sexta-feira, 29 de agosto de 2008

O encontro


Como é estranho
O que sinto no coração
Sem medo e sem culpa
Vivo cada vez o amor

Nossas almas se misturam
A cada encontro
E nos perdemos num mundo
Que é só meu e seu

O tempo não existe para nós
A distância não separa
O compromisso aumenta a saudade
Sendo cada reencontro uma alegria

Amor,eu sei que o nosso tempo não é o bastante
Mas, saiba que sempre estarei com você
E que o meu amor não tem fimIsso nunca terá fim....

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Nem a morte separa


Em 1940,Dorival Caymmi e Stela Maris ouvem o bordão "...até que a morte os separe...".

Jamais saberiam: a morte reinou sobre o amor deles por apenas dez dias.



(Hoje faleceu a cantora Stela Maris, viúva há dez dias de Caymmi).

domingo, 24 de agosto de 2008


No oeste do horizonte ele se vai
Imaginamos que ele tem forma de caracol
Vai dizendo até amanhã, até mais
Que maravilha é o pôr do sol!

Casal em clima romântico
A pescaria ao entardecer, isca no anzol
A serenata, a poesia, o cântico
Inspirados no pôr do sol!

Pela manhã, apaga-se o farol
Ele surge, trabalha o dia inteiro
No início da noite, começa o pôr do sol!

A flor que o vigia, é o girassol
Têm lugares que ninguém o vê
Não quero morrer, sem ver o pôr do sol!

Publicado originalmente
em:Portal Lena Casas Novas

sábado, 23 de agosto de 2008

Cicatrizes Urbanas, Massa de Gente e de Luz


…desde garotinha vi que era assim, tudo meio névoa, meio fábula. Vestidinhos feitos em casa, babadinhos, bordados, mamãe fazia vestidinhos lindos que eram orgulho meu e das primas. Tinha um branquinho que quando eu usava era pomba voando pela rua de terra e era um tal de "vai sujar a roupa, menina, pára de correr!"; correr nada, voar, mas ninguém entendia, ninguém nunca entende névoa e fábula. "Vem aqui, você ta linda assim de branco"; e era mão na cintura, na perna, no bumbum, é, eu dizia "bumbum". E ele encostava as coisas em mim e suava aquele cheiro insuportável de cachaça e fumo de corda e eu não sentia nada, nem medo, nem tristeza, nem nada… acho que não, acho que não sentia e queria era voar, ser pomba e ser fada. E tinha a missa, o padre e o incenso que trazia aquele mundo de fumaça e de anjos, mas ninguém entende de anjos-no-incenso, e tinham aquelas velhas de preto e de véu rezando com um ódio que só as velhas de preto conhecem, e a missa era tão mais delas que dos anjos… E a escola… na escola tinha a professora tão linda e tão boa, mas tinha muito mais, tinha o suficiente pr’eu voar pra longe. E chegando aqui, eram só luzes e carros, e tudo tão grande e eu tão pequena; São Paulo era massa de luz, de gente e de fumaça-sem-anjos. A noite era sempre mais bonita e brilhante, mas amanhecia e tudo era cinza e pichado. Mas desde sempre acho que as pichações têm lá sua dignidade, são respostas mais que justas de moleques esmagados, são não só o grito de “existo”, mas também ataques a quem os esmaga, são cicatrizes que deixam na cidade, pra mostrar que a luz dela é falsa e que muita gente chora em cada beco. Elas são o que de mais digno existe em São Paulo… mas não são névoa nem fábula, são gritos de dor e de guerra. To tão cansada, não havia espaço pra voar no interior de minas, na minhinfância perdida, e nem há vôo aqui na cidade grande, aqui ninguém voa e pomba é bicho odiado, é rato que voa e que caga em cabeças e calçadas, como se todos não fossem ratos cagões em cidades como São Paulo. E é sempre assim: "mina, senta aqui comigo que te pago uma breja", "mina, você é tão linda, quer um doce, quer um baseado?", “quer ir ao meu apê?”, e é suor com cheiro de perfume e é olhar de pegue-um-táxi-e-não-me-ligue e é gente de bem, com faculdade, com dinheiro que bate, que cospe e que fode. E ninguém sabe voar, tão todos tão presos e ocupados em prender que ninguém tem olhos pros olhos do outro. E to tão cansada e daqui de cima, tudo até que vira fábula, os carros tão pequenos lá embaixo formam esses rios de luzes vermelhas e amarelas e cada uma dessas janelinhas aqui nos prédios parece estrela… e se agora da minha janela eu voasse, ninguém iria notar, mas entre estrelas e rios de luzes tudo seria névoa e fábula…







Publicado também na Broca Literária.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Instáveis

Há um casal problemático que passeia entre minhas idéias. Não conseguem viver juntos por muito tempo.

