível câncer de próstata ou intestinal, que o obrigava a ir tantas vezes à “casa de banho”.
Mais uma vez, a sujeita só respondeu no dia seguinte: “Gostoso esse pau, como fez para secar a porra ontem? Imagina o que não farei com você ao vivo! Também toquei uma siririca pensando em seu caralho! Beijos, até amanhã. Nana”.
Agora sua rotina mudara, só pensava em como seria a tal Nana e em ir ao banheiro sempre que possível, o que lhe rendera um esporo do gerente: “Samuel, o que esta acontecendo? Se você esta com incontinência urinária ou renal, isto não é um problema nosso, tire férias ou coloque uma fralda geriátrica!”
Mas, a reclamação não foi o bastante para demover seu desejo de correspondência semi-virtual- os recados se seguiram semanas a fio, ao ponto dos correspondentes colocarem uma setinha indicando que o discurso continuava na porta seguinte e assim os dois encheram três portas distintas e algumas paredes.
Os dois travaram um relacionamento “virtual” sem medidas, ao ponto de evoluírem das juras de sexo selvagem às juras de amor eterno.
Mas, Samuel já não continha seu membro dentro das calças de tanta curiosidade e seu coração quieto dentro do peito de tanto amor. Já não via mais sua Nana somente como uma loura bela, mas também como uma criatura amável e meiga.
Não raro, os dois falavam sobre suas angustias e tristezas através das portas virtuais e consolavam-se mutuamente desta forma.
Foi assim, certos do possível amor e desejo que os unia, que a tal Nana aceitou marcar um encontro na suíte do hotel, com a condição de que seria a mais cara e de que ela mesma bancaria a conta.
E ainda, que tudo se realizaria na penumbra, na mais profunda penumbra.
Na noite combinada, encontraram-se na tal suíte presidencial, amaram-se desesperadamente, como se fossem antigos amantes separados pelo tempo e pela distância.
Pelas formas de seu corpo escultural, ela parecia ser de “parar o trânsito”. Seu cheiro floral era inconfundível e sua voz, um canto lírico medieval a retumbar pelos cantos do quarto.
Ele jamais imaginara que aquele local poderia lhe proporcionar tamanho prazer, bem como, nunca passara por sua torpe mente que um dia entraria ali para pernoitar no quarto mais caro.
Desta forma, seguiram-se todas as noites do porvir, numa entrega de corpos e descobertas jamais vista, seguindo-se aos recadinhos melosos nas portas dos banheiros a cada noite compartilhada.
Samuel não conseguia parar de imaginar aquela mulher tão encantadora, que ele aprendera a amar através do tato e das palavras.
Ele já não dividia mais seu tempo entre o banheiro e a casa, mas, agora vivia flanando pelo hall do hotel, como se voasse em lufadas de vento.
Foi assim, imerso em seus devaneios, que sentiu-se tomado pelo cheiro inconfundível de suas últimas noites. Seu corpo estremeceu, olhou para trás e viu uma loira maravilhosa, elegante e sensual descer as escadas.
Não teve dúvidas, era ela! Correu ao seu encontro para abraçá-la, mas foi detido pela voz do patrão: - Mensageiro, prepare o carro da Doutora Ana rápido, minha esposa, pois estamos atrasados, temos um vôo para a Bélgica.
Cambaleando, o preposto tirou o carro da patroa, abriu a porta para que ela entrasse, olhou-a mais uma vez, atônito com sua indiferença e balbuciou: -Vá com Deus, senhores.
Sentiu escorrer uma lágrima de seus olhos ao ver o carro partindo, quando leu o adesivo no vidro traseiro: VOTE EM NANA PARA VEREADORA. A MULHER DO POVO!

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

VIVENDO A MORTE

[Fonte Foto]

Estava Gonçalves Dias
No seu exílio eterno,
Apreciando as andorinhas
Fazendo verso

.
Gritou Aluisio de Azevedo:
- Êi, poeta!
Ao fim da luz poente
Dias o abraçou com festa
Azevedo chorou contente
.
Passeavam pelo cruzeiro sul
Brincavam de colher estrela,
Num dia de céu azul,
Viviam a morte sem tristeza.


Lena Casas Novas

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Quando a alma desintegra.


Escrevo um poema banal
de espírito, rimas e regras

um grito solitário na selva
diante dos famigerados poetas

Nele
A flor não existe
A luz é negra
Não há estrelas
A dor espelha




A alma desintegra.



(Sirlei L. Passolongo)


segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Naufrágio




Fitam-me meus olhos
Arrancados pela neblina
Do arranha céu mestiço
Do enxágüe de tantos corpos.
Espelho d’água salgada, derramada
Em fios castanhos ondulados, à deriva.

Na corrente fixaram-se os olhos
Ancorados pelas rochas e trapiches.
O olhar naufragou
Impregnado de mercúrio e selênio.
Nada no rito do candelabro de luz fria
Diluído na tinta das marés.
Passageira Selene, presa terrena,
Com uma das faces marejada.


foto: Angela Gomes.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Convidado: Roberto Bolaños "Chespirito"

Mi mejor amigo


No me pasa inadvertida
esta verdad singular:
yo he tenido que cargar
conmigo toda la vida.
Verdad incontrovertida
que con prendas de egoísmo
se disfraza de heroísmo;
pues hay que tener paciencia
para librar la existencia
cargando con uno mismo.

En ningún momento dejo
de ser yo mi compañía.
Y miro día tras día
al mismo hombre en el espejo.
Tal vez un poco más viejo
y un poco más arrugado.
Más inútil, más cansado,
más sordo, más soñoliento,
más distraído, más lento;
en resumen: más usado.
Pero hay algo singular
dentro de esta situación:
la costumbre da ocasión
para contemporizar.
Por ello he de confesar
que el tanto vivir conmigo
justifica lo que hoy digo
a modo de confidencia:
que a fuerza de convivencia
yo soy mi mejor amigo.

