segunda-feira, 21 de maio de 2012

Allen leva um lero com o ego

   Estava na sala com a tevê apagada levando um léro com o ego. Encheu os dois copos na mesa de centro.
   “Ééé rapaz... veja só que maravilha... o pessoal todo por aí dando entrevistas, se enfiando na lama, cavando buracos e a gente aqui, numa boa...”
   (...)
   "Diabo! Não vê que meu sapato tem pedra por causa tua? Não fosse você agora eu estaria na praia com o pé na areia, tomando uma cervejinha e comendo mariscos, depois escolhendo um vestido ‘célula-tronco by falcão’ pra dar de presente pralguém! Além do quê esse vinho que a gente tá tomando eu tive que pegar escondido na geladeira, qual a lógica?!”
   Deu um gole.
   “Conversa fiada!... aquele bando de hippies. Maior baboseira utópica, qualquer doutor poderia largar a profissão e meter uns dreads na cabeça...”
   As coisas que o ego dizia incutiam-lhe mazelas no espírito.
   “Não!”, esbravejou só, “a galera é bacana, e depois onde é que fica o cerne da psicodelia? Todas aquelas cores vistas do caleidoscópio? Havia a união e o respeito, a celebração entre os amigos, caramba, the flower power!”
   “The flower power?! Amigos?! Você é louco?!”, contestou a si, “veja só o que a vaca fez com você, agora cá está, escolhendo a melhor bituca dum cinzeiro velho, sem ao menos poder ver tevê...”
   Aquilo tudo o deixava muito confuso, de maneira que não viu outra saída senão esmurrar a mesa de centro, no instante que repreendeu: “não me dou o direito!”.
   “Direito de quê? De dizer a verdade? Eis a verdade, rapaz, você tomou lambada!”
   “Não tomei! E ela não é vaca. Uma rã, talvez...”
   “Uma rã?”, estranhou o próprio
   “Bom, enfim...”
   Ouviu-se então um zumbido seguido pelo silêncio mórbido de um cômodo fantasmado iluminado só pela luz da lua que vinha da janela. O ego foi quem tomou a iniciativa de recomeçar:
   “Rapaz... você precisa esquecer essa mulher... Veja lá, você é bonito! Vai ficar aí feito um parasita judeu chorando a perda daquela buceta?”
   “Mas era bonita”, pensou no momento que se levantou da poltrona e caminhou até a parede ao lado da porta de entrada onde havia pendurado um espelho desses que refletem o corpo inteiro. Concluiu que o ego tinha razão: a impressão que tinha era a de se estar em frente a um deus da Grécia, tamanha a beleza da imagem.
   “Fato”, concordou
   “Genes em perfeita harmonia... teu rosto é simétrico! Ora, faça-me o favor!”
   “Não tem necessidade, né?”, caindo em si
   “Até que enfim!”
   “Mas tem essas cicatrizes aqui do acidente com a moto, e o cabelo também não está lá grandes coisas, né?” (ele tinha sofrido um acidente de moto, e há anos não penteava o cabelo)
   “Mas nada que o tempo não resolva...”
   O ego era capaz de colocá-lo pra cima, enchendo-o de estima. Um amigo único. Ficou então por alguns minutos em frente ao espelho se estudando, assimilando veracidades em tudo o que ouvira de si, enquanto sussurrava:
   “Você é um fenômeno...”
   Abaixou a bermuda. A pica, mole, terminava com a cabeça roxa na metade da coxa. De fato, senão era um fenômeno, algo no mínimo esquisito. Enfim, tudo o que o ego lhe dizia fazia muito sentido e não via maneira de fugir dele.
   “Você é um artista contemporâneo pós-moderno! Esqueça a vaca! Viva! Carpe diem! Lembre-se sempre dos poetas mortos e de Robin Willians, de Tom Cruise em Vanilla Sky... A hora é agora!"
   Com freqüência, porém, as hesitações lhe pegavam desprevenido, quando tudo não passava de suposição dentro daquele grande devaneio mental.
   “Será? Mas eu não quero morrer”
   Feito um cego perdido no labirinto, palpando as paredes ia encontrando as saídas naquele solilóquio.
   “Como é que você pode ainda ter dúvidas? Há quem desenhe gnomos e pense que é arte e, morrer, de onde tira essas coisas?”
   “Mas eu não tenho nada contra os gnomos, e porque não poderia ser arte? Os poetas mortos...”
   “Bom, deixa pra lá os poetas mortos...”
   “Melhor...”
   “É...”
   Voltou à poltrona. Sentou-se e matou o vinho que havia num dos copos. Resolveu beber o do ego. Para ele havia uma pequena dose, que foi degustada num único gole: sentiu alguma parte do cérebro egocêntrico se satisfazer.
   “Àfonso...”
   “Àfonso...”


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