segunda-feira, 2 de junho de 2008

A fuga

Depois que golpeou Amadeus, deu-se ao luxo de observá-lo por alguns minutos, era um homem sereno, jamais alterara a voz, não proporcionou-lhe nada além do que ela tivesse desejado. Era um homem de princípios, pois se preocupava com a saúde e cuidava melhor dela que muitos de seus amantes. Frizava incançável que o relacionamento deles estava errado desde o começo. Foi o único que a compreendeu naquele lugar, só ele estendeu-lhe a mão com carinho, sentiu por vezes que a amava. Cecília nutrira bons sentimentos por ele, mas isso não a impediria de fugir, queria sentir-se solta, longe dali. Bateu com o dedo na seringa por três vezes, o calmante estava pré-destinado à ela foi injetadi na veia dele.
Não sabia distinguir seus próprios sentimentos, como interpretar os alheios? Estava confusa, não suportaria nem mais uma noite ali, no desespero do momento era guerra, ou ela ou ele.
Deu-lhe um beijo aos prantos, sentiria falta, acariciou-lhe a face e deixou-se recostar em seu peito pela última vez. Como podia sentir-se acolhida e querida por um desconhecido? Como se entragara assim? Perdera a conta de quanto tempo perdera ali dentro, mesmo que sentisse ódio, ele tinha sua importância.
Espiou o corredor, olhou dos dois lados, os dormitórios com as luzes todas apagadas, mas ouvia Estela, a louca da boneca de pano". Cantava o que parecia uma canção de ninar, tudo estava vazio e silencioso, pelo adiantado da hora, as pessoas estavam dormindo, com excessão de Estela, que não dormia durante a noite.
Cecília assustava-se com cada sombra, com cada mínimo barulho que ouvia, o corredor ficava mais longo a cada passo e no mesmo compasso a música da louca distanciava-se, foi assim até alcançar o banheiro feminino.
A luz era forte e branca, feria-lhe os olhos noturnos e assombrados, quando se acostumou com a claridade, olhou-se no espelho, no que se transformara? Lembrava-se de suas festas, de seus cabelos arrumados, de suas unhas carmim. Não podia crer que era aquela figura refletida ali, um animal acuado, com medo da própria imagem, olhos esbugalhados, respiração rápida e inconstante.
Tinha que ficar calma, encheu os pulmões de ar, como se aquilo ajudasse, de algum modo, apertou sua mão direita sobre o peito, num acalanto de si e revirou os armários nenhuma roupa apenas uniformes, dezenas de uniformes de enfermeira, tirou sua camisola de algodão-cru, fitou-se mais uma vez, cheia de marcas roxas, resultado das lutas contra seus monstros internos, contra os enfermeiros. Vestiu-se, penteou-se, mais uma vez o espelho, para se certificar de seu disfarce, não pretendia ser notada e saiu descalça pelos corredores por não encontrar nenhum par sapatos.
Mas quem olharia para os seus pés agora, todos dormiam. Ouviu o sussurro de Estela, "-Vá e diga à Orlando que sobrevivi!"
Quem seria Orlando, será que percebera sua fuga? Completou dizendo, "- Diga que não desisti, que derrubarei meus inimigos um a um!"
Ao encontrar a última porta, ainda com a frase de Estela na cabeça, depara-se com um vigia que levanta a cabeça se despedindo, “boa noite, Marie!” Ela respondeu com um breve cumprimento, sem encará-lo e saiu.
Observou, por um breve instante a vastidão escura que a esperava, não havia lua naquela noite, as estrelas cintilavam plenas, como se soubessem que ela estava solta e as luzes amareladas dos postes não abriam tanta claridade quanto precisava. Um calafrio percorreu-lhe a espinha, viu-se liberta, mas para onde ir? Não poderia voltar para casa, tinham-na como um estorvo, uma assassina, a internariam de novo.
Quase sentiu saudade da clausura, do barulho de suas abelhas, da beleza de seu jardim, dos carinhos de Amadeus.
Em seu íntimo entendia que a liberdade utópica era menos complicada que a verdadeira. Não queria pensar em nada, mas seus pensamentos livres como ela, soltos, descalços, sem direção, sem regras, a perseguiriam vitalícios. Respirou fundo e entregou-se a corrida o quanto suas pernas permitiram.
Depois da fuga frenética, encontrou um banco de praça e se sentou, os pés tinham bolhas, alguns pedregulhos estavam presos entre a pele e a carne. Enquanto arrancava-os sem o mínimo cuidado, os ferimentos sangravam, o seu corpo pedia para se deitar, mas na cabeça uma voz alertava-a, se parasse agora seria capturada e levada de volta, o que ela menos queria.
O dia já estava amanhecendo, logo perceberiam sua fuga. Procurou em sua volta, só havia um bêbado deitado na sarjeta, cantarolava algo, mas ela não distinguia o que.
Em uma vitrine sapatos carmim, lindos, flamejantes, uma pedra e os sapatos estavam em seus pés, mais uma vez fugia. E o bêbado gritava, “agora ela tem sapatos vermelhos, a enfermeira tem sapatos vermelhos!”
Sentia-se como "Dorothy Gale", no filme o Mágico de Oz, nos seus sapatos vermelhos, perseguida por monstros e pela bruxa do oeste, tinha a saída em seus sapatos carmim reluzentes, era só batê-los um no outro e repetir seguidas vezes "não há lugar mehor que minha casa, não há ligar melhor que minha casa!"
A quem queria enganar? Não havia lugar pior que sua casa, talvez houvesse, mas ela desconhecia.
Os saltos dos sapatos prendiam-se nos vãos dos paralelepípedos que eram negros e não dourados, como no filme e caminhar com eles era mais complicado que caminhar descalça, tirou os sapatos e continuou a andar, os pés já não doíam mais.
Sentia fome, sede, medo.
Depois de ter andado muito e o dia estar claro, avistou uma pequena cafeteria, entrou, sentou-se, a atendente veio e ela pediu apenas um copo com água. A moça com uma saia curta e olhos gentis, logo trouxe-lhe a água. Cecília bebeu de uma só vez e levou as mãos ao bolso, dissimulando o esquecimento do dinheiro. “A água é por conta da casa”, disse a atendente, comentou que não parecia bem, se precisava de ajuda, Cecília perguntou onde ficava o banheiro.
Viu-se no espelho, estava péssima, ligou a torneira e passou água pelo rosto, pescoço e ajeitou os cabelos mais uma vez. Apática pelo pavor que era tanto que seu coração ecoava dentro de seus ouvidos. Revirava o pescoço com vigor e passava a mão pela nuca, tentando relaxar um pouco.
“Precisa de ajuda?”, uma senhora de olhos caramelados, perguntava, a senhora bem idosa, com vestido colorido, com muita maquiagem nos olhos, cabelos que de tão brancos pareciam acinzentados e uma voz compadecida e carinhosa, insistia, “se precisar de alguma coisa é só pedir”. Como se alguém pudesse ajudá-la.
Acenou que não, com a cabeça e a senhora completou, “deve ter tido uma noite difícil”.
Cecília respondeu internamente, não imagina o quanto e apenas sorriu.
Olhando-se no espelho, sua imagem invertida do outro lado fez-se uma pergunta perturbadora, fugira de si mesma, todo esse tempo?

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