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Roberto Gómez Bolaños, lançou recentemente dois livros: "...Y Tambíén Poemas" (com poesias de sua autoria) e "Sin Querer Queriendo - Memorias" (autobiografia). Seu maior sucesso literário é "El Diario del Chavo del Ocho" (1995), lançado no Brasil em 2006 com o título de "O Diário do Chaves". Chespirito, que procura tocar um hobby que sempre sonhou - nada relacionado com os seriados que o consagrou (no Brasil: Chaves e Chapolin Colorado) - de escrever contos eróticos, atualmente sofre com problemas de saúde, pois perdeu a audição do lado esquerdo e luta contra um enfisema pulmonar, resultante de 40 anos em que foi fumante.

fonte:http://www.turmach.com/

sábado, 19 de janeiro de 2008

Convite...

Deixo um convite para visitarem a página Poetas del Mundo (http://poetasdelmundo.com/verInfo_america.asp?ID=3493) onde alguns dos meus poemas foram traduzidos para o árabe pelo poeta Youssef Rzouga (http://poetasdelmundo.com/verInfo.asp?ID=935) e onde ganhei mais um espaço.
Talvez queiram participar.


Aqui um dos poemas que lá estão:


Instantâneo

O tempo mala da saudade
Brinca ao amanhecer
Nos olhos da menina
E à tarde lágrimas
Banham a mochila do anoitecer
Com cores inexatas
Onde brota uma azaléia
Medrosa cor
(corpo de mulher)
Na busca do amor

Eliane Alcântara.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Adeus Olinda

No Diário Oficial da União
Da minha vida,
Sancionou-se o Decreto-Lei
Que extinguiu Olinda.

É como se voltasse no tempo
E o vento sussurrasse
Ao ouvido de Duarte Coelho,
Lá no Alto da Sé,
Para não exclamar "Oh Linda!",
Pois no futuro estão reclamando.

Sim, eu sei que a cidade
Dá saudade
Aos foliões turístas

E encanta quem canta
Os frevos pelas ladeiras
Íngrimes.

- tão íngrimes como a da Misericórdia
onde até lagartixa
ao subi-la
cai de costas -

Mas Duarte Coelho não havia visto
O sol bater nos teus olhos
No alvorecer.

Nem mais ninguém.

Por isso no meu Diário Oficial
Olinda feneceu com seus
Encantos.

E agora ao ver-te
Vou sair pelas ruas frevando:

"Oh linda,
Quero cantar..."

André Espínola

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

A CIGANA

Num instante os ciganos se instalaram no descampado. E, sem demora, aquele pedaço de chão tornou-se colorido, azafamado, ganhou uma vitalidade burburinha típica desse irrequieto povo nômade.

Ele morava numa herdade, ali bem próximo. E, um tanto aborrecido, teve de resignar-se em ver as tendas toscas diante de si, todas as vezes que vinha à janela ou à porta.

Afinal, aquela terra não era propriedade particular.

Após algum tempo, já se habituava àquela presença bizarra. Sabia ser efêmera, os gitanos nunca páram.

Até que, certa manhã, numa das tendas, viu uma cigana sentada, imóvel, a fitar demoradamente sua morada.

Ele estacou, surpreso.

Era belíssima. Uma beleza selvagem, revolta, nos olhos todo o misticismo de um povo mergulhado na sensitividade. No semblante a simetria, o encanto, a lucidez e magia das mais estonteantes mulheres.

Era um homem experiente. Conhecia a fundo a estética feminina. E convenceu-se, sem dúvidas, sem hesitações, sem qualquer reserva, de que nunca, em toda sua vida cheia de amores, de conquistas, de paixões intensas, nunca avistara mulher tão incrivelmente bela.

Uma jovem cigana.

Não se conteve. Vasculhou com os olhos as tendas. Todo o clã parecia ter se ausentado. Aparentemente, só restara um velho, numa tenda do lado oposto, mergulhado numa senil sonolência.

Ele aproximou-se. Fez um sinal em reverência. A jovem nômade fitava-o, olhos penetrantes, sem desviá-los um momento sequer.

Como era bela! E tal qual a presa magnetizada diante do predador, veio até ela, revestido de uma intrepidez incomum em si. Enfrentaria tribos e mais tribos de ciganos, empunharia punhais, lançaria duelos, suportaria as temíveis pragas das velhas ciganas.

Ela estendeu o braço, pedindo a mão dele em palma. A buena-dicha. Fazia parte da natureza dela. A quiromancia, entre seu povo, era quase uma saudação.

Ele entregou a mão, solícito, entorpecido diante de beleza tão invulgar. E acocorou-se diante da beldade, para melhor poder servi-la.

A cigana abriu um pouco as pernas, acomodando um pouco mais os quadris sobre a trípode.

Nesse instante, ele quase caiu fulminado.

Um odor pestilencial chegou, numa forte lufada, até suas narinas. Sentiu que ia tombar. A visão turbou-se. Uma névoa espessa toldou-lhe o raciocínio.

A menina cheirava mal, Um fedor carregado, pútrido, mefítico. Lembrou-se num momento dos mercadões de peixe em decomposição, inundando o ar com seu odor carregado de azedume adstringente.

Saiu dalí tenteante. Ganhou terreno mais aberto. Sorveu o ar puro com sofreguidão.

Não se recordava mais do que lhe vaticinara a jovem quiromante. Ainda olhou para trás. Bela, tão bela como nunca vira mulher alguma em toda sua vida. Toda sua silhueta transmitia uma imaculada nobreza.

Ela agora sorria, mui discretamente sardônica. Mais que qualquer gaja, ela conhecia, mesmo jovem, as ilusões da matéria.

19/01/2007.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

O escritor e as línguas

Há uma matéria prima que merece respeito religioso por parte do escritor: a língua. A língua não é apenas uma ferramenta de comunicação; ela é de um povo um símbolo por si só e um conjunto de símbolos que mostra em grande parte o modo como aquele povo define a realidade e o imaginário à sua volta – a língua é a própria cultura do seu povo.

Quantas línguas existem no mundo? Tantas quantas forem as diversas formas de a humanidade vê-lo. Se existem 7.000 línguas, então existem ainda mais de 7.000 maneiras de compreender as coisas ao nosso redor. As línguas, então, são também o símbolo da nossa diversidade e do quão ricos seríamos culturalmente.