Se o álcool entra, a poesia logo sai.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Rapina

Pelos cantos rasgados

Pedaços de cetim.

Nem tanto ao céu,

Nem tanto à terra,

Vou pairando na estratosfera,

Refazendo o que restou de mim.

Corpo amorfo, decomposto.

Decantado em substância sutil.

Eletro magnética mente pueril

Atravessada na garganta

Do decaptado.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

...

...



Todos os meus sentidos poderiam chorar
ondas de alegria se tu viesses como quem quer amar
e sem mácula de amores perdidos criasses em meu corpo novo começo.
Eu entenderia a plenitude das coisas, viveria em eterna harmonia
e por segundos inventaria o clímax de mil motivos.


Talvez me transformasse em água, azul mais puro em teu peito,
perfeita fêmea a desdobrar segredos antes só sonhados,
cálida dama a gemer do paraíso a verdade do sim, doma-me.
Consuma meus seios, minha carne necessita-te amante e mais,
senhor de tudo o que quero no fervor dos teus lábios sacanas.


E embora sobrasse em mim a menina que tu conheces,
eu teria sorrisos que verias feito estrelas em cada ato teu.
Concha de amanheceres multicoloridos no delírio dos prazeres,
único fim para margaridas nos olhos se tu viesses
canteiro para todos os meus desvarios.




Eliane Alcântara.

sábado, 16 de agosto de 2008

Ornamental




Meu amor foi comprar cigarro
e retornou

mas deixou de me querer bem
e sequer avisou

Fez-me inconveniente!

eu era um mero adereço
julgando ser esperado
endereço.


Barbara Leite

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

O FIGO PODRE

Era uma vez, um figo podre.

Definhava numa figueira, suspenso sob tênue pedúnculo, esquecido dos pássaros, emitindo ser fedor ao redor da frondosa árvore.

Uma aldeã colhia figos. Enchia trauteando uma cesta de vime. E colheu despercebidamente o figo podre, colocando-o entre os bons figos da cesta.

Ela tinha uma bela casa, uma bela mesa, um lar límpido e singelo. E enamorara-se de um montanhês, belo e robusto, que no flerte se tornara seu assíduo comensal.

O figo podre, misturado aos outros na cesta, não contrariou sua natureza: transmitiu sua podridão a todos eles, lançando ao ar doméstico da mulher eflúvios ominosos, que logo o comensal não deixou de aperceber-se, entre discretas fungadas ao ar.

Cismou que da aldeã se desprendiam os fluidos carregados do dulçor nauseante.

Seu enlevo pela mulher desmoronou-se. E mais ainda ao ritual da sobremesa, nas dentadas aos frutos deteriorados, nas cólicas constrangedoras sofridas ainda na casa da futura consorte.

Afastaram-se. O figo podre decompôs-se totalmente, cumprindo sua triste trajetória nesta pobre terra. E deixou, sem muito remédio, a solidão na aldeã, seu lar singelo, sua cesta de vime impregnada de coliformes, e a saudade do belo e robusto montanhês que agora passava ao longe.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Fragmentos XI a XV

Muryel de Zoppa
tanto faz tanto fez da dureza da teia de renda que segura mosquitos a serem devorados. o bicho morde mais do ladra. é fato. desacato é elogio da autoridade. tem notícia ruim no jornal pregado na parede do banheiro. mas está de cabeça pra baixo. Muryel de Zoppa é isso. filho de cidade grande infileirada de viés. tocaia na porta da própria casa. cuidado.

