FIM DA VIDA
I
Tem
dias que acordo, assim, com medo da vida. Fecho as cortinas, tiro os
sapatos, me visto de silêncio e me alimento de lágrimas.
Desligo
o telefone, dispenso a empregada e coloco meu gato para fora. Tento
afastar o mundo com as mãos enquanto me cubro com as cobertas.
Dizem
que é coisa de poeta. Outros, que é coisa de louco. Como se dor fosse
privilégio de alguns. Mas o que vejo quando permito que o mundo entre em
minha casa, pela tela falante, causa muito mais dor do que eu já sinto.
O mundo está rachando em tsunamis e terremotos. Furacões furiosos
devastam o que destruímos antes superficialmente. Vejo crianças com
fome, outras trabalhando enquanto sonham que estão brincando de
escravos. Escuto mentiras vestidas de promessas. Assisto a comerciais
que oferecem sonhos. Vejo, assustado, dragões se alimentando da
esperança de inocentes.
Percebo
que sou uma sombra projetada na parede, distorcida e fraca. Fecho os
olhos e busco desesperadamente, no cinema de minhas memórias, lembranças
que sirvam de elixir da vida. Penso no meu jardim, com sua
jabuticabeira que enfeita os cabelos com brancas flores, como noiva ao
caminho do altar, fecunda e acreditando em seus frutos. Sinto o pelo
macio de um cachorro feliz, que abana o rabo somente porque eu cheguei.
Escuto a gargalhada de um bebê encantado com uma bexiga que lhe escapa
das mãos e vai cambaleando como um bêbado pelo teto da sala. Lembro-me
dos aniversários festejados com beijos e abraços.
Onde
estarão meus filhos? Onde estarão os amigos? Onde estará a vida? Se
eles soubessem que os velhos precisam de tão pouco... Uma visita de
cinco minutos é o melhor analgésico. Notícias dos netos que fizeram um
passeio nos levam a viagens indescritíveis. Tão pouco para nós. Sei que
muito para eles. O mundo dos jovens é outro. Cheio de aventuras.
Conquistadores, desbravam o mundo. Mas ainda não são altruístas o
suficiente para dividir com os idosos. Com o tempo, perceberão que tudo
passa. Não há tristeza eterna. Nem felicidade.
Olho
no calendário e controlo as datas marcadas em vermelho. Nos
aniversários eu posso ligar, que os encontro em suas casas. E aguardo
ansiosamente o dia dos pais, do meu aniversário e do natal. É tudo que
resta do ano para mim. Três dias em que eles aparecem. Três dias em que
eu abro minhas cortinas, me visto de terno e gravata, e sento-me na
varanda para aguardá-los.
IITalvez
sejam agraciados os que lá chegam. Há poucas semanas, perdemos um amigo
de cinquenta e quatro anos que teve um ataque cardíaco após jogar
futebol por meia hora. Deixou esposa e duas filhas adultas, além de uma
netinha. Semana passada, perdemos uma amiga de apenas trinta e cinco
anos. Ela deixou o marido e o filho de quatro anos cuidando da bebezinha
recém-nascida de quinze dias. Teve um AVC seis dias após o parto, foi
internado em coma e não mais acordou. Morreu feliz por ter tido a menina
e completado a família que não pode acompanhar. As fotos da gravidez,
ultrassom, escolha do nome, cada momento foi compartilhado com amigos
pelo Facebook, inclusive a notícia de sua morte. Quando a morte chega
tão perto de nós, refletimos sobre a vida. Cada dia é um mistério. O
simples fato de viver é um mistério. Seria prudente se celebrássemos a
vida e dedicássemos mais tempo às pessoas que amamos e menos tempo ao
mundo das coisas.
Todos
que se foram até hoje, foram de mãos vazias. Só nos resta preencher o
coração. Agende, se preciso for, uma visita aos familiares e amigos. São
os únicos que nos amam independente do que temos ou somos. E, quando
partem, não temos como voltar nem um dia para dizer o quanto os amamos,
fazer uma visita ou um carinho.
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Um comentário:
Primeiro pitaco dado, dos muitos que ainda virão. Você não me conhece, nem eu, mas estou tentando me descobrir escrevendo também. Do jeito que você escreve dá vontade de só ler e olhe que esse foi o primeiro texto que li. Prazer sou Elise de Fortaleza. Parabéns!!
http://sigiloquebrado.blogspot.com.br
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