Em uma daquelas coincidências da vida
o nome dela era Julia, que passou a ser Julinha, Juliette, Julita, até chegar a
Julieta. E ele, Romeu. Como no melhor da dramaturgia Shakespeareana os dois tragicamente se apaixonaram.
Julieta tinha o pai rigoroso, a mãe
ausente. Mostrou cedo que odiava todo tipo de ordem e proibição. Sofreu as
consequências da rebeldia: aos 14 anos passou um tempo em um internato
para meninas problemáticas.
Romeu era um rapaz de boa família, tranquilo,
honesto. Nunca se envolveu em confusão. Seguia a vida como o esperado. Na escola,
bom aluno, passava de ano com facilidade e aos 17 anos já se preparava para a
faculdade. Precoce, muito seguro de si.
Foi nesta época que conheceu Julieta.
Ia apressado para a biblioteca quando esbarrou na moça sem graça que estava
parada indecisa entre ir embora ou fumar um cigarro.
– Desculpe, falou ela.
Ele nem tomou conhecimento. Tinha
atenção apenas para o livro aberto que carregava. Continuou o passo, sem se
virar pra trás. Nem percebeu que os olhos da menina feia grudaram nele. Julieta
ficou encantada. “Que cara interessante”,
pensou. Decidiu segui-lo. Foi a primeira vez que pisou na biblioteca desde que
entrou para aquela escola. Não tinha o costume de frequentar salas de estudo. Boa
parte do hall de entrada estava no escuro. A velha bibliotecária não era lá tão
velha, mas mantinha o tradicional ar circunspecto.
– Bom dia, disse friamente à Julieta.
– Bom dia. Eu estou procurando... a
senhora viu... é...
Julieta não sabia o que dizer. Olhava
para os lados à procura de socorro. Ficou em silêncio, fez uma mesura e
afastou-se. Dobrou no primeiro corredor que encontrou. Começou a percorrer as
estantes sem rumo. Sem pressa, meio perdida. Logo começou a sentir o cheiro inebriante
de café. Sem interesse pelos livros, e sem achar Romeu, foi em direção ao
cheiro. Vinha da cafeteria que ficava no segundo andar.
Para sua surpresa lá estava ele, o garoto
que esbarrou nela. Ele levantou os olhos em direção à entrada do Café para ver
quem tinha causado aquele barulho todo ao abrir a porta de supetão. Deu de cara
com Julieta. Ficaram se encarando por mais tempo do que manda o bom senso. Ele
sorriu primeiro, com os dentes meio sujos de torta de morango. Ela tropeçou em uma
mesa, deixou a bolsa cair e deu um sorriso em troca. Depois de perceber que
todas as mesas estavam ocupadas, Romeu ofereceu, por gestos, um lugar ao lado
dele. Ela foi. Conversaram, se conheceram, riram mais um pouco e perderam a
hora. Na despedida: um beijo tímido entre amigos, um aperto de mãos e a
promessa de se verem novamente.
E assim foi. No começo era tudo meio
que por acaso.
– Ah, você por aqui? Que surpresa,
mentiam mutuamente.
Tempos depois já marcavam horário. E
ali, naquele Café da biblioteca, montaram o ponto de encontros. Na quinta vez, resolveram
sair para passear pelo jardim. Dos passeios no jardim passaram a almoçar,
estudar, caminhar, sempre juntos. Ficar um ao lado do outro se tornava irresistível.
As brincadeiras foram ficando ousadas.
Davam um jeitinho de tocar as mãos, encostar um braço no outro, sentir o cheiro
um do outro. Riam à toa. E Romeu entregava bilhetinhos a Julieta. Um dos
primeiros dizia somente: sonhei com você e acordei feliz! Julieta sorria.
Um dia meio frio, com uma chuvinha
chata, foram ao cinema. Filme bobo, sem emoção. Sem emoção na tela, nas
poltronas os dois se ardiam em paixão. Sentaram juntos nas últimas fileiras, as
mãos se tocaram, foram se entrelaçando. Eles fingiam prestar atenção ao que
acontecia no filme. Aos poucos se abraçaram. Iluminados pela luz fraca se
beijaram apaixonadamente.
E assim passaram a ser namorados. Não
se desgrudavam. O clima de romance deixou Julieta mais quieta. Em casa, já não
discutia tanto com os pais. Tentou pela primeira vez passar uma maquiagem leve,
sem aqueles borrões pretos nos olhos, sem o batom exageradamente vermelho.
