quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Nada além de cinzas...

Muller progredira rapidamente no partido. Membro da juventude hitlerista, galgou degraus até se tornar oficial da temida SS. Ele era um dos coordenadores do campo de extermínio de Auschwitz. Quando pensava em sua carreira, lembrava como aquele garoto pobre que convivera com os ricos judeus em Berlim pudera chegar tão alto. E agora era responsável por erradicar de vez o mal que assolava a Alemanha, varrer da face da Terra os tão odiados judeus. Inseridos nas camadas dominantes da sociedade germânica, banqueiros, comerciantes, médicos e outros profissionais judeus parasitavam a sociedade e sangravam o pouco a que os alemães tinham direito. Agora tinham o que mereciam. O ano, porém, era 1945. Os oficiais do campo já sabiam da iminente chegada dos russos, vindos do leste. A guerra estava perdida. O III Reich, que duraria mil anos, agonizava. As ordens eram claras: matar todos os judeus, ciganos, homossexuais e comunistas, não deixando nenhum rastro. Um trabalho conjunto das câmaras de gás e dos fornos de cremação. Nada além de cinzas... Foi na última semana que Muller colocou as últimas etapas de seu plano em prática. Um plano que vinha tomando corpo nos últimos meses. Havia cinco oficiais restantes no campo, responsáveis por matar os últimos prisioneiros. Restavam poucos, todos gravemente doentes. O trabalho nos fornos estava se tornando lento demais, então cavavam grandes trincheiras nos arredores e enterravam os mortos. Ultimamente não perdiam sequer tempo com o gás; como os judeus não tinham força para reagir, jogavam-nos direto às fossas, e os cobriam com terra. Naquela segunda, uma semana antes dos russos libertarem Auschwitz, um cadavérico Muller colocou a parte final de seu plano em prática. A dieta a partir de ração de alimentos havia dado certo. Para os colegas oficiais, o camarada havia contraído tifo ou outra doença no campo, mas mesmo assim esmerava-se em executar até o fim seu dever. Era digno da admiração de seus pares. Admiração e confiança. Por isso tinha sido tão fácil matá-los todos enquanto dormiam, na noite anterior, em seu alojamento. No campo restavam somente poucos doentes, fracos demais sequer para falarem. Foi quando raspou seu próprio cabelo, vestiu o uniforme com a estrela de David e, sem ser percebido, se alojou em um dos pavilhões junto àqueles a quem tanto odiava. A circuncisão, que tinha realizado em si mesmo há três meses, fora a parte mais dolorosa do seu ardil. Muller queria passar por um autêntico judeu. Já tinha um nome e um passaporte, Klaus Weimann, um professor que chegara a Auschwitz contando com então 30 anos, a mesma sua idade. Tinha que parecer um judeu até em sua máxima intimidade, não bastavam a desnutrição e o álibi que havia forjado. Injetou em seu pênis anestésicos e cortou seu prepúcio com um bisturi afiado. Sangue, dor. Determinação. Depois reservou antibióticos, que tomou até cicatrizar sua ferida, sua nova identidade. Aguardou com paciência, comendo a ração diária que reservara num esconderijo, a chegada dos russos e seu horror quanto ao que descobriram no campo. Foi “libertado” junto com os poucos que restavam. Nos meses que se seguiram foi cuidado por benfeitores do pós-guerra. Ganhou peso novamente, e não tardou a encantar uma linda moça de uma família judia influente. Crescera entre os judeus em Berlim, conhecia como poucos seus costumes e crenças. A posição de seus sogros o permitiu seguir a carreira de guia religioso. Muller conseguira. Ou melhor, Klaus. Apagara seu passado, comprara sua liberdade e sua absolvição e agora era o modelo de retidão moral da comunidade a que servia. Após o final de cada culto, despedia-se de cada homem, mulher ou criança com a palavra “shalom”, que significa paz em hebraico. Tudo ia bem. Até um dia em que, na sinagoga vazia, um homem transtornado entrou. Órfão da antiga ordem da Alemanha, aos gritos de “morte aos judeus”, lançou sobre o religioso uma bomba incendiária, que tomou conta de todo o local. Ao ser devorado pelo fogo, Muller podia ver e ouvir as milhares de almas dos mortos, que clamavam por ele do inferno longínquo. Em breve não seria nada além de cinzas...

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