quinta-feira, 6 de setembro de 2007

O Funeral

Todos estavam muito quietos, com exceção das crianças que corriam no jardim, por não entenderem a solenidade do momento. Otávio ria, aquele sorriso de canto de boca que ela conhecia bem, começou a observá-lo depois que percebeu o cinismo em seus gestos. Sabia bem que tramava algo, pois estralava os dedos, com aquela expressão que conhecia bem. Continuava um "lord inglês", estava dentro de um terno azul petróleo, usava uma gravata nada convencional, sim, se lembrava que ele tinha um estilo todo seu. Uma camisa cinza, quase prateada, os cabelos desalinhados, um "rebelde" mesmo, não deveria estar observando-o tão despudoradamente, estava acompanhado de uma bela jovem, num vestido negro esvoaçante, presa a ele por um olhar compenetrado. Os dele quase em uma prece, atentos aos vitrais do altar principal. O que o movera de Londres até ali? Pelo que sabia, ele ainda morava lá. Cecília tentava disfarçar, fixava-se no pai imóvel, como que para acreditar que aquilo tudo estava acontecendo, que era ele mesmo deitado, como quem dorme, como aquele gigante da fábula que ouvia quando menina, o que os elfos e as fadas acreditavam estar morto e na verdade estava apenas adormecido, será que finalmente estava livre dele? Colocaram Edmond em um terno antigo, os punhos da camisa ficavam pra fora das mangas do casaco e a barriga saliente ressaltava sobre os botões. Para que colocar um terno antigo nele? Tinha tantos novos, assemelhava-se a uma caricatura do que fora durante toda sua vida. Era um homem alinhado, sempre bem vestido, sapatos cintilando, perfumado, cabelos bem arrumados e barba serrada, com muita perfeição. Seus olhos eram tão grandes, que mesmo fechados por completo, ainda poderia-se ver os globos oculares, quando dormia era assim, os olhos meio abertos, não era nada agradável vê-lo dormir. Temia que a qualquer momento ele se levantasse e debulhasse sua ira sobre todas aquelas pessoas. A missa foi bonita, mas parecia que não havia ninguém ali, com exceção da moça em um vestido azul marinho, que chorava baixinho, e hora ou outra suspirava, inconformada, nem a viúva chorara daquela maneira desesperada. Às vezes olhava para Otávio, agora a moça passava um lenço sobre sua testa, fazia muito calor e não soprava nenhuma brisa, desviava o olhar, quando ele se mexia, ela não queria causar constrangimentos. Voltava os olhos para o pai, tinha apenas uma lembrança boa dele, no dia que saiu de casa para completar seus estudos em Londres, ouviu dele algumas palavras amigas e ganhou um beijo na testa, carinhos dele eram raros, talvez por isso ela se lembrava sem parar daquele beijo. Não entendia apenas a ausência de César ali, ele sabia o quanto precisaria dele, mas não apareceu, ele não dividia o mesmo espaço com Edmond, isso era fato, mas já estava morto o infeliz, queria a mão de César ali, para ampará-la.A capela do mausoléu estava cheia, estava com enxaqueca, parecia que os sons ecoavam, badalavam em sua mente, depois da missa de corpo presente os amigos e parentes resolveram se compadecer do morto e descrever pequenos acontecimentos que mostrassem sua bondade, seu espírito caridoso, sua benevolência. Ele não era bom, definitivamente não. Seu irmão fez um discurso lindo, dizendo que Edmond era um homem incapaz de ferir alguém, teria ele se esquecido que o morto quebrou-lhe o braço em uma de suas brigas mais violentas? Ana, sua prima, falou de balas e doces que ele distribuía no dia de São Cosme e São Damião, teceu comentários amorosos sobre o tio e nada mais. Caim, o irmão caçula do defunto, relembrou o empréstimo para construir a marcenaria e sobre ser seu companheiro de boemia, bem dele mesmo, o tipo de comentário tacanha, para o momento. Seu pai um homem perturbado, que não tinha noção de sua força física, se lembrara bem das inúmeras bofetadas que ganhara, por ser tão sincera. Tinha vontade de rir, de pegar aquela grande mão e dizer: _E agora, Sr. Edmond, em quem essa mão enorme ira bater agora? Mas já havia dito tudo a ele em vida, por isso parecia