Hoje e desde sempre há um desrespeito geral e, em muitos episódios de nossa história, silencioso em relação à questão das línguas. Muitas vezes esse desrespeito torna-se tão sutil, que muitos o praticam sem saber e tantos outros o estimulam, mesmo quando conhecem suas conseqüências ou até mesmo porque as conhecem.

Temos diversos exemplos ao longo da história humana de algumas poucas línguas que cresceram e outras muitas que sumiram. Com o crescimento das primeiras, tivemos, sim, certas vantagens, como uma comunicação mais generalizada, mas com o desaparecimento das segundas, quanto não teremos perdido?

Os escritores, amadores ou profissionais, amantes das letras, são, talvez, as pessoas que mais próximas estão das línguas como matéria palpável, possível de carinho ou violação. No entanto, nem todos sequer perguntaram a si mesmo o que pensam sobre a questão das línguas.

Devemos nos conformar com a supressão de uma língua sobre várias outras, encarando-a como processo natural? Devemos lutar contra esta supressão? Como devemos encarar a evolução das línguas? Será passível de controle uma evolução assim? Tudo isso não contém uma simples gramática! São necessárias teses e teses para que enxerguemos o todo de tal problema – e na construção dessas teses muitas ainda se contradirão. Mas é, sim, possível, e até conveniente, que os escritores, nas academias ou num bar, discutam a questão.

Atualmente, o mais discutido fato no mundo das línguas é, sem dúvida, a situação do inglês perante todas as outras mais de 6.000 línguas que a humanidade, por direito, pode falar. E no que concerne aos brasileiros, perante o nosso português do Brasil.

Da mesma forma, também podemos fazer um análogo, dentro do nosso universo, da situação entre esta língua e as línguas indígenas de nossos compatriotas (também nossas). Em todos os casos, há muitos problemas – uns mais visíveis, outros menos – envolvidos nesta relação; e poucas soluções.

Quanto ao inglês, hoje em dia os jovens brasileiros – e também os velhos – são obrigados, sem direito de escolha, a aprender a língua da Rainha Vitória nos moldes do Tio Sam. Há um consenso geral sobre a importância do inglês, e às vezes essa importância é tão elevada, que chegamos a amar a língua bárbara sem percebermos. E esse amor evolui a tal ponto, que nossa própria cultura torna-se-nos estranha. Para os escritores, esse é um grande perigo. A partir do momento em que essa tragédia ocorre, ou seja, a partir do momento em que negamos que o reflexo no espelho da língua somos nós mesmos, deixamos os escritores de representar uma cultura, passamos a ser planetas sem estrela que nos assegure uma órbita. Isso porque não nos tornamos incapazes de escrever – ainda escrevemos, mas sobre e por símbolos que não conhecemos, e nossa arte é, portanto, negada por todos.

Hoje, muitos jovens escritores no Brasil sonham em produzir nos moldes da subcultura dita americana, entenda-se exatamente como os estadunidenses e para os estadunidenses. Restarão no limbo. Pois o que produzirão será medíocre aos nossos olhos e aos olhos deles.

Nesse sentido, o escritor brasileiro esclarecido deve entender a sua cultura, evoluí-la, divulgá-la, escorrê-la. Mesmo para renovar ou inovar, é preciso que o escritor conheça o “material” com que a todo tempo lida. E se avance para além de outras culturas, também o conhecimento de sua própria cultura é fundamental, pois o que mais se espera de um escritor transnacional é o alcance de uma universalidade fundamentada na fusão da diversidade. Só assim é que nós, escravos e escravas das letras, permitiremos que nossa cultura continue senhora de si mesma, não cega às outras senhoras, mas digna de andar com elas no mesmo salão, com a mesma força e presença.

Do mesmo modo, se não somos hipócritas, devíamos também cultivar as outras línguas que, por direito, são nossas e de mais ninguém. Se não os brasileiros, quem cuidará das nossas línguas indígenas? Hoje nos perdemos nos encantos do português de Machado, mas quantos conhecessem, de fato, o brado de Lima? Se nos deslumbramos com o português a tal ponto que minguam sem serem notadas nossas outras línguas, não estaremos, então, sendo os “americanos” de nós mesmos? O Brasil possui ainda cerca de 200 línguas, das quais poucos brasileiros são capazes de sequer citar alguns nomes.

O escritor, como o portador do estandarte da cultura de um povo, deve com tal segurança conhecer suas línguas, que sua geração, por meio dessa segurança, estará protegida quando lidando com línguas estrangeiras. Os modernistas notaram já de muito um bom caminho, mostrado pelos primeiros brasileiros: a antropofagia. Pois a negação da antropofagia cultural leva a uma autofagia que, por sua vez, pouco frutifica; ou ainda a uma entrega de si mesmo a outro mundo, estrangeiro, estranho.

Passou o tempo em que as culturas estavam isoladas. Hoje elas se tocam mais do que nunca, embora poucas realmente se conheçam. Nesta relação, as culturas não deveriam se sufocar, mas ser participadas. E aquilo que antes causara empobrecimento, amanhã gerará apenas riqueza, a maior delas, pois não é para a humanidade a cultura a sua maior riqueza?

Essa mesma humanidade ainda tem muito a aprender sobre a questão das línguas. Em tantos milênios, pouco se evoluiu de fato, porque a História tem apenas repetido os mesmos quadros, assinados, porém, por nomes diferentes. E na confecção desses quadros, o escritor tem papel fundamental, dentre outras coisas, como artista. A língua até pode ser usada como uma ferramenta para representar à letra nossa mediocridade, mas arte em si já deixou há tempos o papel de simples imitadora – porque hoje a humanidade já compreende que a arte não imita, mas transforma. Pensam alguns que amanhã será maior o número dos que falarão sobre democracia lingüística. Mas nós, como escritores, falemos disso desde então, e protejamos nossa maior matéria prima, e adiantemos o tempo, porque este poder nos foi dado.

sábado, 12 de janeiro de 2008

Teatro das Formigas

sol amanhecido...

vagou o trono
do rei do Rio.

passeiam
em largo
as formigas

pelas
narinas sujas
de sangue

indiferentes,
ante a luz
dos refletores...