Zé da Zona
trabalhar nunca foi trabalho pra quem descansa de noite e dorme de dia. contraria a ordem do descaso. dia sim, dia não sempre tinha um estoque de coroas e cordas de nailon sobrando. não arranhava muito bem. tinha idéias de esquerda num país de esquerda voltada pra direita. ninguém o entendia. achava isso um saco. tudo bem, isso passava. tomou rumo incerto sempre a fazer o que mais sabia. atrapalhar.

A Lenda da Mula
como três e três são seis, vi que era pária de mula de pais separados. impossível, disseram. Vicente sabia da lenda dela. chamado de demente ainda criança por ter duvidado da somatória divina dos genes dos animais da fazenda que se davam ao trabalho. nunca mais foi o mesmo. tornou-se a própria carga. a mula, diferente dele, nunca perdeu a cabeça.

Os Ovos de Olga
prestes a cometer uma insanidade, Prestes fora advertido por ela. Olga não sabia fritar ovos. eles mexidos, porém, eram sua especialidade. o sujeito tinha cara de codorna assustada e depenada. de munição e de alemão não queria ouvir. não ali e naquela hora. estava preocupada demais com os ovos quebrados. era tarde demais. ele partira sem cuecas.

João Paulo II
o vaticano é um lugar inóspito. cheio de gente com sorriso no canto da boca falando de deus e olhando pro lado. Maria não entrava ali nem fudendo. o velho tinha uma antipatia irritante por aves de rapina. o visionário solitário sofria de flatulência e a disfarçava com breves abanos de mãos como a simular saudações aos fiéis. controvérsias a parte, aquilo nunca me convenceu. o céu, ali, era mais baixo. mentia.