Passou a pentear melhor os cabelos e caprichar no perfume. As roupas ficaram mais sensuais
e os sapatos mais elegantes.
Romeu chegava assoviando na cozinha
onde era preparado o almoço e abraçava a mãe para dançar entre as panelas e pratos.
No muro de casa pichou um “eu te amo”
enorme dedicado à Julieta. Estava apaixonado.
Romeu tinha os cabelos escuros, desgrenhados,
meio longo. Era de uma beleza singular e aos olhos de Julieta era lindo.
Vestia-se como ela gostava: meio maltrapilho, com ares de bandido. Os sapatos
velhos davam o toque final para passar a impressão de que era um dândi, um punk, um pária. Culto, bem
informado, cheio de opinião, mantinha sempre um ar de mistério.
Apesar das tentativas de se mostrar
bonita, Julieta se achava desajeitada, feia e meio gorda. Ficava imaginando o
que Romeu teria visto nela. Não acreditava no amor dele.
– Ele tão inteligente, descolado, bonito
e eu essa coisa mal acabada, lamentava Julieta todos os dias.
O que ela não sabia é que era justamente
essa esquisitice o que mais o atraia.
Enquanto Romeu não se cansava de fazer
declarações amorosas, Julieta mantinha a insegurança e o ceticismo. Era uma
mulher traumatizada. Nunca antes um homem demonstrara tanto afeto, carinho,
respeito. Ela nunca antes havia se apaixonado de verdade e já passara por
muitos apertos.
Um dos antigos namorados quase viciou
Julieta em drogas, outro chegou a bater nela. Então, aceitar a pureza e a sinceridade
de Romeu era uma coisa muito difícil.
Namoravam às escondidas. Julieta
acreditava que o pai fosse correr com Romeu assim que ficasse sabendo do
romance, afinal já fizera isso com o último rapaz que se interessou pela filha.
E acertou. O rigoroso pai mandou Romeu
sumir da vida de Julieta na tarde em que pegou os dois se beijando embaixo de
uma árvore próxima à esquina da casa deles. Embasbacado Romeu foi embora sem
acreditar no que tinha acontecido. Marcaram então de se verem à noite, durante
a volta de Julieta da aula de música. Não que ela tocasse bem qualquer coisa,
mas inventou umas lições de piano pra poder encontrar com Romeu.
O amor entre os dois cresceu. Marcavam
encontros mirabolantes como da vez em que Julieta fingiu ir dormir na casa de
uma amiga imaginária e acabou dormindo no quarto de Romeu, escondido da mãe
dele. A mulher não gostava que o rapaz levasse as namoradas pra lá, mas Romeu
deu um jeito de receber Julieta pela janela. Sempre inventavam uma saída para
ficarem perto. Ela ainda insegura, ele cada vez mais amoroso.
Romeu compôs música para a amada,
poemas, lindas cartas de amor. Tirava fotos românticas.
O tempo foi passando até que Romeu começou a organizar a
vida de Julieta, a controlar os horários, a escolher até mesmo o que ela iria
vestir. Mandava no que Julieta iria comer e beber. Se a maquiagem estivesse
forte, ele passava um algodão pra “tirar o excesso”. Ela já não podia sair sozinha
que ele arrumava uma desculpa para acompanhá-la. Era quase uma obsessão.
Julieta passou a se incomodar com
aquela dedicação toda, aquele amor. Não estava gostando nada daquilo. Algumas
discussões começaram a arranhar o relacionamento.
Certo dia, quase por milagre, Julieta foi
sozinha até a praça ler pela primeira vez um livro “sério”. Era um pedido de
Romeu. Para ter assunto nas conversas, explicou ele. Sem vontade de começar
mais um desentendimento, ela aceitou a leitura. Gostava de romances, mas Romeu
a obrigou a ler aquela teoria econômica chata sem sentindo nenhum para ela.
Entediada e sem aviso, conheceu Pedro. Ele sentou no banco em frente ao dela.
Era o típico bonachão. Bem diferente de Romeu, não tinha ar misterioso, nem
cabelo desgrenhado. Era simples, simpático, alto, loiro e olhava meio de lado
pra Julieta. Ela com medo, se achando equivocada, relutou, mas retribuiu o
olhar. Ele foi chegando devagar, puxou assunto, perguntou que livro a garota estava
lendo. Conversaram, descobriram milhares de interesses em comum. Assim como
ela, Pedro não gostava tanto assim de ler, nunca tinha ido a uma biblioteca e preferia
vinho a café. Riram alto e nem se preocuparam com a chuva que chegava. Pedro falava
abertamente, era muito direto. Disse que tinha gostado de conhecê-la e sem
rodeios perguntou onde a nova amiga morava. Dois dias depois apareceu na casa
de Julieta levando pão e manteiga para tomarem o lanche da tarde. O pai não se
importou. Pedro tinha uma cara boa, de “gente rica”, estava sempre sorrindo.
