quarta-feira, 2 de outubro de 2013

ANITA, OLHOS DE CAPITU


Existe coisa mais difícil que esquecer um grande amor? É como se um pedaço da gente estivesse morrendo, é como se tirassem de dentro do peito, à fórceps, o que de melhor se pode sentir. Assim foi para Anita. 
A garota tinha os olhos de ressaca, como a Capitu de Machado de Assis. Daqueles olhos, lembro-me das lágrimas e da esperança que, de vez em quando, brilhavam neles. Mas em geral eram olhos opacos. Anita já não era nenhuma mocinha, passava dos 25 anos, e tinha uma aparência de alguém com quase 40. As drogas tinham feito estragos em seu corpo e sua alma. Aos 15 anos saiu de casa para fugir do pai bêbado e violento que abusava dela desde os sete anos. Sem saber como se sustentar, Anita se prostituiu. Antes tentou de tudo: trabalhar como faxineira, balconista, até procurou uma vaga para entregar panfletos no sinal de trânsito. Mas era uma criança, magrela, desgrenhada, sem lugar pra morar. Se virava nas ruas. O banho, quando podia, era na rodoviária. Ninguém deu um emprego para a menina abandonada. Às vezes sentia tanta fome que não se importava em catar restos de comida nas lixeiras da lanchonete. Até o dia em que o dono de um mercadinho vagabundo, que fedia a cachaça e fritura, percebeu aquele corpo maltrapilho e perguntou se ela queria uma pizza. Anita só balançou a cabeça querendo dizer que sim. 
– Então tá menina, mas tudo tem seu preço. Comentou com um sorriso meio de lado, o dono do mercado.
Foi assim que Anita percebeu que poderia ganhar dinheiro vendendo sexo. A pizza até foi barata. O gordo, dono do mercado, suava e grunhia enquanto fazia o serviço. Para alívio de Anita, foi rápido. 
Assim ela começou a amadurecer. Conseguiu mais do que pizzas. Passou rapidamente a morar numa pensão meio decadente, onde dividia a vida com mais três meninas. Isso no princípio. Logo conseguiu mudar para um apartamento de dois quartos, com vista para o parque. Usava roupas de grife e nunca mais comeu pizza. A vida passou a ser regada a champanhe. Frequentou bons restaurantes, e vendendo o corpo, até viajou para o exterior. Mas Anita se perdeu. Cocaína sobrava em sua rotina. Cada vez mais pesadas, as drogas também cobraram um preço. Anita consumiu a casa, os móveis, o carro. Perdeu amigos e a dignidade, que ela tanto tinha lutado para acumular. Passou a vender o corpo por qualquer pedra de crack. Voltou a morar nas ruas. Fazia sexo com os colegas mendigos a troco de um pedaço de pão. Ninguém mais queria a puta drogada. E Anita se afundava na lama da podridão da vida.
Numa noite fria, andava sem rumo pelas ruas molhadas, descalça, dentro de um casaco três vezes maior que ela, atravessou o beco do metrô. Dois garotos bem vestidos se aproximaram dela e comentaram:
– Tá sentindo um cheiro de mijo? 
– Tô, disse o outro. 
– Deve ser da puta aqui. 
– Acho que ela precisa de um banho. 
– Fechô, sentenciou o garoto com um sorriso maquiavélico, mostrando as péssimas intenções que tinha. 
– Vamos lá putinha, vamos tomar um banhozinho. E arrastaram Anita para o matagal que havia próximo ao beco. Arrancaram sua roupa, bateram tão forte na cabeça de Anita que ela caiu de joelhos. 
O comparsa puxou os cabelos da pobre coitada até ela não aguentar de dor. Então começaram o estupro. Anita foi currada várias vezes e desmaiou. Não tinha mais força para gritar. Os covardes continuaram a bater. Um deles baixou as calças e mijou em cima dela.
– Toma ai seu banho, vagabunda drogada. 