sábado, 9 de agosto de 2008

O Teto de Dona Ondina

Desde a mudança para o novo apartamento, aqueles passos vinham lhe martelando a cabeça. Pesados, firmes, marciais, passos de quem nenhuma consideração nutria pelo vizinho de baixo. E o morador sob aqueles pés que pisavam com tamanha voracidade era ela, viúva, inválida, prisioneira de uma cadeira de rodas, clamando por sossego no apagar de sua existência, sossego quebrado pelos maus modos do morador do 802.
Menos de uma semana convivendo forçosamente com aqueles pés de pedra e pouco sobrara da curta paciência de Dona Ondina. Bastava o morador do 802 chegar em casa e o tormento se iniciava. Passos, a qualquer hora do dia. Uns secos, denunciando os pés descalços do vizinho em contato com o assoalho - Dona Ondina tinha a certeza pela natureza dos sons que o chão acima de sua cabeça era forrado por tacos - outros, agudos, quando a criatura portava sapatos. "Maldito! Se ao menos tivesse um piso para amenizar o trote", lamentava.
Certa noite, despertada pelo andar paquidérmico do vizinho, Dona Ondina, abandonou sua cama e embarcou na cadeira de rodas rumo ao interfone. Reclamou com o sonolento porteiro do comportamento anti-social do morador do 802 e pediu providências. Minutos depois, o empregado, agora desperto, certo assombro modulando a voz, informou à importunada velhinha que o "Seu Rosalvo" havia demonstrado bastante irritação com a abordagem àquela hora da madrugada e, como conseqüência, mandara um recado à reclamante.
— Que tipo de recado, Diderot?
O porteiro, iluminista só no registro de nascimento, ainda tentou amenizar a situação.
— Com todo o respeito, Dona Ondina, ele mandou a senhora tomar naquele lugar onde o sol não bate...
O incidente fez que dela germinasse profundo ódio em relação ao morador do 802. O rude trotar de Rosalvo tornou-se apenas um componente no manancial de insatisfações que a anciã cultivava por ele. Suas gargalhadas, visitas, músicas escutadas, barulho da descarga, cheiro das suas frituras de homem solteiro, tudo era motivo de reclamações. Diderot ainda tentava apaziguar a contenda porém, Dona Ondina era resoluta: “Até a respiração desse calhorda me incomoda”, dizia ela ao porteiro da noite.
A solidão de Dona Ondina provocada por sua dificuldade em locomover-se era, diluída pela visita semanal da faxineira e pela internet. Os netos, presença bissexta no apartamento, costumavam provocá-la, chamando-a de “Vovó Internauta”. Ela assentia rejubilada àquelas homeopáticas manifestações de carinho dos seus enquanto conectava-se em ondas cibernéticas com o mundo que lhe era privado pela fraqueza das pernas. Cadeira de rodas em frente ao computador, Dona Ondina surfava na rede, comprando o que era necessário para sua sobrevivência de mulher que pouco ia à rua, fazendo amigos virtuais, trocando receitas por e-mails, vasculhando a vida alheia nas páginas de relacionamentos pipocantes no universo web.
Foi quando ela chegou, obra do acaso, em curioso endereço eletrônico intitulado “Despacho.com”. No site a anciã descobriu, num misto de encantamento e horror, diversos trabalhos de religiões afros para o bem e para o mal. Numa seção, o internauta poderia enviar o seu “ebó virtual” para prosperidade, saúde, doença ou morte de algum desafeto.
Rosalvo estava impossível naquele dia, sapateando nos miolos de Dona Ondina, cd dos sambas-enredos no último volume. Ela olhou a tela iluminada à sua frente, encarou o teto como se dali brotasse o barulho provocado pelo morador do 802, suspirou e pediu perdão a Santa Prisciliana, de quem era devota.
Selecionou com o mouse o mais perverso dos ebós.
Clicou em “enviar”.
Os dias correram em velocidade banda larga e Dona Ondina esqueceu por completo Rosalvo, macumbas virtuais e netos ingratos, mergulhando por inteira em sua invalidez e no passatempo da internet. Em certo momento, percebeu que há dias nenhum barulho partia do andar de cima. Agora era o silêncio que a incomodava. Incômodo de mãos dadas com o remorso. Temeu que o ebó encomendado houvesse surtido efeito e internamente se justificava: “Foi um momento de desespero, o homem me perturbava o dia inteiro”. Ou ainda: “Não levei a sério o Despacho ponto com, foi uma brincadeirinha de velha”.
Entrou em pânico ao sentir o cheiro da carne apodrecida vindo do andar de cima. Imediatamente ligou para a portaria. Aristófanes, porteiro do dia, atendeu e de pronto foi averiguar. Minutos depois o interfone soou no apartamento de Dona Ondina:
— Ligue não, Dona. Era um pacote de carne podre que alguém jogou fora e ficou entalado na porta da lixeira do oitavo andar. Seu Rosalvo deve estar vivo e gozando a vida por aí.
— E você sabe dele, Aristófanes?
O porteiro do dia, que de gracejador possuía algo além do nome de batismo, não perdeu a oportunidade de vomitar um gracejo:
— Seu Rosalvo viaja muito. Faz uma semana que eu não vejo ele. Deve estar queimando a rosca em algum lugar.
