domingo, 10 de junho de 2012

Convidada Maria Luiza Falcão


CHORO NA CALÇADA


Percebe-se o choro já de longe, mas só de perto dá para ouvir melhor. E independente das suas razões, ele atrai as pessoas.
Os de mais sorte, confortavelmente instalados, mergulham em seus mundos bem alimentados, em estado de fervilhante alegria. Preferiam que aquele som não existisse, ou que parasse, não importava como. Mas diante do inevitável, fazem-se moucos, falam muito e até riem, tentando com isso abafá-lo. Os solitários buscam com olhos carentes. A solidão urbana é grande e senta-se a qualquer mesa, sem distinção. Mas todos ali sabem o que está acontecendo e, sem alarde, simplesmente deixam acontecer.
Alguns lhe dão as costas. Encaram os demais como a perguntar: você está ouvindo algo? Sem resposta, permanecem no lugar, ouvintes, porém passivos.
A menina chega.
Um grupo sequer nota. Parecem mesmo alheios a tudo, num universo à parte, compondo uma tribo especial. Entre si muitas semelhanças, no falar, vestir, agir... Corpos marcados com tinta, enfeites, estranhos objetos de um culto próximo à autoflagelação. Assemelham-se a sombras em suas vestes negras. Destacam-se, mas não se misturam. Partilham seu mundo e só.
A menina procura...
Há os que passam, nem distantes, nem presentes. Extraterrestres, viventes de um mundo além. Viajam em naves de lata ou vidro, aspirando vida, queimando suas existências. Seres que flutuam, que vão e vêm. Um deles recusa-se a ouvir. Acomoda-se no calçadão, oferece amendoim aos vizinhos, partilhando a própria miséria. Saca de um bolso um tosco instrumento e tenta a força preencher o ar com suas notas. Sem conseguir, chama em auxílio o menino que observa sentado em sua caixa de engraxate. Pretensão e esforço em vão. A pequena flauta está muda. Talvez em respeito ao choro. Talvez morta para o mundo, como seu próprio dono. Ninguém jamais saberá.
A menina oferece.
Alguns pares, de olhos fixos em suas mesas, estão alheios a tudo. Vivendo em castelos, em eterna guerra entre reis, rainhas e bispos, percorrem mentalmente aquelas estradas, calçadas em branco e preto.
A menina circula...
Outros seres voejam aqui e ali, oferecem, pedem, suplicam. O homem de barba estranha pára com seus badulaques. Mas o momento não é propício. Ninguém quer comprar. Eles também choram um lamento só seu. Apelos não atendidos abrem portas a atitudes extremas. A necessidade é maior que aquele pranto alheio que não lhes comove. Furtam a atenção devida e desaparecem numa esquina a mais.
Mas nem todos são indiferentes. Alguns ouvem em tímida solidariedade ou em franca parceria. Emocionam-se. Realmente entendem aquele momento e compartilham. Buscam transmitir sua força àqueles que pedem por ela, e quando a encontram, simplesmente sorriem como a agradecer. Em troca, num instante de intimidade, aquela platéia aplaude. O círculo se fecha. Faz-se a paz.
A menina encontra.
O som já não é mais de lamento. Não sente mais dor nem saudade. Não pranteia mais sozinho. Não é mais som, é melodia. Já não pede, confraterniza. Não é mais choro, é chorinho.
Assim a música segue em frente, em noites de terça-feira, no quarteirão fechado da Rua Rio de Janeiro em Belo Horizonte. São cinco, os homens a chorar. Dez mãos a nos enxugar o pranto.
Tão poucas as horas neste enlevo, mas a música tem este dom. Reúne estranhos que sem o saber, atendem àquela convocação. Chamamento que transcende, que vai ao além. Ou vem de lá. Quem sabe?
Ah! Quase me esquecia. O homem grisalho fuma, enquanto recolhe as mesas de xadrez. Uma a uma, desatarraxa seus três pés, recolhe-os à sacola. Os bancos pequeninos se dobram. Os tabuleiros se encaixam com perfeição numa velha carcaça de geladeira, projetado por certo, para aquele fim de vida. Recolhidos e guardados em saquinhos de pano, os nobres perdem todo o seu poder.
A menina vai embora com suas flores. Num mundo cada vez menos romântico, só uma flor conseguiu vender.
Os músicos também se vão. No lugar, apenas as cadeiras vazias. Até terça-feira que vem.



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Maria Luiza Falcão

 

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Um comentário:

Unknown disse...

Ola bom dia de domingo
Que seu dia como esse post tão
belo seja uma alegria para todos
Vim deixar meu abraço com carinho
Bjuss
Rita

Maravilha entrar e se sentir bem
nesse Blog!!!