A casa da esquina
Se soubesse antes, nunca teria virado
aquela esquina… Voltava da faculdade, eram 10 horas da noite, o campus já havia
fechado. Todo dia era tudo sempre igual, saía cedo (ou tão cedo quanto
conseguia), sempre estudo, sempre gente, sempre discussão e os professores que
não conseguiam ver além dos seus próprios umbigos. Toda aquela masturbação
mental me enojava às vezes, mas aprendi a respirar fundo: quando se tem um
objetivo, essa é a primeira coisa a se fazer, salvo o clichê. Respirei fundo
quanto ao machismo de cada dia, respirei fundo quanto àquela arrogância
inveterada, respirei fundo com a comida da lanchonete e respirei fundo quando
percebi que mais uma vez, teria que virar aquela esquina.
Já ouvira gritos vindos daquela casa antes. Sempre grossos, ficava imaginando
se nunca ouviria gritos em resposta. Sim, eu ouvia gritos de um só. Mas não
podia haver um só. De onde viriam aqueles estrondos? De onde viria aquele
silêncio, aquelas pausas? Os gritos que evocavam um poder covarde por vezes
ressoavam na rua, fazendo os vizinhos saírem de suas casas. Mas ninguém nunca
foi lá ver – talvez pelo tremor, talvez pelo silêncio que respondia. Poderia
ser simplesmente uma crise esquizofrênica ou sei lá, um ataque de raiva,
problema do outro, coisa de marido e mulher. Todo mundo sabia a origem do
primeiro, mas a resignação do segundo parecia ressoar ainda mais forte, se
repetindo pelos arredores da rua.
Dessa vez não se ouvia gritos. O portão como sempre, nesses momentos de
silêncio, estava aberto. Saindo da garagem, outro carro de luxo… Lembrar de
respirar fundo. O cachorro preso à corrente, criado de forma violenta para ser
violento; golfada de ar. Meus pulmões já estavam ardendo, talvez fosse
pressentimento, talvez necessidade e no fim, talvez fossem os dois. Apertei o
passo para não ser vista, tentando não abaixar o olhar. Envergonhava-me abaixar
os olhos, por instinto, ao virar aquela esquina. Se a errada não sou eu, por
que esconder o rosto como culpada? Errado, certo… Tudo se relativiza quando se
trata de um jogo de poder.
O gosto de nojo me subiu à garganta quando percebi que olhos me analisavam.
Apertei o material entre os braços e desejei estar em uma bolha. O bar já havia
ficado na outra esquina, única movimentação nesse horário no meu bairro. Com o
pulmão ardendo, vi que se aproximava pelo reflexo do vidro do carro. Não eram
movimentos rudes, mas eu sabia que poderiam ser. Puxou-me para dentro da
garagem, deus ou seja lá o que for sabe o quanto eu queria gritar. E eu iria,
quando ele gritou. Com a voz cada vez mais grossa ressoando no meu cérebro,
rosnava coisas que por sorte, não consigo lembrar com clareza. Algo sobre quem
eu achava que era, algo sobre quem mandava ali. O jogo estava claro, o detentor
da força detinha também o poder. Não era só o poder de ter um carro de luxo
sabe-se lá por que meios, de tornar violento um animal ou de fazer calar a
vizinhança inteira. Era o poder sobre o meu corpo que estava em jogo. A voz, a
respiração, o tremor, o gosto amargo na garganta; nada disso era meu.
Consigo lembrar cada detalhe do que aconteceu, com excessão do que me foi dito.
Enquanto ele gritava e eu tentava resistir, ele me batia. Batia em mim, nos
móveis e em qualquer coisa que pudesse ficar à frente de si. A dor parecia
atingir cada um dos meus órgãos e por mais que eu tentasse, quanto mais os
berros me invadiam, mais o nó na garganta que me impedia de gritar, crescia.
Agora eu entendia aquela resposta silenciosa sobre a qual tanto me
questionava e agora, sabia qual era a sensação de ouvir meu silêncio ressoar
pela vizinhança. Queria pedir socorro, queria sair dali, queria que meu corpo
fosse jogado no fogo, pois só assim se mataria os germes que vinham de cada
toque e cada fluído daquele ser. Gozou três, quatro, cinco vezes. O prazer
vinha com raiva e com a raiva, mais prazer. Quando se questiona o porquê de uma
mulher sentir culpa quando violentada, entre tantas coisas, talvez se deva
entender que ela busca entender o porquê de tanta raiva contra si. Só alguém
que fez uma coisa muito errada pode merecer tanto ódio, nessa nossa sociedade
de mentalidade cristã.
Senti o peso de todo aquele ódio sobre mim, assim como a exaustão que ele
provocou. Terminados os trabalhos, parecia até uma última sacanagem, para não
deixar espaço que pudesse me fazer pensar que eu tinha a alguma relevância
naquele momento. Repousou seu corpo sobre o meu. Eram 300, 400 quilos? Antes
sentia meus órgãos e agora também minhas vísceras. Não bastasse o peso sobre a
cabeça que latejava, sentiria por mais alguns minutos aquele soco permanente no
estômago. Conformei-me como um mestre budista: acho que atingi minha iluminação
espiritual – de tanta dor, passei a nada sentir. Enquanto eu buscava meu
nirvana, ele começou a roncar como um trator. Não sei o que acontece nesses
momentos, penso que vem uma dádiva divina que te faz achar que qualquer coisa é
algo normal. O que mais poderia ser anormal depois daquilo tudo? Esquivei-me e
com uma força que me pareceu vir de outra dimensão, rolei seu corpo macilento
para o outro lado.
Procurei minhas roupas no chão. Por sorte, nada fora rasgado. Vesti sentindo
meu sexo arder. Ao olhar, vi um pouco de sangue – preferi ignorar. Peguei
minhas coisas espalhadas pelo chão. O cachorro se divertia com um dos meus
livros. Deixei, alguém precisava se divertir naquela situação toda. Olhei no
relógio: 3 da manhã. Parecia haver passado três dias. Com dificuldade, andei
até o portão e virei à esquerda. Dali, já conseguia vislumbrar minha casa.
Faltavam alguns passos – quarenta, cinqüenta, talvez. Não era muito, embora eu
não soubesse até onde minhas pernas poderiam resistir. Com a cabeça latejante e
os gritos dele ressoando, só me restava andar. Quando se tem um objetivo, a
primeira coisa a se fazer é respirar fundo. Foi o que fiz.
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Emyli Sousa
http://limpeseusolhos.wordpress.com/
Um comentário:
Incrivel!!! amei conhecer sua página.
Esteja convidado para conhecer o Perseverança.
Vi por aqui textos e assuntos interessantes, vou fazer o link, postagens como a sua precisam ser conhecidas por mais pessoas, parabéns!!
Eu conhecia algum trabalho através da Severa/escritora.
Fraterno abraço
Nicinha
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