— Como?
— Essas coisas, Dona. Tenho até vergonha de falar com a senhora. Esses negócios estranhos, de homem com homem, a senhora entende?
Dona Ondina entendia, mas não eram os gostos sexuais do vizinho do 802 o alvo de suas preocupações. Queria o silêncio pairando sobre sua cabeça e temeu o regresso de Rosalvo, pisando duro, gargalhando alto, ladrão de sua paz.
— Quem sabe ele se casa, Dona, com um gringo bonitão que leve ele lá pras estranjas? Copacabana tá cheia deles!
Se casou, não deu notícias. Meses avançaram sem que um único barulho escapasse do andar de cima. Nem o som de uma chave girando dentro da fechadura chegava aos ouvidos de Dona Ondina. Arrependida por julgar haver vitimado Rosalvo com as artes do ciberfeitiço, a anciã acendeu uma vela virtual e deixou uma oração pela suposta alma no “Santa Prisciliana on line”.
Alívio percorreu seu ser quando foi acordada uma noite pelos passos de Rosalvo. Por debaixo das cobertas, chegou a sorrir ao reconhecer as passadas familiares, rítmicas, do vizinho do 802. Ele estava de volta. Nada acontecera. Certamente, largado pelo namorado estrangeiro que não deveria existir somente na cabeça maledicente de Aristófanes, Rosalvo retornara. Dona Ondina reencontraria o sossego de espírito, roubado pelo silêncio que tanto ansiara. Jurou nunca mais reclamar de Rosalvo, emitir-lhes pensamentos rancorosos ou botar seu nome em bocas de sapos de mentira nas páginas da internet. Tentaria selar a paz com o morador de cima.
Porém, dias transcorriam e os baques provocados pelos pés de Rosalvo tornaram-se insuportáveis. Houve momentos em que ele chegou a andar por horas a fio massacrando os miolos da anciã a qual deixou de lado a trégua e acionou o porteiro da noite.
— Diderot, avisa para o Seu Rosalvo que ele está me deixando doida com esse barulho na minha cabeça.
— Como assim, Dona Ondina?
Os passos, Diderot, desse cavalo batizado do Rosalvo.
Percebeu uma sensação de constrangimento do outro lado da linha.
— Dona Ondina, Seu Rosalvo morreu. O corpo foi encontrado semana passada lá na estrada das Paineiras. Desovaram o coitado...
— Tem alguém no apartamento?
— Não, os parentes dele vêm amanhã para tirar a mobília.
Dona Ondina negou-se a consultar um psiquiatra. Os filhos, agora mais presentes, tentaram de todas as formar dissuadi-la da decisão, mas ela manteve-se firme. Era o finado vizinho que estava lá, sapateando sobre sua cabeça como forma de vingança por ela ter encomendado sua morte através das forças ocultas. E ela, pecadora, teria que permanecer ali até o final dos seus dias purgando a sua maldade com um semelhante. “Deixe de besteira, mãe” dizia um filho. “Se ouvem a senhora falando deste modo, acabam acreditando e te denunciam”, dizia o outro. “Vocês não o percebem porque ele é esperto. Fica quietinho quando tem mais alguém em casa. Ele só que me atormentar, e com justiça”. Os filhos desistiram. Que a mãe ficasse com suas loucuras.
Dona Ondina passou a pesquisar em sites sobre fenômenos mediúnicos e descobriu que o modo mais fácil de se comunicar com aquele tipo de espírito seria através das pancadas que ele emitia.
Logi que as batidas no teto voltaram, ela perguntou com firmeza:
— É você que se manifesta, Rosalvo? Se for você, bata duas vezes.
Três batidas secas.
Repetiu a pergunta diversas vezes. Sempre as mesmas três pancadas em negativa.
Intrigada, ela catou caneta e papel para em seguida pergunta:
— Pode então soletrar seu nome através de um número de batidas correspondente a cada letra do alfabeto? Um batida para a letra "A", duas para "B" e assim por diante? Se concordar, bata uma vez.
Uma batida.
— Então, vamos ao trabalho.
Gastou a tarde inteira conversando com o morto pelo método das pancadas. Descobriu chamar-se Ângelo e que vivera naquele apartamento 30 anos atrás. Permanecera no imóvel sempre assustando àqueles que se aventurassem nele morar, porém, estava cansado dessa vida de fantasma batucador de tetos. Antes, tentara fazer o mesmo com ela, Ondina, mas ficara decepcionado com a confusão que a velhinha fizera entre suas batidas e os passos de Rosalvo, realmente barulhentos. Estava mesmo surpreso por ela imaginar ser ele o espírito de Rosalvo. Tranqüilizou a anciã afirmando que o morador do 802 não fora vítima dele, nem tão pouco dos seus ebós à distância. Rosalvo morrera por obra de um assaltante especializado em seduzir homens para roubá-los. "Reagiu, o pobre coitado".
Aperfeiçoaram o método de comunicação, passando das batidas, alvo das reclamações do vizinhos, para a escrita no computador. Dona Ondina digitava e Ângelo respondia logo abaixo, guiando o cursor como por encantamento.
Dona Ondina viveu seus últimos anos assim, em colóquio diário com o espírito batedor. Soube noticias do outro lado, inclusive de parentes. Ângelo revelou-se um ótimo correspondente do além. Guardou segredo até o fim. Ninguém acreditaria mesmo...