Foi logo bem aceito.
Romeu nem desconfiou da nova amizade. Mostrava-se
cada vez mais obsessivo inacreditavelmente apaixonado e irritantemente
controlador. Julieta estava confusa. Começava
a sentir medo de Romeu.
O namorado estava cada vez mais
possessivo.
– Se algum dia você me deixar eu acho
que morro, dizia ele com aquele olhar profundo.
– Deixa de bobagem, Romeu. Respondia
Julieta já sem graça com aquela história.
Sentia saudade de Pedro. Pensava nele
de uma maneira leve, solta, alegre. Certa vez, próximo à praça, encontrou o
rapaz tocando violão.
Ele nem disse oi, foi logo
perguntando:
– Você quer namorar comigo?
Julieta levou um susto, mas foi a
deixa pra se sentir imediatamente louca por aquele homem. Ela sorriu e disse
que depois respondia.
– Passo mais tarde na sua casa. Fiquei
de levar umas ferramentas para o seu pai, ai você me responde. Disse ele, dando
uma piscadela.
Pedro foi e Julieta contou que estava
namorando Romeu. Que não poderiam mais se ver. E sem imaginar o que aconteceria
viu Pedro perder o brilho no olhar e sair mudo. Foi tomada por um sofrimento
dolorido de perda. Sentiu que no fundo não queria fazer aquilo. Foi surpreendida
por uma grande tristeza e a separação a deixou doente. Ficou de cama por três
dias. Uma febre inexplicável. Romeu assistiu tudo de longe. O pai de Julieta nunca
admitiu a presença dele.
Uma semana depois Julieta encontrou
Pedro por acaso. Entre um papo aqui e outro ali acabaram indo caminhar na beira
do lago. Ela arriscou fazer o passeio e deixou o medo de encontrar Romeu de
lado. Caminharam alegremente e mesmo com uma brisa gelada enfiaram os pés na
água. Deram-se as mãos num gesto muito natural. Sentaram por ali e conversaram
sobre a vida, o mundo, e sobre eles. A noite chegou e os dois já com frio,
acabaram se abraçando. O abraço cresceu. O clima esquentou e se entregaram um
ao outro. O beijo foi apaixonado. Transaram ali mesmo, entre as pequenas dunas
de areia. Pedro falava ao ouvido de Julieta coisas que ela se arrepiava.
Beijava o pescoço dela e a boca com uma fome que Romeu jamais demonstrou. Foram
embora, cada para sua casa, um pensando no outro.
Repetiram o passeio na outra noite. A
lua cheia iluminava o mundo e o sexo que os dois fizeram novamente na areia.
Julieta e Pedro não resistiam à excitação que corria entre eles. Julieta ao
lado de Pedro não tinha dúvidas, nem medos e não esperava por nada. Era apenas
feliz.
Ela já não pensava mais em Romeu,
fugia dele. Até que finalmente chegou o
dia em que Julieta rompeu de vez o relacionamento. Tentou explicar que não dava mais
pra eles ficarem juntos.
– Eu não estou preparada para ser
sufocada por esse seu amor. É uma ilusão, argumentava ela.
– Ilusão? Julieta, eu te amo. Dizia
ele.
– Romeu, eu não sou uma princesa, eu
não sou bonita, não sou inteligente, não sou sua. Você está equivocado. E não
falou mais nada porque ficou com muito medo do olhar de ódio que Romeu dirigia
a ela.
– Não Julieta, por favor, disse na
última tentativa.
Mas não teve jeito. Foram dias duros,
difíceis. Romeu obviamente não aceitou o que estava acontecendo. Chorou no colo
da mãe que amaldiçoou Julieta:
– Meu filho, nunca mais chegue perto dessa
vagabunda que está te fazendo sofrer tanto, dizia enquanto acalmava o filho.
Romeu continuou chorando. Enquanto
isso, Julieta se encontrava com Pedro quase todos os dias. Vivia o caso de amor
da vida dela. Romeu já não existia mais nos pensamentos, nem no coração de
Julieta.