que todos a fulminavam com os olhos, ao se aproximarem do caixão. Mas ela se sentia bem, aliviada até, como era bom estar livre dele. O cheiro dali era insuportável, as flores estavam murchando e o defunto parecia suar, ela apertava o lenço contar o rosto, tinha ânsia seguidas. Mas ele merecia cheirar mal, nenhum perfume esconderia mais a podridão de seu ser. Enquanto pensava, ouviu a voz de Otávio, o que ele teria a dizer sobre Edmond? Todos se voltaram para ele. _Edmond não era um homem bom, e não é porque é morto que não deve-se dizer a verdade sobre ele, sei que muitos aqui se compadecem com a dor dos familiares, mas o conheci de perto, a família deve estar mais aliviada do que triste – dizia ele em tom inquisidor. Cecília suspirou, quando entendeu o tom do discurso, seus olhos brilhavam mas ele calou.Queria ter dito que sua esposa sabia o peso dessas mãos, o quanto lhe custou viver ao lado daquele homem insensível, seus filhos também conheciam essa força, que seu pai conhecia a extensão da ira dele, por ter costurado, feito curativos, enfaixado, engessado, prescrito analgésicos para curar as feridas que Edmond abriu.- dizia para si, olhando para Cecília, o quanto foi penoso conhecer aquele homem.Sentira a ira dele quando ajudou Cecília, depois de muitas brigas e agressões, acolhendo a mulher que amava secretamente, em sua casa e fora um homem mais feliz enquanto estavam juntos. Fora vítima daquele homem e por não ter forças para lutar contra ele cedi, por ser covarde, cedeu. Em silêncio quase melancólico, quase teatral, olhava para o chão. Parecia reprimir o choro, o soluço estava agarrado na garganta, mas ele não permitia que saísse. Calou-se, não estava determinado a ir até o fim. A moça que o acompanhava veio em seu auxílio, segurou-lhe a mão e falou algo em seu ouvido e ele respondeu negativamente com a cabeça. Fora fraco por não ter dito a ela sobre meu sentimento, induzido pelas palavras de Edmond, deixou que o envenenasse. E foi um veneno tão forte, que por anos pensara ter esquecido os seus sentimentos por Cecília, mas continuavam ali, todos eles. Ainda trazia aquela menina em sua cabeça e em seu peito. Aos olhos de Cecília, ele não parecia mais aquele homem forte e impetuoso, que conhecera há mais de quinze anos atrás, que a protegera tantas vezes da mão dura de seu pai, estava debilitado, quase vencido. A viúva parecia uma estátua, imóvel, calada, não derramara uma lágrima, já se vingara dele, iria ser enterrado com o terno mais antigo que tinha, provavelmente o mais desengonçado, era uma doce vingança, sorria para a segunda viúva, que estava sentada na primeira fileira e na hora do cortejo cochichou , "-Vá na frente, você é a viúva!” - Mas o defunto cheirava tão mal que nem a amante quis ficar perto do caixão. O fim dos homens ruins e bons eram o mesmo, quando fecharam o caixão muitos dos presentes se sentiram aliviados. Enfim estavam livres dele. As palavras de Otávio talvez soassem falsas pois pareciam brotar dela, era o discurso que queria ter feito, mas foi hipócrita demais para fazê-lo, já estava cansada de estar sempre errada, de ser a inconformada.O cortejo seguiu silencioso, Cecília permaneceu ali, ao lado de Otávio, restaram apenas os três. A moça mais afastada e eles sentados lado a lado. Por fim quebrou-se o silêncio de mais de uma década, entre os dois,“- Vi você logo que cheguei, mas não tive coragem de encará-lo, estava acompanhado.” _Por ela? - riu-se - Ela é uma amiga, minha enfermeira, preciso de cuidados constantes. Mas não quero falar disso agora, preciso de ar fresco, me acompanharia em um passeio longo e esqueçamos dos outros, só por hoje? Seguiram pelo mausoléu de mãos dadas, o dia os esperava.



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2 comentários:

Deveras disse...

Esse Edmond devia ser o cão em forma de gente, hein?

Bem psicológico o texto, adentra os traumas e as violências guardadas dentro dos personagens.

Um tema pesado, mas um ótimo tema.

ficanapaz

Muryel De Zôppa disse...

Reflexivamente bom. leitura sem tropeços.