domingo, 19 de janeiro de 2014

O Basta

Fernanda estava na casa dos trinta quando se deu por conta do que queria da vida. Cansada de vagar de emprego em emprego, cansada da burocracia estúpida das empresas, de saco cheio das mesmices dos antigos: “você deve ficar na mesma empresa por muitos anos para crescer”, ou “sua carteira de trabalho já está lotada de coisas diferentes, assim vai queimar o seu filme!”. Fernanda não dava mais importância nenhuma para todo esse papo furado; contudo, sabia que deveria manter-se fazendo um dinheiro para não morrer de fome, ou algo parecido, até o dia que recebesse apenas por aquilo que lhe desse prazer.

Até seu namorado Ivan, até mesmo ele, advindo de uma família tradicionalíssima de trabalhadores-padrão, reconhecia que sua namorada tinha um talento próprio, e que seu atual jeito de ser nada mais era do que a assunção de um novo estilo de ser de Fernanda, que originava uma nova perspectiva de vida para ela. Ciente disto e sem impor nenhuma barreira à sua companheira, Ivan apenas concordava com cada ideia que vinha da cabeça de Fernanda, sem contestar nada.

Essa situação de concordância por parte de Ivan foi motivando cada vez mais Fernanda, que começava a entrar de cabeça em projetos cada vez maiores e, aos poucos, ia deixando de se importar em suprir o sustento do lar com a falsa garantia que seus empregos ou empregadores lhe davam. Havia, é claro, a outra parte da moeda que fazia a diferença: ele, Ivan. Há doze anos no mesmo trabalho, Ivan tinha um salário respeitável para os padrões brasileiros e, mesmo sentindo-se cansado até o último fio de cabelo, Ivan gozava de certo conforto para “bancar” os dois por algum tempo – obviamente ele esperava que os projetos de Fernanda vingassem um dia para ele também, quiçá, desfrutar de umas boas e merecidas férias de seu fustigante trabalho.

Fernanda estava numa nova vibe. Mudara o cabelo, fizera sua primeira tatuagem (esta Ivan engoliu a seco no começo, até se acostumar melhor) e criava, a partir de sua casa, as coisas que lhe davam verdadeiro prazer. A pintura era uma delas. Com muitas telas, Fernanda passava horas pincelando, explorando cores, desopilando, ouvindo suas músicas favoritas e inspiradoras durante o dia livre que tinha – de Bach a Scorpions, de Miles Davis a Marisa Monte – o que lhe desse na telha.

Fernanda também fizera uma nova amiga através da Internet, Nara, que tinha uma delicadeza para escrever histórias infantis; não demorou muito para ambas abraçarem um projeto de criar uma revista em quadrinhos – Fernanda fazendo os desenhos, Nara escrevendo. E era impressionante como Fernanda desenhava bem. Ivan ficou orgulhoso de ver os primeiros esboços, e alegre de saber que Nara não era gay. Ivan tinha um temor de perder sua mulher para outra, o que seria muito frustrante para ele. Na verdade Ivan ficou bem amigo de Isaque, marido da Nara, e curtia bater um papo sobre motos com o novo amigo, que tinha uma Harley-Davidson original de 1974. Ivan até planejou comprar uma e fazer uma trip de casais em suas próximas férias.

Mas a coisa não parava por aí, não. Fernanda também se empenhava fazendo cursos online, como um sobre arte abstrata, além de barganhar por obras esquecidas no Brasil e no exterior; com o conhecimento adquirido e seu inglês fluente, Fernanda até dava uma de Merchant online para um site que fazia transações de obras de pintores famosos como Monet, William Blake, Jackson Pollock e tantos outros – e as primeiras comissões recebidas fizeram valer o seu esforço. Não apenas pelo dinheiro, que continuava se fazendo fundamentalmente necessário para tudo, mas principalmente pelo prazer de viver cada dia extravasando sua vontade de ser quem ela sempre quisera ser, mas nunca fora incentivada por ninguém, nem por ela mesma.

Agora sim, as coisas estavam mais fáceis em sua vida. Com sua arte ganhando vida dia após dia, e com seu coração cada vez mais de Ivan, Fernanda podia caminhar sozinha e sem medo pela vida afora...

Um comentário:

Anônimo disse...

É... quantos artistas estão sufocados em um escritório ou empresa, sem poder mostrar seus verdadeiros talentos. Neste país a cultura está muito distante de todos. Parabéns pelo texto, André!