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Convidada: Noga Lubcz Sklar

Segredo ou sagrado?

"Nunca aceitei esse ranço de obediência na relação do artista com as multinacionais. De eles saberem mais, de terem o poder de orientar. Eu sempre disse não, e eles sempre respeitavam esse não. Porque eu sempre fiz muito bem tudo o que quis."
Maria Betânia, imperdível, em entrevista ao Caderno Ela de O Globo


Na mesa de almoço em família comunico ao meu tio intelectual minha firme intenção de atacar o velho Ulisses, de James Joyce — um livro que é meu livro de cabaceira, ops, cabeceira, há mais de 5 anos* — nestas férias de fim-de-ano. Já tendo lido, com um prazer inenarrável (ui!), as primeiras cem páginas, não consigo entender as razões para ter hesitado tanto. Deve ser o marketing, ou no caso, o anti-marketing, confirmado por minhas jovens primas: é chato.
Mas, gente, se tem um adjetivo que não se aplica, de jeito nenhum, a esse ícone da literatura, é este. Chato? Pode ser incomum. Pode até ser meio difícil pra quem não tem o hábito da boa leitura, se limitando aos novos lançamentos, resenhados e elogiados por razões muitas vezes obscuras (pra não dizer comerciais, mesmo). Mas chato nunca. Instigante. Poético. Ousado. Isso sim. Nunca gratuito. A gente sente por trás dos neologismos, das citações, da ordem expressa das palavras, a clara intenção do escritor. Nada. Nada de preguiça de (re)escrever ou pressa de publicar. Por enquanto estou lendo, claro, a tradução de Antonio Houaiss. E por falta de opção melhor confiando nela, na erudição do tradutor, na compreensão ampla que ele teve do original, coisa que certamente eu jamais alcançarei. Porque meu passo seguinte, pasmem, é perscrutar o original que encomendei na Amazon. Que pretensão.
Com meu vício de folhear à frente, já deu pra perceber que quase tudo que a gente considera novo, transgressor e original na literatura contemporânea, já está lá, pasmem, há quase cem anos pra todo mundo ler. Meu romance Hierosgamos, por exemplo, tem trechos inteiros copiados dele, mas como, não sei. Deve ter sido por osmose, por "metempsicose" (metem-se o quê? - pág 85). Diz Augusto de Campos, na orelha da edição, que "a divulgação deste livro é capaz de contribuir, e muito, a curto e longo prazo, para o soerguimento qualitativo da nossa prosa que, salvo raras exceções, ainda não se apropriou do legado da revolução joyciana". Tá certo que a tradução é de 1966, ah, bom, muita coisa mudou desde então. Ou não?
O negócio é que apesar do Alan já ir me chamando de incompetente, ignorante, e me acusando de não saber grego e latim o suficiente para ler Ulisses, além de, claro, estar lendo uma "cópia", falsa e certamente malfeita — não me entendam mal: o homem me ama, mas me acha incompetente em inglês, enquanto em português, vocês sabem, não tem a mínima competência para me julgar: não fala uma palavra da nossa língua — decidi ler o Ulisses, por enquanto, com meus próprios recursos emocionais, sem me ligar em estudos, teorias, esmiucices redutoras. Pronto. Já deu pra entender tudo. Sou tão pretenciosa que (apesar de escrever "pretensiosa" com cê) me julgo à altura de Joyce quando o assunto é misturar idiomas, transgredir ritmos, criar palavras. Meu Deus. Melhor seria eu me calar, mas não me calo: a ignorância é a melhor proteção contra o julgamento alheio, ops: pretensão. Já deu pra ver que logo nas primeiras páginas Joyce me perdoou os dois pontos repetidos que eu repito sempre sem querer, depois vou com todo o cuidado revisando e apagando um por um. Podem crer. More on that later.
Porque agora vou falar de outra coisa, isto é, da ordem certa das coisas. A gente começa a ler Joyce e vai ao google, eu, pelo menos, vou, pra descobrir que o artista passou até fome enquanto escrevia o livro. Quem garantiu a sobrevivência — dele, da família dele, e do próprio livro — foi a editora francesa Sylvia Beach, conseguindo transcender as limitações de mercado que, na época, quase relegaram Ulisses à não-publicação. Imaginem. E isto a propósito de quê? Da discussão levantada por Luciano Trigo em seu blog, quanto às relações do artista com o mercado. O que eu penso é que foi sempre assim. Pelo menos do lado do mercado, é claro. Porque o artista é que nunca se curvou a ele. Nunca se pautou por sua carência de dinheiro, eu sei, eu sei, easier said than done: passe fome pra ver o que é bom. É o mercado que sustenta o artista, seja ele público ou privado, para seus próprios fins, e sempre foi assim. O porém disso tudo é que o artista sempre andou para o mercado, se é que vocês me entendem (falta aí uma palavra essencial que não pronuncio, por mera educação e respeito aos meus leitores mais "família"). Mas de uns muitos tempos para cá se convencionou acreditar que se o mercado não aceita um artista é porque o artista certamente não presta. E, gente, vou confessar: sou a primeira a acreditar nisso e, como corolário lógico, vou logo acreditando também que a minha arte não presta, embora existam — poucas. pouquíssimas, tá certo — evidências em contrário.
Chega-se enfim ao debate proposto por Nilton Bonder — em seu mais recente futuro best-seller de 135 páginas, nada a ver o número delas, tudo bem, só me impressionei ao ver o delgado livro ao vivo — entre o Segredo e o Sagrado, onde se conclui que o Segredo é o Mercado. E o Sagrado, bem, é o Mercado também. A não ser pra quem escolhe ficar fora dele: uma atitude nada contemporânea, porém, que se configura, cada vez mais, como a única possível para a salvação da arte. E do tal do espírito. Como bem diz nosso intrépido rabino, o que vale nesta vida está bem além da divisão simplista da raça humana em vencedores e perdedores, um maniqueísmo globalmente aceito e monitorado, como nunca antes, pela saúde da conta bancária. Ao criador, resta manter-se fora disso. Mas não me perguntem como.

