A noite já estava pra terminar. Como
pura mágica uma caneta surgiu na minha frente para que eu relatasse toda essa
história. O meu caderno foi só uma consequência e à medida que eu olhava ao meu
redor, cada objeto parecia maravilhosamente no lugar certo, montavam um cenário
peculiar, de casa antiga, desordenada, mas acima de tudo de um sincretismo de
ideias absurdo.
Ela brilhava naquela noite, aliás como
sempre brilhava. Eu nem acreditava que isso fosse possível mais uma vez, mais
uma vez com ela. Mais uma vez eu degustava aqueles beijos que me preenchiam de
uma maneira, que toda vez quando lembrava deles, a sede que brotava era
praticamente incontrolável. Que sorte, ou habilidade, ou talvez realmente uma
paixão sincera.
A questão é que ela se aprontou para
dormir, a possibilidade de sexo já havia sido cortada antes mesmo de adentramos
na casa, mas esse não era meu foco central, antes os beijos, esses eram
primordiais. Íamos dormir num quarto que já se encontrava ocupado por um amigo
dela. Sem problemas, talvez transar na frente
dele já seria de mais pra mim, mas somente dormir juntos, não teria mal
algum.
E realmente não teve, afinal o cara já
estava capotado, pra lá de Bagdá, deitamos e eu fiquei somente de cueca, odeio
dormir de roupa. Os beijos antes do sono foram poucos, mas nos abraçamos para dormir, com ela de costas pra mim. No abraço meus braços passavam
entre os seios dela, o que me dava um certo tesão, mas o conforto e algo
realmente a mais que estava acontecendo ali, me fazia esquecer de tudo.
Resultado: sono forte e de poucos sonhos e um despertar de uma preguiça
terrível, parecia que morávamos juntos há anos e o moleque na cama ao lado era
só um hóspede nosso.
Levantar foi realmente ruim, mas não
tinha como, como sempre essas acordadas eram puxadas por algum compromisso
impossível de se faltar. Ela não despertava de maneira alguma, não sei se isso
era proposital ou realmente seu sono que estava muito pesado, parecia mais um
charme que me chamava de volta pra cama e que eu estava plenamente disposto a
ceder. Cedi em partes, lhe fiz carinho nos cabelos durante algum tempo e então
decidi que era a hora de ir embora. O carinho parece que lhe fez ceder um pouco
no jogo, então se levantou para abrir a porta pra mim.
Na despedida, parecia um dia como outro
qualquer, indicando que no fim da noite a gente fosse se ver no jantar, para
podermos contar um para o outro tudo que aconteceu e deixar mais uma vez aquela
coisa a mais rolar, dessa vez sem estar embriagados e dispostos a deixar fluir
fundo todo o sentimento que estivesse por ali. E de fato o convite para isso
veio, uma festa em outra casa, na verdadeira casa dela, uma festa que mudaria
minha vida.
Mas não mudou, porque eu não fui nem ao
jantar e muito menos a festa e aquele sentimento a mais foi dilacerado numa única
ligação de telefone, onde eu falei me desculpando, e ela respondeu com frases
curtas aparentemente amistosas. Fui tão estúpido de ainda achar que estava
fazendo minha parte, essa ligação foi um divisor de águas e ela decidiu enterrar
de uma maneira bem solene todo e qualquer sentimento que nutria por mim na
noite anterior, decidiu enterrar para sempre e obviamente com razão.
Juro a vocês, que minha escolha não era
essa, era ir à festa e consequentemente dormir várias e várias noites junto
dela, mas isso não era possível. Nosso coração é divido em quatro partes. No
meu caso em três já se abrigam um único nome, na quarta é onde se faz novas
edificações. A terceira sempre está em crise, tendo o nome apagado por diversas
vezes e substituído por outros, já a segunda é mais sólida raramente sendo
atingida, a primeira dizem que intocável. Essas mudanças em todas as partes já
me geraram muitas complicações e nunca consegui achar um equilíbrio perfeito
para que dois nomes convivessem em plena harmonia em todas elas.
O nome em questão sabe dessa história de
caba a rabo, não pensem também que sou um puto de um sacana. Na mesma noite da
recusa da festa, saímos juntos e brigamos feio aumentando mais ainda meu
arrependimento, mas a primeira parte do coração, no final das contas sempre
toma as decisões. De lá pra cá o gosto dos beijos foram cada vez mais se
consolidando enquanto categorias de memória em minha cabeça que para acessar
tenho que contar histórias como essas que aqui vos falo. É claro que a vi por
diversas vezes, mas a frieza, banhada às vezes em momentos esporádicos de um
carinho contido, só me fez sofrer ainda mais. Por isso decidi que da próxima
vez que um caneta aparecer na minha frente, vou dar meia volta e sair pelo
portão que naquele caso sempre ficava aberto.
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