Em um último ato de crueldade os dois encheram a boca de Anita com a terra e deixaram a moribunda lá, quase à morte. 
No outro dia foi encontrada pela polícia. No hospital Anita era um pedaço de carne roxa. Depois de algum tempo recobrou a consciência. Tinha deslocado o quadril. Ela não conseguia falar direito, tinha perdido alguns dentes e não ouvia nada pelo ouvido esquerdo. Anita era um trapo de ser humano. 
Aos poucos foi se recuperando, ganhou um colega de quarto. Fernando. Nando. Era um menino, não tinha mais do que 17 anos. Tinha assaltado uma padaria e levou um tiro no braço. Ia voltar para o Centro de Detenção assim que ficasse melhor. Anita e o menino ficaram amigos. Conversavam a noite inteira antes de a enfermeira mandar os dois calarem a boca. Juntos arquitetaram um plano de fuga e conseguiram sair do hospital sem serem incomodados. 
Àquela altura já eram amantes. Na primeira vez que fizeram sexo, ainda no hospital, Anita se atrapalhou com os fios do soro, mas conseguiu sentar em cima dele. Quando Nando penetrou Anita, ela gemeu baixinho, um pouco de prazer outro de dor por conta do abuso que ainda não estava cicatrizado, nem no corpo menos ainda na alma. 
Foram morar numa invasão perto do centro da cidade. Construíram um barraco improvisado com restos de obra. Pra sobreviver catavam latinhas, papelão e pediam esmolas no semáforo. Apesar de tudo Anita estava feliz. Finalmente conhecia o amor, o carinho. Fernando estava virando homem e amava Anita acima de qualquer coisa. Ela não usava mais drogas e até os dentes que faltavam na boca não a incomodavam mais. 
Numa tarde de sol, voltando pra casa, Nando foi atropelado. Um motorista bêbado passou por cima dele. A dor que Anita sentiu foi maior que todos os estupros que já sofrera. A dor de perder aquele homem foi maior que todas as surras, todas as fugas, todas as mazelas que tinha vivido. 
A partir daquele dia Anita não falou mais. Os olhos perderam o brilho, caíram de vez. As olheiras escureceram o rosto. As drogas voltaram para a vida de Anita. Com a audição cada vez pior, sem falar coisa com coisa, acabou internada num hospital psiquiátrico. Serviço público, sem muitos cuidados. 
Foi lá que conheci aquela mulher. Fui fazer uma pesquisa para um livro que estava escrevendo. Ela passava o dia caminhando pelo corredor, sempre com uma rosa na mão. Às vezes era branca, no outro dia vermelha. “De onde ela tirou isso? Tantas?”, me perguntava. 
Ela não falava com ninguém, mas todas as noites, sozinha na cama, conversava e ria e de vez enquando chorava. Curiosa, fui ouvir certa madrugada o que dizia Anita. Ela se declarava lucidamente ao falecido amor. Surpreendida pela minha presença Anita abriu um sorrisinho tímido, fez um gesto pedindo para eu sentar na cama com ela e me contou essas histórias. Perguntei quem era a pessoa que ela imaginava conversar, e ela me disse que era o amor dela. O menino que virou homem. Fernando. 
–Todas as noites ele vem me “fisitar” – falou Anita entre os dentes quebrados – e me deixa uma rosa embaixo da cama. 
Descrente, mas com certa curiosidade, olhei embaixo da cama. Aproveitei para dar uma geral entre os lençóis e o cobertor. Nada. 
– Anita deixa de brincadeira, você sabe que não tem ninguém aqui, onde você consegue essas rosas? 
– São dele, tô dizendo. 
No outro dia Anita amanheceu morta, com uma rosa na mão. Congelada num sorriso desdentado, com olhos de ressaca, mostrando finalmente que estava em paz. 



2 comentários:

Yon disse...

Legal o conto, bem intenso!

andrea carvalho deca disse...

ei yon, que bom que gostou!!! beijoca.