*a bem da verdade, cumpre esclarecer: embora só agora esteja lendo o Ulisses pra valer, já li várias vezes o monólogo sexual final de Molly Bloom, e faço em meu livro uma louvação explícita dele, "bom demais pra agüentar o orgasmo, explodindo de sêmen fecundada por ti... sim, Noga, um grande, GIGANTESCO SIM."

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Noga Lubicz Sklar é escritora. Graduou-se como arquiteta e foi designer de jóias, móveis e objetos; desde 2004 se dedica exclusivamente à literatura. Hierosgamos - Diário de uma Sedução, lançado na FLIP 2007 pela Giz Editorial, é seu segundo livro publicado e seu primeiro romance. Tem vários artigos publicados nas áreas de culinária e comportamento. Atualmente Noga se dedica à crônica do cotidiano escrevendo diariamente em seu blog Noga Bloga.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

A Última Morada


Porque me perseguem? Escondido, mal sei onde, enquanto aqueles dois malditos estão lá, a minha espera, com o único objetivo de eliminar-me, varrer minha já tão insignificante vida da face da Terra. Se ao menos houvesse um motivo...Que mal fiz a eles meu Deus? Existir... este foi o meu mal... ter nascido... Não há outra explicação. Penso, logo existo. Existo, logo sou morto. E ainda há esta fome me corroendo o estômago mas que ao menos dá para enganar. Fome eu passei a vida inteira, mas e a sede? Esta não há como controlar... a garganta arde como se alguém houvesse cravado nela um ferro incandescente. Dizem que no inferno o fogo é eterno e minha sede talvez seja um prelúdio do que me espera. Acho que estou enlouquecendo. Melhor dormir um pouco e esperar a noite para que a escuridão seja a minha cúmplice numa tentativa de fuga...
Anoiteceu... meus olhos aos poucos se acostumam com a negritude que a noite banhou o ambiente. O corpo dói, a sede aperta e o silêncio denuncia que meus perseguidores desistiram. Vou tentar a fuga... Guiando-me pelo meu instinto, corro em direção à luz que significa minha liberdade, mas sou traído pelo cheiro de comida. A fome fala mais alto e volto em direção aos odores. Mal senti o peso da ratoeira quebrando o meu pescoço. A dor é desesperadora. Sinto a garganta banhada de sangue. Com certeza este modelo de ratoeira é daqueles que possui em sua superfície uma ponta penetrante de latão diabolicamente mortal. Luto desesperadamente para livrar-me, meu rabo balança chicoteando o ar sem que eu possa dominá-lo. É o fim. Quando o dia raiar e aqueles dois abrirem a porta do escritório certamente comemorarão a minha morte. Terão nojo do meu corpo acinzentado, das pulgas que eu hospedo e me jogarão no lixo, assim mesmo, preso a esta ratoeira, minha última morada.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Uma tradução de Les Djinns de Victor Hugo


No prefácio de Les Orientales, de 1829, considerado por críticos da época mais importante do que o livro, Victor Hugo defendia a ‘poesia inútil’: a arte pela arte. O direito do poeta de escrever sem motivo, levado apenas pela fantasia.


A crítica habituada a um Hugo engajado considerou o livro mero exercício de versificação. Hugo diz no prefácio: “Se a alguém ocorrer perguntar ao poeta ‘Para que servem estes Orientais? O que lhe deu a idéia de ir passear pelo Oriente por um volume inteiro? O que significa este livro inútil de pura poesia, jogado em meio às graves preocupações do público? Oriente rima com quê?’ Ele responderá que não sabe, que foi uma idéia que se apoderou dele, e apoderou-se de forma ridícula, ao ver um pôr-do-sol.”


Les Orientales desenha um mundo árabe violento, terrível (e, ao mesmo tempo, em alguns poemas, feliz). Palavras como sang, bataille, terreur saltam do livro povoado por pachás, sultanas e derviches, em cenários como o Egito, a Turquia e sua capital, Istambul. A figura mítica dos djinns, de que o poeta fala de passagem no poema Clair de Lune, é o tema deste:


XXVIII - Os djinns
Paredes,
Cidade
E portos,
Hospício
De mortos,
Mar cinza:
A brisa
Lá dorme.

Na planície,
um ruído.
É a treva
que respira.
Ela clama
como alma
que uma flama
sempre segue.

A voz mais alta
Soa qual guizo
De anão que salta,
Corre a galope
Foge, se exalta
Depois, no ritmo,
Sobre uma onda
Se equilibra.

O ruído próximo.
O eco o reprisa.
É como o relógio
De um templo maldito
Ruído da turba
Que estrondeia e gira
E às vezes se anula
E às vezes se amplia.

Deus! A voz sepulcral
desses Djinns!... Que alarido!
Fujamos na espiral
Das escadas sombrias.
Já se apagam as luzes:
Eis que as sombras das sebes
Que circundam o muro
Sobem até o teto.

É o enxame dos Djinns que passa,
Turbilhona e assobia!
Árvores, façam que caiam,
Crepitem, pinus, em chamas.
Pesado e rápido bando
Voam no espaço vazio,
Lembrando uma nuvem lívida
Que leva ao lombo um relâmpago.

Perto demais! Melhor fechar
A sala, fingir que não vimos.
Que ruído, fora! Medonha
Horda de dragões e vampiros!
A viga do teto está solta,
Pinga como planta encharcada
E a velha porta enferrujada
Trepida a soltar-se dos gonzos.

Gritos do inferno! Voz que urra e que chora!
Horrível enxame, ao vento do norte
-- Sem dúvida, céus! -- cai em meu telhado,
Cede a parede sob a negra hoste
A casa grita e, inclinada, oscila,
Dir-se-ia que, do solo arrancada,
O vento a gira com seu turbilhão,
Como se erguesse uma folha do chão.