Numa tarde de verão Julieta passeava
próximo ao lago. Repassava mentalmente os momentos mais quentes que tivera com
Pedro nos últimos dias. Pensava divertida. Suspirou diante das boas lembranças.
Sustentava um sorrisinho meio de lado quando encontrou Romeu. Uma certa culpa
tomou conta dela, sentiu uma pontinha de saudade do amor ingênuo deles.
– Ei moço, vem aqui, vamos passear? Convidou
alegremente uma Julieta mais mulher, mais centrada, mais calma, mais madura.
Romeu titubeou, sustentou um olhar
sombrio, mas acabou sucumbindo aos encantos da ex-amada. Ele exibia na pele as
noites sofridas pelo amor perdido. Trazia olheiras escuras, estava mais magro,
os cabelos bem curtos. Andava encurvado e tremia.
– Cortou o cabelo. Ficou bom, comentou
Julieta.
Ele sequer sorria. Estava calado,
fechado. Julieta nem desconfiou que aquele Romeu nem de longe era o Romeu que
ela conhecera. Aquele homem ali havia gastado todo o dinheiro que tinha em drogas.
Passava as noites bebendo. Após a separação, fazia sexo casual quase todos os
dias. Logo passou a pagar prostitutas. E batia nelas. Machucava qualquer mulher
que se deitasse com ele. Passou a maltratar a própria mãe. Tinha se
transformado em um monstro.
Julieta falava sem parar sobre o pai,
a família, até sobre Pedro. E em um impulso impossível de prever, Romeu a jogou
na água. Simplesmente deu um empurrão em Julieta. Ela caiu no lago. A raiva era
tanta que Romeu apertava o pescoço dela sem dar chance de defesa à mulher que
se debatia em vão. Ele segurou a cabeça dela com força embaixo da água. Julieta
perdeu os sentidos. Lutou, mas perdeu a briga: se afogou nos braços do homem
que tanto a amou. Romeu gritava de ódio, amor e loucura. Um sentimento
profundo de arrependimento e saudade tomou conta dele. Em meio a lágrimas
Romeu se jogou freneticamente na água a procura de Julieta, mas não encontrou o
corpo dela. Chorou, gritou e nada.
Dias, meses, anos se passaram. Ninguém nunca soube o que acontecera entre os dois. Julieta simplesmente havia desaparecido. Pedro acabou esquecendo a namorada, colocou na cabeça que
ela se cansara dele, e foi ser feliz com outra. Os pais de Julieta desistiram
de procurar a filha, concluíram que ela fugira de casa e deram por encerrada a
busca. Mudaram de cidade e investiram fundo na carreira militar do filho mais
novo, irmão adotivo de Julieta. A mãe de Romeu foi internada num sanatório por
exagerar nos remédios depois que o filho quase a matou de tanto bater nela.
Romeu se consumia. Tentou suicídio
diversas vezes. Sem sucesso em cortar os pulsos, ensaiou uma overdose que não
deu certo. Fez uma última tentativa: foi para o lago onde matou Julieta. Mergulhou
sem a intenção de voltar. No mergulho, entre a água turva e suja, teve a impressão
de ver Julieta. Com o susto tentou subir à superfície, mas não conseguiu. O
fantasma de Julieta agarrou a perna dele. E não se deu por vencido mesmo quando
Romeu tentou gritar embaixo d'água. Foi uma luta feia. Julieta ganhou. Afogou Romeu,
deixou ele lá, sem ar, sozinho, perdido, com medo e remorso. Ela foi desaparecendo
da vista dele, sumindo devagar, saindo da eternidade dele. O corpo de Romeu
também nunca foi encontrado. Mas quem passa por aquele lago hoje escuta de vez
enquando um choro, um murmúrio. E não de vez enquando, mas sempre, uma risada
de vingança.
6 comentários:
Me identifiquei de cara com a história e com certeza já vi muitos passarem por caso similar. É a velha retórica da história não sendo criada, mas simplesmente se repetindo com diferentes personagens. Parabéns.
brigada pelos parabéns. mas o que mais me deixa contente é a frase "me identifiquei de cara com a história". legal!!!!
Hoje li alguns escritos seus. Posso dizer: você ganhou um fã. Que história bem construida.
Parabéns!!!
don, que legal. seja bem-vindo ao meu mundo.
tava pra te mostrar esse conto há tempos. olhaí:
http://filhos-do-velho.blogspot.com.br/2012/09/ro-meu-e-july-eita.html
hehehe.
bjks
ehehehe adorei. vai ver eram todos amigos na escola. hehehhe
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