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Submergente



Estudante, operário, comerciante, marchant, empresário. Após a falência, estelionatário, escroque, rufião, traficante, ladrão.
Entrou no casarão. Como uma mansão daquelas não tinha alarme, vigia, sistema de câmeras, nem ao menos um cachorro? Portas, cadeados, grades reforçadas eram moleza. Passou os olhos pela grande sala. A dona da casa, indubitavelmente, tinha bom gosto, uma bela coleção de obras de arte. Mas não estava ali para furtar, não hoje. Andou pela sala, vasculhando-a de uma ponta a outra. Finalmente encontrou, num canto escuro sobre uma mesinha de madeira no estilo art nouveau, o objeto desejado: o vaso de porcelana feito no século 14, no período Hongwu da dinastia Ming. Segurou com todo cuidado, retirou da mesa com mais cuidado, depositou-o no chão com mais cuidado ainda. Desafivelou o cinto, arriou a calça, vergou o corpo, cautelosamente, até suas nádegas tocarem a borda do raro e caro artefato. Necessário não foi forçar muito para fazer aquilo que, forçosamente, tinha de fazer, dada a eficiência bombástica da buchada de bode consumida no almoço. A merda esguichou, veemente e impetuosa, no interior do vaso. Pronto. Estava feito. Se a cigana estava certa, sua vida começaria a mudar ainda naquela noite. Dirigiu-se ao banheiro, onde limpou-se com fino e macio papel higiênico de tripla camada. Saiu da casa, satisfeito, preparado para sua nova vida de braço dado com a fortuna, novamente. De novo a luz dos holofotes, de novo seu nome aclamado pelo high society, de novo seu rosto estampado nas colunas sociais dos grandes jornais. Ao cruzar o portão, uma forte luz no rosto fê-lo emergir de seus devaneios.
- Polícia! Você está preso, Gastão Hepaminondas!
Na manhã do dia seguinte, pediu emprestado o jornal do carcereiro, sua foto estampada na primeira página. "É." - pensou - "mesmo sendo uma gradessíssima filha da puta, a cigana estava certa."

Carlos Cruz - 01/08/2008

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Samba Roots

Quando ela entra dançando
passeia altiva na passarela
é fogo no corpo cantando;
a quadra toda admira
a quadra toda é dela

Solta sozinha no samba
pele trigueira que brilha
um dia ainda crio coragem
e digo em forma de canto:
ah, Morena, como eu te (s)am(b)o!

sábado, 2 de agosto de 2008

A unha

A unha

Uma mulher linda, dessas de perder-se à primeira vista, mas sou perfeccionista e não pude deixar de notar que lhe faltava uma unha. Tinha uma boca pecaminosa, do decote saltavam eles, reluzentes, fartos e apetitosos, mas volta e meia meus olhos caíam no dedo sem unha da moça.
Peguei-a pela cintura, apertei-a contra mim e latejando meu corpo pedia o dela, seu pescoço era lindo, escorreguei minha língua nele e me servi de seus seios, de sua barriga e de todas as suas carnes moles.
Mas quando me desconcentrava, vinha a imagem da unha que faltava no dedo do pé esquerdo. Aquilo me tirava o tesão mas tentei me abstrair.
Comi a prenda uma, duas, mas na terceira vez não consegui esquecer. Não riam, não foi engraçado, brochei, não consegui esquecer a maldita unha.
Dormi e acordei com os berros da moça no banheiro, disse-me:
_ Seu desgraçado, nunca mais transo com você noiado, olha, comeu a unha do meu dedo do meio de pé esquerdo!

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

O que faço agora?