Profeta! se tua mão me salva
dos impuros demos das trevas,
prosternarei a testa calva
em teus sagrados incensários!
Faz com que estas portas fiéis
Matem seu sopro de centelhas,
E que em vão as unhas das asas
risquem estes negros vitrais!

Já passaram! Sua tropa
Se vai, e foge, e seus pés
Param de chutar a porta
Com multiplicados golpes.
O ar se enche do som
De correntes. Nas florestas
Os grandes carvalhos tremem,
Dobrados sob seu vôo.

De suas longes asas
Decresce o batimento,
Se perde nas planícies
Tão fraco que se crê
Ouvir um gafanhoto
Gritar com fraca voz,
Ou um som de granizo
Sobre o zinco do teto.


Sílabas estranhas
Chegam-nos ainda:
Assim como quando
Ao som do clarim
Os árabes cantam
Um canto tristonho,
A criança sonha
Um sonho sem fim.

Os Djinns funéreos,
Filhos do mal,
Dentro das trevas
Andam mais rápido
O enxame ronca
Assim, intenso,
Múrmura onda
Que não se vê.

O som vago
Que já dorme
É a vaga
Junto à orla
É o choro
Quase findo
De uma santa
Por quem morre.

Na dúvida
A noite
Escuto:
Já foi-se,
Já passa.
O espaço
Embaça
O som.

A métrica é pouco usual, talvez única: quinze oitavas, das quais a primeira tem versos de duas sílabas, a segunda de três – e a quantidade de versos cresce de estrofe em estrofe, até a oitava delas, quando começa a decrescer até voltar aos versos de duas sílabas. Ou seja: as estrofes têm versos de 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 10, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2 sílabas. Por que Hugo teria rejeitado as estrofes de nove sílabas?

Analisando a tradução
Não tem sentido traduzir Les djinns sem respeitar a métrica, já que ela, de certa forma, “é” o poema. Mas respeitá-la e manter, ao mesmo tempo, tanto o esquema de rimas como o conteúdo integral é impossível.


Quem traduz poesia tem de escolher entre privilegiar o significado ou a forma. Nesta tradução de Les djinns, procurei manter a métrica – que é a característica mais marcante do poema – e o significado dos versos. Mas não obedeci ao esquema de rimas ababcccb que Victor Hugo adotou.
Não conheço outra tradução para o português.


Trago aqui a primeira estrofe de uma versão para o inglês de John L. O'Sullivan, contemporâneo de Victor Hugo, que manteve o esquema de rimas em detrimento do significado:



Town, tower/ Shore, deep,/ Where lower/ Cliff's steep;/ Waves gray,/ Where play/ Winds gay,/All sleep[1]. Vê-se que O'Sullivan introduziu torres e rochedos inexistentes no original, adjetivou os ventos como alegres, destoando do tom sombrio do poema, e abandonou os “mortos”, que não aparecem na sua versão nem em hospícios, nem em asilos. Em compensação, foi fiel ao esquema de rimas.

O original (Murs, ville,/ Et port,/ Asile/ De mort,/ Mer grise/ Où brise/ La brise,/ Tout dort) seria, ao pé da letra: Muros, cidade/ e porto,/ hospício[2]/ de morto/ mar cinza,/ onde se quebra/ a brisa,/ tudo dorme[3].


Para a tradução deste poema, não encontrei solução que permitisse deixar “murs, ville” – muros, cidade – no mesmo verso, mantendo as duas sílabas do verso original. Em português, mesmo a evidente e compacta “muros, vila” já teria três sílabas. A saída foi optar por palavras com duas sílabas poéticas, deixando-as em versos diferentes: “paredes/ cidade”. Lembrando que mur, em francês, designa tanto muro quanto parede. Com essa opção, gastam-se dois versos para dizer o que Hugo disse em um, e em conseqüência algo se perde nos versos seguintes. No caso, o que deixei de lado foi a “quebra” da brisa.


Problemas semelhantes surgem, evidentemente, em cada estrofe de qualquer poema que se pretenda traduzir, e a cada dificuldade é preciso optar por manter ou perder significado, ritmo, sonoridade, métrica ou rima.


Gênios, demônios e djinns
Na mitologia da Grécia antiga, acreditava-se que a cada pessoa era designado um daimon para lhe servir de guardião por toda a vida. A palavra latina para esse mesmo ser mitológico – um semi-deus que presidiria ao nascimento de cada pessoa e a acompanharia em todas as ocasiões – era genius, o espírito tutelar que, acreditava-se, determinava a personalidade e o caráter de seu protegido. Genius deriva do verbo gignere[4], que significa conceber, originar, criar, dar vida, dar à luz.


Mas o latim emprestou do grego a palavra daimon, grafando-a daemon (dæmon), inicialmente com o significado de ‘espírito’ e, mais tarde de ‘mau espírito’.



Por outro lado, no início do século XV o idioma inglês tomou do latim o termo genius, dando-lhe o significado de ‘espírito protetor’. Quase 200 anos depois, em 1595, sir Philip Sidney, poeta inglês, usou a palavra para referir-se à vocação de uma pessoa: “A Poet, no industrie can make, if his owne genius bee not carried vnto it”. Numa tradução muito livre, “nada pode fazer de alguém um Poeta, a não ser seu próprio gênio”.


No século seguinte, a palavra estendeu-se dos poetas a outros artistas de diversas áreas.


Na Inglaterra do século XVIII, os Românticos passaram a usá-la com o significado de uma capacidade intelectual inata, voltada especialmente para atividades criativas. Nesse mesmo século, Antoine Galland traduziu para o francês o clássico da literatura oriental As Mil e Uma Noites (foi a primeira versão feita para o ocidente) em que aparece o termo árabe djinn com o significado de espírito ou demônio. Galland, que usa o plural djinniy, traduziu djinn para o francês, criando o então neologismo génie. Os ingleses adotaram essa grafia – sem acento, é claro – para designar uma figura mítica como o gênio da lâmpada de Aladim: genie (pronuncia-se em inglês justamente djiniy) A série de TV Jeannie é um Gênio brinca com esse vocábulo, num trocadilho com o nome próprio feminino que tem a mesma pronúncia.


