Metáforas elaboradas não explicam
sentimentos complexos, pensava.
Era quente. O dia estava claro e
o sol rebatia nos carros parados na rua, entrando pela janela entreaberta,
causando um leve desconforto nos olhos. Era novidade. Quente, claro, sol e
desconforto sucediam a queda. Antes, ainda que fosse quente e claro, havia uma
sombra delicada e o sol que rebatia nos carros na rua era barrado, entrando
pela janela um balançar cadenciado.
Havia, em frente a janela, uma
árvore. Com o tempo aprendera que era um flamboyant. Não que isso interessasse.
Era uma árvore, isso bastava. Se era um ipê ou uma macieira era irrelevante.
Sempre fora sua árvore.
Sempre esteve ali, oferecendo
sombra como em um poema escrito sobre infância e nostalgia. Não que gostasse de
sentar aos pés da árvore, recostar em seu tronco e receber a brisa suave no
rosto, olhando pro céu entre a copa do flamboyant. Isso era poesia. Gostava de
estar na sala e não ter os olhos desconfortáveis enquanto lia Tchecov no sofá.
Não ser poesia não significou, em
nenhum momento, desamor. Vivia uma intensa relação amorosa com aquele
flamboyant. Todos os dias, chegava da rua e, ao entrar em casa, olhava pro
alto, em direção a copa da árvore. Quando era criança, carregava alguns galhos.
De manhãzinha, juntava os bonecos e construía fortes e trincheiras nas raízes,
que levantavam um pouco a calçada. Mais tarde, pegava algumas sementes pelo
chão e juntava em uma caixa, sem muito sentido. Achava engraçada a sujeira que
a árvore fazia e podia ver o céu entre as folhas. É, talvez de alguma maneira,
fosse poesia.
De certa forma, aquela quase
poesia era também um prenuncio de tragédia. As raízes fortes iam aos poucos
estourando a calçada e os canos em busca de água. As sementes ficavam espalhadas
pela rua, assim como as flores. As cigarras sumiram. Havia cupins.
Um dia chegou o botânico. Nunca
havia visto um botânico e nunca viu um depois disso. Se fosse teatro, diria que
era uma solução dramatúrgica fraca do autor, colocar um botânico ali para
explicar o inexplicável, como a empregada doméstica da novela das oito que faz
uma pergunta a patroa, protagonista da história, pra que ela possa fazer uma
cena tocante, que sirva de gancho para o capítulo seguinte e mantenha a atenção
do espectador. Não era preciso verbalizar a morte. Fez-se o silêncio.
Dias depois, acordou com a trilha
sonora do corte. Foi até a janela e contemplou a coreografia. A luz do sol
banhava o cenário e lá em baixo havia uma espécie de diretor. Não conseguiu
pensar em nada.
Os dias seguiram angustiados.
Era, sim, preciso verbalizar a morte, pensou. Pegou um caderninho que tinha
guardado para essas ocasiões angustiadas. Começou a escrever, nada que achasse
gostável. Mas não estava interessado em ser lido, mas em botar pra fora a angústia.
Ele sabia, ou achava que sabia, que escrever era uma forma de superar.
O que ele não sabia era que nada
que escrevesse seria capaz de cobrir aquele buraco aberto. Que nada voltaria,
ainda que inconscientemente achasse possível que tudo voltasse, em breve, a ser
como era antes. O que não sabia é que há coisas que não se superam. Há coisas
que não voltam. Não pelo que foram, mas pelo que deixaram de ser. Brincar com
seus bonecos na raiz aparente do flamboyant foi banal, mas foi. Não haveria
mais aquela raiz para servir de trincheira na guerra imaginária. Não haveria
sementes, galhos ou flores. Não haveria.
O acordar seria diferente, assim
como a sesta. As tardes e os cafés-da-manhã também. Não haveria escaladas,
podas, arte naturalista. Não poderia se casar embaixo da árvore. As folhas
pequenas, não poderiam ser postas pra secar, trituradas, enroladas em um
guardanapo de bar e posteriormente fumadas, em busca de algum estado alterado
de consciência, numa tentativa juvenil de fazer haver alguma coisa. Não poderia
construir uma casa na árvore, não naquela, pelo menos, e, se não naquela, em
qual mais?, não importa, não poderia construir uma casa com a sua madeira nem
tirar uma muda. Não seria possível, um dia, quando fosse avô, retirar um galho
e fabricar uma espada de brinquedo para seus netos. Tampouco construir um arco
e flecha. Não haveria a sombra e a poesia de olhar pro céu entre as folhas da
árvore.
Os dias seriam claros e o sol
rebateria nos carros parados na rua, entrando pela janela entreaberta, causando
um leve desconforto nos olhos. Tchecov nunca mais seria o mesmo. Nem ele.
Metáforas simples também não
explicam nada, pensou.
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