Olho a mesa do meu serviço, lotada de processos, e penso em escrever alguma coisa, qualquer coisa, afinal, me intitulei escritor. Não tenho livros nem leitores, mas se me perguntam, respondo: escritor. É claro que isso me impede de me dedicar ao trabalho que paga as contas, também me atrapalha na busca de qualquer outra função. Sempre agi como o herói perdido entre ruelas malditas do baixo meretrício. Me mantive pronto para a ação, imaginária, enquanto a vida real, chata e monótona, escorria pelos dedos; sempre gostei mais de sonhar.
Leio as linhas acima e fico mais satisfeito com elas que com o salário que entrou hoje. Recebo quanto valho, na verdade. Minha dedicação é mínima, então me sobra o equivalente. Sei que seria capaz de comandar a porra toda, fazer um puta trabalho e resolver todos os problemas, mas já que o reconhecimento seria nulo, além de me render absolutamente nada, recolho minhas garras e digito neste computador. O salvador permanece em hibernação.
Elocubrei dois enredos maravilhosos de livros best-sellers enquanto almoçava, sozinho, no self-service mais barato do Venâncio 2000, o prédio mais acabado do Setor de Rádio e TV SUL, em Brasília, a capital mais amoral do país mais indolente da América mais pobre. Depois, enquanto passeava ao redor da fonte da Torre de TV, para relaxar e pegar um sol, que ainda é gratuito para todos (pois há coisas como a liberdade, por exemplo, que são gratuitas apenas a quem tem dinheiro, ou seja, mais uma hipocrisia humana) me felicitei pelos futuros milhões de exemplares vendidos, finalmente sendo aclamado como o genitor de uma narrativa inovadora, baseada naquilo que o leitor não seria capaz de supor durante a leitura, além de inserir as surpreendentes novas conceituações antropológicas da anarquia e do ateísmo baseado na Força.
Parei para coçar o umbigo.
- será que só penso em mim mesmo? – Eu me condenava por negar a sociedade capitalista mas, ainda assim, aspirar a fama neste ambiente asqueroso.
Cutuquei a coceira e descobri um carrapato. O filho da mãe poderia estar ali desde minha adolescência, lembro de umas sujeirinhas que nunca saiam (nunca tive tempo para vaidades).
Arranquei o bicho à unha.
- há quanto tempo você tá me vampirizando? – O artrópode respondeu mexendo as perninhas, gordo, bem alimentado com meu sangue.. – ah, é? Então vai morrer! – E o esmaguei sem dó.
O umbigão continou coçando. Se fosse a palma da mão, torceria para ser a mandinga que dinheiro está para chegar, mas o umbigo? Do que ele me alertaria?
Fui a duas reuniões e despachei com um chefe e um coordenador. Autoridades públicas. Eu também sou uma autoridade, num emprego chato, vinculado a políticos, cercado por sanguessugas e completamente decepcionado por deixar minha vida chegar tão fundo na ladeira, mas só me regozijo por não pertencer a esta função, é só um emprego temporário, como todos nos últimos 15 anos. Se der na telha, mando tudo pelos ares e volto pras estradas com minha mochila. De uma forma bem idiota, meu fracasso profissional me dá uma sensação abobalhada de felicidade. Se não estou firmemente vinculado a um emprego formal, bem remunerado, avançado na carreira, não fico apreensivo em escapar por ai. Já fiz isso, até. E me arrependi. Mas foi bom. Não sou idiota, aprendo com meus erros, mas os tempos são outros e as decisões também; é a ironia da própria história! Com ela se aprende o que não se deve fazer, porém não dá a menor dica de qual seria o melhor caminho. Nunca ajuda na parte positiva. O que faço agora? Eu nunca sei...
Assisti um documentário sobre os suicidas na ponte de San Francisco. Pude sentir a dor daquelas pessoas que se jogavam para a morte. Me impressionou tanto pois, é claro, já sofri o mesmo desejo funesto. É uma desilusão tão infinita com o futuro, uma distância tão intransponível para a felicidade, uma amargura que pesa os olhos, a cabeça, os ombros, como um Atlas carregado de derrotas. A solução torna-se óbvia: resetar a máquina e acreditar no ciclo da evolução!
Tá tudo bem escrito, falta apenas encerrar ligando todos os fatos. E preparar a surpresa final. É o que faço agora, afinal, acho que sou um escritor.
O umbigo inflamou, formou uma casquinha e acumulou lã de casaco. Ou seja, voltou ao normal. Na verdade, parece mais saudável que nunca. Dizia: olhai a bonança depois da infestação. Me falava para ter fé na Força. E, curiosamente, tô de olho nuns concursos públicos. Acho que não sou idiota, não posso ter esquecido tudo o que já aprendi, tanto nos estudos quanto nas experiências tristes, ambas degraus para a maturidade. É tempo de acordar o herói para salvar ao menos uma vida: a minha. Eu preciso viajar pelas estradas, mas viver não é preciso. Tenho que me dar conta dessa paráfrase a Fernando Pessoa e acertar os ponteiros. Se a hora de sonhar já acabou, vou seguir adiante. Darei o passo em frente à beira do abismo.
.
Sim, se mais uma derrota é iminente, a lógica, vulcaniana ou aristotélica, é simples. Um salto, ou tiro, e que a Força esteja comigo.

------
publicado em Modelos de cartas de suicídio.