Os árabes, no período pré-islâmico, davam grande valor aos poetas. Acreditavam que cada poeta é possuído por um djinn que lhe dita os versos, independente de sua vontade. Os poeta tinham nas tribos uma estatura social importante, e eram recompensados pelos poemas que ofereciam. Entre outros privilégios, não eram obrigados a pagar o dote de sua noiva, prerrogativa que não era concedida nem mesmo aos príncipes.


(Maomé, que resistiu o quanto pôde à voz que lhe sussurrava a ‘revelação’ do livro sagrado, talvez tenha sido um poeta que se acreditou profeta. Durante vinte anos ‘recebeu’ os versículos do que hoje compõe o Corão, acreditando que lhe eram sussurrados pelo anjo Gabriel, quando na verdade tratava-se provavelmente de um djinn em ação.)


Victor Hugo, que escreveu seus versos ‘dormindo’ – eles lhe vinham em sonhos, como acontece a tantos poetas – provavelmente sentia-se assombrado por djinns. A descrição que fez deles nesse poema, seres terríveis, mostra como é pouco confortável para o poeta o transe que produz o poema.


Bibliografia:
LURKER, Manfred. Diconário dos deuses e demônios. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
GUIMARÃES, Ruth. Dicionário da Mitologia Grega. São Paulo: Cultrix, 1995.
GRANT, Richard B. Sequence and theme in Victor Hugo's Les Orientales. PMLA, Vol. 94, No. 5 (Oct., 1979), pp. 894-908
KACIRK, Jeffrey. Forgotten english. Nova Iorque: Quill,1997.
WEBSTER’S Word histories. Springfield: Merriam Webster Inc., 1989.

Sites:
http://www.mundoislamico.com/mohammad.htm
Prefácio de Les Orientales: http://static.scribd.com/docs/8992gzt8s54ll.swf
Les Orientales - poema original isponível na íntegra em:
http://www.chez.com/lyres/Hugo/orientales/Hugo0rient1.htm
ou em
http://fr.wikisource.org/wiki/Les_Orientales
Íntegra da tradução de John L. O'Sullivan para o inglês:
http://www.johannes-eva.net/index.php?page=hugo_en

[1] Tradução: Cidade, torre,/ praia, profundeza,/ onde os mais baixos/ rochedos tornam-se íngremes,/ ondas cinzentas,/ onde brincam/ ventos alegres/ todos dormem.
[2] Asile, no século XIX, referia-se apenas a hospício (asile d'aliénés, asile de fous).
[3] “ Tout dort” significa “tudo dorme”. “All sleep”, como está na tradução de O’Sullivan, é “todos dormem”. as “todos dormem”, em francês, seria “tous dorment”. Em inglês, para manter esse significado original, seria preciso dizer “everything sleeps” – o que arruinaria a métrica. Em português, qualquer das duas formas (tudo ou todos) quebraria as duas sílabas do verso. Optei por “Lá dorme”, para resgatar o “Où” (onde) do original.
[4] gigno, gignere, genui, genitus

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

DEDALISMO MANIFESTO


DEDALISMO MANIFESTO

O âmago aponta o dedo,

tenho medo

do que virá.

Pelas madeixas

me deixas

a impressãode que devo parar.

A agulha enferrujada

do palheirode minha tia-avó,

me dá um nó

tremendo.

Acho que é o Dedalismo

nascendo

nas barbas do profeta.

São letras distorcidas

numa lógica incerta

que certamente

fará o corpo doente

preferir a poesia

ao último

suspiro.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Liturgia Apostolítica Romanesca



desejarei
galgar
intrépido
o cume
do monte
cristo
no maldito
dia
de pentecostes

escalarei
o escapulário
estatutário
do pocilguento
pervertido
mercenário
vestido
de vestido
negro

serei a pedra
seixas
o estorvo
a obstar
a vereda
arborizada
encerada
dos cardeais
encerados

fantasiarei
de prelado
pelado
expositivo
exibicionista
balouçando
impudente
as vergonhas
pudendas

lerei
altissonantes
cânones
de amor
ódio
decrepitude
concupiscência
e sucumbência
(sucumbirei)

flutuarei
nas nuvens
glúteas
de ardor
extático
embalado
por mantras
extraídos
da papoula

metamorfosearei
em barata
percevejo
bicho-grilo
malandro
boçal
parlamentar
zeus bom
deus mau

injeções cavalares
embates heráldicos
derradeiras efusões
preliminares

Carlos Cruz - 28/11/2007

sábado, 5 de janeiro de 2008

A noite em que brochei




Sabe aqueles peitos das mulheres de filmes americanos? Pois é, a Patrícia tem um par desses. O generoso decote exibe muita energia, poder e alegria. Logicamente a alegria fica por conta, apenas, daquele que tiver o privilégio de brincar naquelas montanhas russas. Ou americanas. Ou brasileiras. Sei lá, eu sempre me perco quando estou cercado no vale.
A Patrícia é da área de marketing e são raras as oportunidades que tenho de encontrá-la no trabalho. Aquela exuberância só fica disponível aos meus olhos nas reuniões semestrais. Até propus que as reuniões semestrais fossem todos os meses. Mas parece que a diretoria não quer que outros gerências se relacionem com o pessoal de propaganda e marketing.
Na última reunião além do decote ela veio de saia. Uma saia comportada. Nem chamou a minha atenção, ao menos antes da reunião começar.
As coisas começaram a se complicar quando o destino me colocou na mesa bem à frente da doutora Patrícia. Eu havia me preparado com afinco para aquela reunião de resultados. Uma boa apresentação respaldada em trabalho eficaz poderia definir uma promoção para alguém daquela sala. E eu queria ser promovido.
No momento em que percebi que a exposição de motivos do departamento de marketing estava naquele decote resolvi abaixar a cabeça e concentrar o meu olhar nos meus apontamentos. Foi aí que eu perdi minha promoção.
Patrícia jogou com toda sua capacidade. Ela estava em casa. O terreno era o dela. Ela já sabia onde seria a reunião. Seria na sala com a enorme mesa de tampo de vidro. E ela se preparou muito melhor que eu. Usou de todos os artifícios para me constranger e me desconcentrar. Ela estava sem calcinha. Fui aplicado, conferi direitinho e me certifiquei que ela realmente, deliciosamente, estava sem calcinha. Ela empurrou um bilhete para mim.
– Quer?
Limpei a baba que escorreu pela lateral da minha boca e assenti com a cabeça olhando para o decote. Era impossível olhar para os olhos da doutora Patrícia.
A fama da doutora era de cumpridora de prazos e compromissos.
Na sexta-feira nos encontramos e fomos ao motel.
Tudo perfeito, Patty estava pleonasticamente divina. Meus sonhos iriam se realizar. Era o sonho de dez entre dez funcionários da empresa.
Só nós dois no quarto. Meia luz. O beijo. A agarração. A volúpia. Mãos acariciando e apalpando. Mãos despindo corpos. Corpos nus se pegando e se esfregando. Libido nos céus. Os enormes e rígidos seios eram meus, todos meus. Meus e da minha língua.
Minha língua descreveu meio círculo no mamilo de Patty e na mesma hora Patrícia, de prazer, cravou as dez unhas nas minhas costas. O sangue correu da perfuração de dez punhais.
Brochei. Perdi a promoção, o tesão e a vantagem de dizer que tinha comido a Patrícia.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

O Pouso

Por voltas e voltas
em torno da própria cabeça
idéias perdidas perambulam
soltas no espaço
à espera de uma janela
uma entrada
para pousarem salvas
do pensamento dos outros:
idealistas, empreendedores, loucos,
não irão nunca jamais
repensar o pensar condensado
preso, retido,
pensado
tempos antes da invenção da consciência.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Vampiração

É que eu não existia, era o que todos diziam. Mas se assim fosse, então pra quê?

Houve várias vezes em que, perguntado ou respondido, nada daí frutificou. É a verve, me cantava o grilo, é a verve.

Assim foi que, sobrenaturalmente lúcido, estanquei. Afinal de contas, sangrar é démodé. Alguém dá a mínima para o sangue derramado de mais este boi?

Os afazeres se acumulam enquanto as veias abertas da América Latina clamam por mais algafan. Antigos assuntos para antigos vampiros, que já não dizem ou conquistam o respeito de mais ninguém.



Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Sobre o ano-novo e a ressaca

"Se eu não faço nada, fico satisfeito
Durmo o dia inteiro e aí não é direito
Porque quando escurece, só estou a fim de aprontar"
Tédio (com um T bem grande para você) – Legião Urbana


O fim do ciclo solar traz a mesma sensação de um início de noite quando se dormiu o dia inteiro de ressaca: a vontade de aprontar! Ou melhor, de fazer algo construtivo, importante, de reorganizar o tempo e cumprir tudo aquilo que sonhou porém não conseguiu realizar.
Eu já amadureci; não reclamo mais das ressacas nem digo que "nunca mais beberei", apenas me conformo com o estômago provocando uma cisão político-biológica com o resto do corpo. Aceito a ressaca, assim como reconheço que o ano vindouro será apenas mais um ciclo que em não cumprirei minhas metas.
Essa ansiedade em corrigir os pretensos defeitos, para começar uma existência mais plena e feliz, mas somente no ano novo, é a desculpa dos desiludidos. Todos que sonham alcançar o próximo degrau do auto-desenvolvimento renovam as esperanças. Contudo, esquecem que qualquer mudança deve ser gradual e introspectiva. Não adianta fazer "listas de ano novo".
Eu sou um desses desiludidos. Já compreendi que meus defeitos não sumirão, nem no ano novo e nem no dia de São Nunca. Devo conviver com eles e contorná-los, para aprender a sofrer cada vez menos com minhas falhas.
Entretanto, não me abstenho de permanecer um ébrio, tanto das mais deliciosas cachaças quanto dessa idiotice chamada esperança. Em cada ciclo imagino o defeito de personalidade que eu poderia limar ou a característica que deveria absorver; sempre tenho boas intenções. Até a meia noite! Daí para frente só penso em acabar de encharcar a cara de mé!
Quando vier a ressaca do dia Primeiro de 2008 já terei esquecido todas as promessas, não saberei quais planos me dedicar nem como resolver meus problemas (que eu certamente havia solucionado na noite anterior). Não começarei a malhar, nem a estudar, nem controlarei minha língua (e pena) ácida. Não serei paciente, nem dedicado e tampouco deixarei de reclamar sobre tudo. Continuarei cultivando meus defeitos (é claro que na intenção de regá-los cada vez menos) e buscarei não perder as ínfimas virtudes que mantive até agora (como cactos num deserto). Serei o autêntico eu, só que um tantinho mais sábio, afinal, quem não aprende com os erros é um imbecil.
- ô imbecil, se continuar fazendo as mesmas besteiras não subirá o tal degrau no auto-desenvolvimento. – Diria o leitor.
Sim, reconheço, porém não farei as mesmas besteiras. Farei, na verdade, novas besteiras, cometerei outros enganos e praticarei diferentes pecados. Ano novo, bobagens novas. Afinal, sabiamente, precisarei atualizar meu rol de problemas para avaliá-los ao final do ano e resolver corrigir alguma coisa para 2009. O ciclo nunca termina, mas a ressaca, essa sim, uma hora vai acabar.
- Bebamos, então! – Um brinde ao ano novo.

...



Quando as águas fumarem
Os ventos pingarem
E houver fogo no céu

Quando perdermos o sentido
E almejarmos vazios dourados

Quando os amores findarem
E o desespero for a regra

Socorramo-nos!

Podemos também ser heróis
Lembremo-nos dos sonhos infantis
Queremos fazer a diferença
Ao menos por um dia

Esta data pode ser hoje
Então preparemo-nos
Haverá guerra antes da paz

Acordem os santos
Chamem os heróis
Avisem os paladinos da justiça

Levantem os mortos
Acudamo-nos de nós mesmo.

Para salvar o amanhã
Devemos evoluir hoje

Não há tempo
Nem para sempre